Só o capeta linguará

Caixa Preta (Saskia, Bernardo Oliveira, 2022), Escasso (Gabriela Gaia Meirelles, Clara Anastácia, 2022), As lavadeiras do Rio Acaraú transformam a embarcação em nave de condução (Kulumym-açu, 2021), tenho receio de teorias que não dançam (Gau Saraiva, 2021)

Ao passo que o necrocapitalismo de dados avança, o problema da linguagem, dos complexos de códigos, se adensa. Os sistemas de perfilamentos e previsibilidades necessitam controlar os acontecimentos e suas regularidades via língua, controlando o horizonte de codificação, produzindo imaginário e perspectiva simbólica. O que se convenciona chamar ultimamente de “guerra cultural” é justamente esta ênfase nas disputas políticas do campo dos códigos e suas séries. E a expressão da extrema-direita no Brasil e no mundo atentou com muita vivacidade a esse problema, jogando sistematicamente a peleja da linguagem para além da dimensão da comunicação, performatizando tudo, opacizando os acontecimentos, confundindo a mensagem, numa mórbida chanchada insuportavelmente contínua.

Mas o que um conjunto de filmes num festival de filmes documentários e etnográficos tem a ver com esse pandemônio? Tudo. Festivais, filmes, são situações de treino de estratégias de intervenção, são laboratórios de sociabilidade e expressão, proposições sensoriais comunitárias. Projeções. E agora, mais do que nunca, nosso campo não poderá cair na burrice carola da confiança na “comunicação”. Portanto, nos embrenhemos no esculpir de nossas vertigens, para disputarmos essa farsa com as armas que os filmes nunca pararam de gestar. Neste pequeno conjunto de obras a que este ensaio se dedica, dá pra sacar de cara a atenção ao problema da linguagem, entendida como instabilidade – diferentemente em cada um. Tanto a fala quanto a forma, nos quatro filmes aqui reunidos, são vetores de insegurança, perigo, farsa e experimental moral e semiótica.

Em menos de cinco minutos, Gau Saraiva e Dodi Leal bailam sobre a linha tênue entre hackeamento e adesão de códigos plásticos do filme publicitário, da pictorialidade das redes sociais e de institucionais turísticos, para deliberadamente criar uma espécie videobook praiano refletidamente produtor de alfabetos. O letreiro constante sobre a imagem reitera a pororoca de neologismos criados pela autora-modelo-de-praia, que estranha e confirma os códigos das imagens de drone e sua estabilidade cinética sintética e maquinal. Palavras não se criam, se alimentam de outras, de forma que a aparente propaganda turística na praia paradisíaca é filtrada como “arte cínica” – termo trazido pela própria Dodi Leal na narração. O filme é uma espécie de ritual de autoafirmação, centrado sobre um ego que se exibe e se expande e, ao mesmo tempo, a evidência da ruína inerente a todo esforço na direção deste tipo de formato. tenho receio de teorias que não dançam é uma espécie de antivideoclipe teórico que leva ao paroxismo as estratégias de estabilidade do imaginário ao trocar somente a estrela do proscênio. E é justo esse jogo de confirmação, desconfirmação e ironia que pode talvez fazer ver a rachadura deste plugin plástico e alusivo que – como um véu – cobre nossa referência de o que é uma “cena bonita”, uma “luz bonita”, um lugar “paradisíaco”. O inventário de poses e carões, acompanhado da narração e da fabricação de palavras, sugere uma forma de telecurso transeducacional que se banha e estranha as convenções mais standards do que podemos chamar de “beleza tropical litorânea”. Pois o queer como dimensão é essencialmente inversão, é dobrar a aposta do hegemônico e revirá-lo, e fazer do xingamento identidade, reutilizar o padrãozinho pelo avesso, trafegando no fio da navalha da afirmação cínica como tática vital de quem fia sua sobrevivência à ambiguidade.

O jogo de cena e suas variações constituem o coração de As lavadeiras do Rio Acaraú, transformam a embarcação em nave de condução, de Kulumym-açu. O curta cearense, igualmente, concentra-se numa constante degustação vocal de palavras, con-fundindo sílabas, recriando e furando a língua, abordando – pela metodologia – as táticas de invenção e sociabilidade das lavadeiras. O gesto ancestral do trabalho é desdobrado em suas mais variadas dimensões, como locus de transformações – e não como um tema que se aborda. Por isso a variação entre instâncias narrativas, da animação à teatralidade sincrônica em tableau, constitui a carne e a ânima do filme. Para Kulumym-açu, a beira do rio Acaraú é um teatro experimental, centrado neste achado da invenção da letra: “falavra”. É o trabalho braçal, a lavra da palavra, a palavra e sua expressão como sabor e labor, que fertilizou histórias, canções, teceu texturas e quarou memórias. É em torno destas práticas que a estrutura heterogênea do curta se erige e se justifica como intervenção do repertório de aproximações etnográficas que, até os dias de hoje, insiste em considerar a língua como estabilidade, perdendo, justamente, a vista do acontecimento. O que vemos aqui é prática sobre prática, braço por braço, palco por rio, multidão por trio, remissão pela duração, identificando que o trabalho histórico das lavadeiras opera essencialmente pela dimensão formal, per-formando. A beira do Acaraú é uma caixa impessoal e coletiva dos segredos de voo.

     Uma investigação tagarela é o que também observamos em Escasso. A farsa é o espaço para novamente atravessarmos uma narrativa que tem seu sol central num único corpo, que se confunde com o haver cena. Ao invés da beira-mar, o lar – aqui extraviado, plurifarsesco. A estratégia cínica volta a trabalhar buscando tensionar padrões de classe, raça e moradia, estudando a figura histórica e sempre renovada do tropo “carioca extrovertida do subúrbio”. O lance é falsear o falso do jornalismo e produzir um breve inventário de uma etnografia reversa de classe, como uma visita guiada extra-viada, que, na sua superfície, arrisca ao assumir-se como um estudo de personagem também em derramamento “egolombra” – abundante e centralizado. Novamente, um filme que trafega no perigo da reiteração das ciladas simbólicas e assume sem nóia o risco da empreitada, tentando entrar e sair da linguagem, dobrando a performance como comentário de si, investigando o limite e o truque de um si-nema. Vestida de vermelho, ela é puro verter, extra vertida.

Bernardo Oliveira e Saskia decidem abrir a caixa-preta da negritude brasileira, como uma criança abre um baú infinito, atochado de brinquedos, armas e vibradores. É como se Godard tivesse reencarnado no Estácio ou na Casa Fanti Ashanti, ou como se Arthur Jafa tivesse descoberto a energia pluriversal do afro heavy metal samba gospel da Pastora Ana Lúcia que encerra o antiensaio de Saskia e Bernardo. A noção de racialidade liberal-conservadora direitinha que vigora nos setores universitários de classe média no Brasil – um antirracismo fofo de butique – não terá instrumentos pra lidar com esta pletora de signos que é um braço do revolucionário projeto Ciranda do Gatilho – que inclui também Negro Léo (autor do fonograma Mulato, que encerra Escasso). A constância da tela em negro nos lembra que esse retângulo é, via de regra, uma caixa, preta. E o filme trata de ocupá-lo de diferentes maneiras constantemente: grafismos, efeitos, arquivos, pinturas, resoluções variadas, letreiros e ruído. Mais transborda do que aborda. Caixa é também nome de um instrumento crucial nas sonoridades amefricanas. Caixa é também cabeça, meu coco, é também pulmão, torácica, é espaço vazio (tema da epígrafe do filme), platô de preenchimentos mil – “o oxigênio está me matando”, diria a Voz em Vaga Carne, psicografada por Grace Passô. A imagem negra aqui é, acima de tudo, múltipla, contraditória, rasurada, pois entende-se que o que funda o racismo é a ideia de propriedade. Portanto, mergulhemos no piche do impróprio. “Piorou”, diria Tantão – outro linguará citado e excitado neste magma. Para tal lúdico voo no abismo, tudo é apropriado, tudo é, afinal, impróprio, sem direitos de imagem, mas sim devires e deveres. Deveres éticos de fazer de uma estética constantemente variante a forma de uma inquietação driblante, perigosa, que enxerga ponte entre o terreiro e o culto, entre a estereotipia beiçuda e a mais lírica melodia. Caixa-preta como toda grande teoria gosta de problema, alimenta-se deles, não desvia, se lambuza, bebe violência e expele graça. 

Afinal, o trabalho das con-danadas da terra – fio que une este grupo de trabalhos – é essencialmente um expediente de transmutação que faz da expressão seu treino e sua nascente. O labor trans-secular das práticas de sociabilidade não tuteladas se especializou e aguçou a produção de línguas como forma básica de ser e estar. Portanto, hoje, mais do que inovar estratégias de agitar os linguajares, já é hora de olhar o patrimônio onipresente e invisível de táticas rueiras de investigação expressiva. E o que esses filmes dizem e desdizem é que essa matéria viva e duracional, vivida, mora aqui, na beira do rio, na casa tomada, no fio desencapado, parado na esquina, na gira da vigília, justamente no vazio disfarçado da caixa, esperando que alguém dê um toque e reative o que mora em todo lugar.

Currículo

Juliano Gomes

é crítico, professor e diretor. Coeditor da Revista Cinética. Publicou na Film Quarterly, World Records Journal, Filme&Cultura, Folha, Piauí e diversos catálogos de mostras e festivais. Foi júri do forumdoc.bh, DocLisboa, Mostra Tiradentes e Cachoeira Doc. Foi do comitê de seleção do Sheffield Doc Fest. Lecionou na AIC-Rio. Escreve também sobre teatro, música e artes visuais.