Serras da Desordem

Carapirú é um índio nômade que após ter seu grupo familiar massacrado num ataque surpresa de fazendeiros, consegue escapar e, durante 10 anos, perambula sozinho pelas serras do Brasil central até ser capturado em novembro de 1988 a 2 mil quilômetros de distância do seu ponto de fuga/partida.

Levado para Brasília pelo sertanista Sydney Possuelo, em uma semana torna-se manchete nacional e centro da polêmica criada por antropólogos e linguistas quanto à sua origem e identidade. Carapirú tem grande dificuldade em movimentar-se e viver no ambiente urbano, mas, auxiliado por pessoas que cuidaram dele desde os primeiros dias após a sua captura no sertão da Bahia com Goiás, consegue passar do atemporal anonimato da selva à curiosa notoriedade nacional.

Sua identificação como Guajá ocorre pelo intermédio casual de um jovem índio, intérprete, órfão de 18 anos, cujo destino naquele momento tinha-o novamente reunido ao sertanista que 10 anos antes o resgatara, ainda menino, dos maus tratos de um fazendeiro.

O destino surpreende a todos novamente. O índio recém trazido para Brasília e o jovem intérprete reconhecem-se pai e filho, ambos sobreviventes do massacre de 10 anos antes, ambos acreditando-se mutuamente mortos.

O filho leva seu pai para o posto e aldeia indígena onde vive com a família, mas a vida na comunidade maior, com todas as alterações provocadas pelos anos de convivência com o mundo dos brancos, não está mais de acordo com a vivência da liberdade nômade de Carapirú.

Trata-se de uma investigação sobre nós mesmos, diante da necessidade de adaptação imediata às radicais mudanças impostas pelo forçado encontro de humanidades diferentes em suas diferentes percepções de tempo, espaço, responsabilidade e valores. A possibilidade de expor a hipocrisia relativa dos conceitos de moral, justiça e ética, quando o homem como processo de conhecimento deixa de ser a condição/razão direta da experiência, existência.

Enfim, talvez contribuir para desmistificar o mito do choque cultural como algo resultante de parâmetros de distância no tempo ou no espaço, ou de diferentes padrões econômicos ou concepções filosóficas, mostrando como a adaptação humana não seria um problema, pois é espontaneamente natural, não fosse a agressividade intencional do critério de qualidade, concepção e normas de vida que a sociedade mais desenvolvida tecnologicamente determina e impõe à outra como forma de crescimento e conhecimento.

O projeto deve ser visualizado como a ficção documental de uma investigação filmada do encontro de duas humanidades distintas, de duas linguagens, que procura, pela intenção do olhar e com a montagem, desmaterializar, confundir, diluir na narrativa, a linha divisória destas duas humanidades, ou entre a ficção e o documentário, entre a realidade e a representação, para tentar chegar na essência comum.

Currículo

Andrea Tonacci

Cineasta nascido na Itália em 1944 e radicado no Brasil desde 1953. Dirigiu Blá Blá Blá (1968), Bang Bang (1970), Os araras (1980-81), Serras da Desordem (2006), Já Visto Jamais Visto (2014), dentre outros. Importante colaborador do forumdoc.bh, assina curadoria da Mostra Olhar: um ato de resistência realizada em parceria com a Associação Filmes de Quintal e concomitantemente ao festival em 2015.

Como citar este artigo

TONACCI, Andrea. Serras da Desordem. In: forumdoc.bh.2006: 10º Festival do filme documentário e etnográfico – fórum de antropologia, cinema e vídeo. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2006. p. 21. [Catálogo online: p. 23]