UM. Nossas fantasias e nossos desejos são estruturados como roteiros.¹ Uma mão invisível alinha os processos que supostamente nos conduzem. As sociedades deslizam vagarosamente da época das representações – teatro das instituições, comédias ou tragédias dos poderes, espetáculo das relações de força – para aquela das programações: da cena ao roteiro. O cidadão é menos solicitado a ser um espectador – ativo: recurso mobilizado pela representação e, simultaneamente, ator por delegação – do que permanecer no seu lugar de consumidor, impotente até mesmo para compreender o programa do qual participa. Demasiadamente desigual, o jogo deixa de ser jogo.
Diante dessa crescente roteirização das relações sociais e intersubjetivas, tal como é veiculada (e finalmente garantida) pelo modelo “realista” da telenovela, o documentário não tem outra escolha a não ser se realizar sob o risco do real. O imperativo do “como filmar”, central no trabalho do cineasta, coloca-se como a mais violenta necessidade: não mais como fazer o filme, mas como fazer para que haja filme. A prática do cinema documentário não depende, em última análise, nem dos circuitos de financiamento nem das possibilidades de difusão, mas simplesmente da boa vontade – da disponibilidade – de quem ou daquilo que escolhemos para filmar: indivíduos, instituições, grupos. O desejo está no posto de comando. As condições da experiência fazem parte da experiência. Ao abrir-se àquilo que ameaça sua própria possibilidade (o real que ameaça a cena), o cinema documentário possibilita ao mesmo tempo uma modificação da representação: é a trilha do documentário que serpenteia de Alemanha, ano zero (Roberto Rossellini) a Pour la suite du monde (Pierre Perrault), de Pouco a pouco (Jean Rouch) a E a vida continua (Abbas Kiarostami). Os filmes documentários não são apenas “abertos para o mundo”: eles são atravessados, furados, transportados pelo mundo. Eles se entregam àquilo que é mais forte, que os ultrapassa e, concomitantemente, os afunda.
DOIS. Duas reviravoltas na escrita cinematográfica – o neo-realismo, a nouvelle vague – são responsáveis pela renovação da ficção pelas formas documentárias (fotojornalismo, reportagem de guerra, cine-jornal, mas também deslocamento do centro de gravidade das mídias de massa, do cinema em direção à televisão, e difusão da prática do cinema amador...). Hoje, a retomada das roteirizações ficcionais – esgotadas pela estandardização da telenovela – se dá mais uma vez a partir da experiência do documentário: um exemplo é suficiente, o cinema de Abbas Kiarostami. Ele nos ensina ironicamente que aquilo que nos pressiona hoje é e não é mais absolutamente uma “nova inscrição da realidade”, mas antes uma realidade da inscrição (Close up, Através das oliveiras). O cinema não existe apenas – isto já é muito – para tratar do mundo e da realidade que nos define. Ele deve também inscrever cinematograficamente sua potência e complexidade. O monumental e o ínfimo.
A parte documentária do cinema implica que o registro de um gesto, de uma palavra ou de um olhar, necessariamente se refira à realidade de sua manifestação, quer esta seja ou não provocada pelo filme, mesmo ele sendo um filtro que muda a forma das coisas. A forma delas, sim, mas não sua realidade. Realidade referencial colocada antes de tudo pelo cinema documentário e que se impõe a ele como sua lei. A ficção pode se esquivar dos referentes, mascará-los. Mas não existe documentário de ficção científica.
TRÊS. Espectador do cinema documentário, encontro-me na ambivalência. Quero estar ao mesmo tempo no cinema e não no cinema, quero acreditar na cena (ou duvidar dela), mas também quero crer no referente real da cena (ou duvidar dele). Quero simultaneamente crer e duvidar da realidade representada, assim como da realidade da representação. Meu prazer, minha curiosidade, minha necessidade de conhecer, meu desejo de saber são recolocados em movimento por essa dialética da crença e da dúvida.
O que acontece quando, por exemplo, um encontro² é filmado? Duas pessoas ou mais se encontram em um filme. Do ponto de vista da ficção, eu sei, ao mesmo tempo, que esse encontro de fato aconteceu (pois foi filmado) e que ele é fictício (posto que filmado). Do ponto de vista documentário, eu sei que o encontro é real, pois de outro modo não poderia ter sido filmado. A dose de realidade filmada é maior. E quando a dúvida surge, ela é ainda mais preocupante: este é o jogo do filme La ville Louvre de Nicolas Philibert. Em “Viagem documentária...” p.146, eu escrevia:
(...) crer e não crer no mundo filmado, e talvez preferir o filme, mas ao mesmo tempo e no mesmo movimento, diante do mundo filmado, desejar acreditar que é justamente o mundo que garante o mundo... Há aqui uma dialética que eu suponho vital para o cinema. E eu me pergunto se o triunfo esperado da imagem de síntese – e muito particularmente dos corpos sintéticos – não irá barrar esse movimento complexo da crença e da dúvida que funda e mantém a relação do espectador com o filme.
Diante das imagens computadorizadas, não posso mais desejar crer que haja um referente da cena, realidade do referente da qual o filme seria precisamente a comprovação. A cena flutua, como os corpos e os cenários, sem amarras, sem ancoragem. A inscrição é desrealizada. Inicialmente, a dúvida se manifesta apenas brandamente: duvidar do que, se não podemos mais verdadeiramente acreditar? No cinema, a dúvida, já que ela é articulada com a verdade da inscrição, sempre é trazida por uma crença; dúvida e certeza se combatem e voltam a atuar em um movimento sincrônico, e essa alternância define o lugar do espectador como lugar incerto, móvel, crítico.
QUATRO. Desde que os filmes existem, os roteiros são “escritos” em uma linguagem que importa pouco: as palavras estão ali provisoriamente, são as imagens e os sons que escreverão realmente o filme. Hoje, passamos das palavras que não contam às palavras que apenas contam: as palavras dos programas. Assim, esvaziados do jogo de palavras, desvencilhados da vertigem equívoca da linguagem, os roteiros não se contentam mais em organizar o cinema de ficção, os telefilmes, os jogos de vídeo, as agências matrimoniais, os simuladores de voo. Sua ambição ultrapassa o domínio das produções do imaginário para assumirem as linhas de ordens que enquadram aquilo que podemos muito bem definir como “nossas” realidades: da Bolsa de Valores às pesquisas de opinião, passando pela publicidade, a meteorologia e o comércio. Os “previsionistas” não são utopistas, e o poder dos programadores não é virtual. Mil modelos regulam, assim, os dispositivos sociais e econômicos que nos mantêm em sua dependência. Mas todos procedem de um motivo único: o homem, ser de linguagem que a linguagem ultrapassa, manifesta que, há não muito tempo, está apto a assegurar o controle do mundo, traduzindo-o para uma “língua”, a do roteiro, que seria, por sua vez, inteiramente governável (como podem ser as línguas da cibernética, da informática, da genética, da estatística...). Por isso é que os roteiros, que se instalam em todo lugar para agir (e pensar) em nosso lugar, se querem totalizantes, para não dizer totalitários. Programas que não se ocupam daquilo que do real lhes escapa, que se imaginam sem restos, sem exterioridade, sem tudo que estivesse fora do cálculo (como falamos de fora-de-campo ou fora-de-cena). A versão do mundo que eles nos propõem é acabada, descrição fechada. Ora, é uma sorte (para nós) que o mundo capturado na teia dos cálculos esperneie, permaneça impalpável, além do perfeito e do imperfeito. Se precisássemos de um exemplo cruel, teríamos a guerra moderna, cada vez mais programática (propagandista) e programada (idealizada), mas, mesmo assim, trincada pela distância que não se deixa encurtar entre as telas dos computadores e a lama dos caminhos.
Longe da “ficção totalizante do todo”, o cinema documentário tem, portanto, a chance de se ocupar apenas das fissuras do real, daquilo que resiste, daquilo que resta, a escória, o resíduo, o excluído, a parte maldita. Pensemos, por exemplo, naquelas Gens des baraques filmadas por Robert Bozzi, mas também na Julie filmada por Dominique Gros ou nas crianças de Grands comme le monde de Denis Gheerbrant³ - mas poderia ser também o herói de Eu, um negro (Jean Rouch), ou o de Nanook, o esquimó (Robert Flaherty). Esses personagens são precisamente aqueles que produzem buracos ou borrões nos programas (sociais, escolares, médicos, e mesmo coloniais), que escapam tanto da norma majoritária como da contra-norma minoritária tal como esta é cada vez mais bem roteirizada pelos poderes: contudo, eles vivem, não lhes faltando nem sofrimento nem alegria, experimentando angústias, dúvidas ou felicidades que não são, ou são muito pouco, as dos modelos circundantes.
Creio que a renovação contemporânea⁴ do documentário na França e na Europa tem a ver (entre outras) com esta necessidade sentida por todos nós: que as representações que fabricamos do mundo deixem de dá-lo por acabado ou definitivamente domado e disciplinado por nós. À sua modesta maneira, o cinema documentário, ao ceder espaço ao real, que o provoca e o habita, só pode se construir em fricção com o mundo, isto é, ele precisa reconhecer o inevitável das restrições e das ordens, levar em consideração (ainda que para combatê-los) os poderes e as mentiras, aceitar, enfim, ser parte interessada nas regras do jogo social. Servidão, privilégios. Um cinema engajado, eu diria, no mundo.
CINCO. À pergunta “o que é o documentário?” não há outra resposta senão a questão feita por André Bazin: “o que é o cinema?”. O cinema não é jornalismo, apesar de, como ele, pertencer à ordem das narrativas. Somente nossa cegueira e nossa surdez, provocadas e/ou escolhidas, podem explicar o fato de tomarmos as informações agenciadas por um jornal ou por um programa (televisual ou não) como a afirmação transparente do que aconteceu. Um depoimento, uma palavra, um documento e a própria narrativa podem remeter a fatos, a eles se referir e com eles estabelecer relações; contudo, deles se separam por meio de uma elaboração que, ainda que diga respeito ao fato, o reconfigura em formas que não são mais as dele. Nada no mundo nos é acessível sem que os relatos nos transmitam uma versão local, datada, histórica, ideológica. A crítica maior que devemos dirigir à mídia, agente da informação, refere-se à denegação batizada “objetividade”, por meio da qual ela mascara, com demasiada frequência, o caráter eminentemente precário, fragmentário e, por fim, subjetivo daquilo que é tão-somente o seu trabalho.
Subjetivo é o cinema e, com ele, o documentário. Não há a menor necessidade de lembrar essa verdade, que, contudo, geralmente se perde de vista: o cinema nasceu documentário e dele extraiu seus primeiros poderes (Lumière). O que o aproxima do jornalismo é o fato de que ele se refere ao mundo dos acontecimentos, dos fatos, das relações, elaborando, a partir deles ou com eles, as narrativas filmadas; e aquilo que o separa do jornalismo é o fato de que ele não dissimula, não nega, mas, ao contrário, afirma o seu gesto, que é o de reescrever os acontecimentos, as situações, os fatos, as relações em forma de narrativas, portanto, o de reescrever o mundo, mas do ponto de vista de um sujeito, escritura aqui e agora, narrativa precária e fragmentária, narrativa confessa e que faz dessa confissão seu próprio princípio. Aleatórios e frágeis, sem dúvida, foram e ainda são para alguns os roteiros do cinema de ficção (de Renoir e Rossellini a Kiarostami, passando por Godard); mas cada vez menos, se assim posso dizer, na medida em que a ferramenta roteiro é retirada do âmbito das ficções cinematográficas para servir às ficções políticas, econômicas, sociais ou militares. A partir daí, lógico retorno das coisas, um funcionalismo estreito, um programa rígido governa cada vez mais as ficções industriais (da televisão ao cinema e das séries dos Navarro ao Titanic). Triunfo da sociedade do espetáculo constatado também nesse duplo movimento de generalização e enrijecimento do roteiro. Assim como o mercado, o espetáculo incita a estandardização.
SEIS. Passando e repassando pelas dobras cada vez mais alisadas da ficção, o cinema perdeu, em parte, seu pé no mundo. Programático, o cinema não anuncia mais, como o profeta do desconhecido, o mundo por vir, mas o ajusta sobretudo como uma repetição do conhecido. Nada semelhante acontece com o cinema documentário. Não há roteiro que a ele se oponha. O projeto documentário se forja a cada passo, esbarrando em mil realidades que, na verdade, ele não pode nem negligenciar nem dominar. Nem recalque nem forclusão: enfrentamento. Cinema como práxis. Longe dos fantasmas do controle ou da onipotência que marcam cada vez mais os roteiros, ele, o documentário, não pode avançar sem suas fraquezas, que são também perseverança, precisão, honestidade. Nem os homens nem as realidades que são levados a filmar dependem dele, ainda que ele os transforme ao filmá-los. Os homens reais que atuam nos filmes documentários não são, de modo nenhum, atores profissionais, à mercê de uma produção, de um contrato, de uma ordem. Eles entram em um filme apenas na medida em que assim desejam. Nada os obriga, e nós, cineastas, dependemos de sua boa disposição. Quanto às instituições, às formações sociais (das escolas aos tribunais, passando pelas empresas), às associações, ou mesmo às famílias, nenhuma delas esperou o cinema para existir e para organizar suas mise-en-scènes, ainda que estas estejam, por sua vez, se mostrando cada vez mais influenciadas pelo cinema. A relação que o cinema documentário estabelece com essas instâncias é, pois, ambígua: deve permitir o filme (nada se faz sem acordo) e, ao mesmo tempo, aquilo que não é o filme, seu funcionamento normal fora do filme. Aquilo que serve ao filme e, simultaneamente, aquilo que dele se esquiva ou a ele resiste. Relação, sim, mas dura, com condições que são limitações.
O que acontece com aqueles que filmamos, homens ou mulheres, que se tornam, assim, personagens de filme? Eles nos atraem e nos retêm, antes de tudo, porque existem fora do nosso projeto de filme. É somente a partir daquilo que farão conosco dentro desse projeto (e, às vezes, contra nós) que se tornarão seres do cinema. Isso demonstra o quanto estamos, de saída, sem condições de lhes dar ordens (podemos oferecer, no máximo, indicações), de “avacalhar” sua própria mise-en-scène (ao contrário, trata-se de deixá-la aparecer em primeiro plano), de interromper ou alterar o curso de suas ações (a não ser o tempo suspenso de uma filmagem).
SETE. Esses homens e essas mulheres, seres reais tomados na relação filmada, nela irão manifestar (é o que convém esperar) toda sua singularidade: o que faz que um corpo, uma palavra, uma subjetividade se tornem em relação ao cinema (e talvez apenas a ele) únicos, insubstituíveis, não reproduzíveis (a não ser pelos meios mecânicos, laboratórios, cópias, projeções). O milagre terá acontecido: filmado, o corpo atinge uma potência de convicção, uma beleza que o corpo não filmado não conhece. Melhor que o teatro e a pintura, o cinema expõe o corpo humano em todos os seus estados: verdade (crueldade) da tomada cinematográfica, como não filmar a passagem do tempo nos corpos?
A questão dos corpos é, ao meu ver, a mais forte entre todas aquelas que o cinema inventa neste século. Arte figurativa por excelência, é, antes de tudo, sobre o realismo de suas representações da figura humana que o cinema constrói seus estilos, realistas ou não. Vejam Coûte que coûte, de Claire Simon. Como Rossellini, ou ainda como Pasolini, o cinema documentário filma corpos feitos e desfeitos pela vida, sabendo que nesses fatos, nessas desfeitas, trata-se sempre de corpos gloriosos. Talvez hoje não haja mais corpo possível, a não ser no cinema, e cada vez menos nas fotos, nos teatros, nos espetáculos televisivos. E talvez não haja outro realismo no cinema além daquele dos corpos filmados. Potências do documentário. ⁵
Como? Esses homens ou essas mulheres que nós filmamos, que nessa relação aceitaram entrar, nela irão interferir e para ela transferir, com sua singularidade, tudo o que trazem consigo de determinações e de dificuldades, de gravidade e de graça, de sua sombra – que, com eles, não será reduzida –, tudo o que a experiência de vida neles terá modelado... Concomitantemente, alguma coisa da complexidade e da opacidade das sociedades e alguma coisa da exceção irremediável de uma vida. Isso quer dizer que nós filmamos também algo que não é visível, filmável, não é feito para o filme, não está ao nosso alcance, mas que está aqui com o resto, dissimulado pela própria luz ou cegado por ela, ao lado do visível, sob ele, fora do campo, fora da imagem, mas presente nos corpos e entre eles, nas palavras e entre elas, em todo o tecido que a máquina cinematográfica, – que ao seu modo é uma parca –, trama.
Filmar pessoas reais no mundo real significa estar às voltas com a desordem das vidas, com o indecidível dos acontecimentos do mundo, com aquilo que do real se obstina em enganar as previsões. Impossibilidade do roteiro. Necessidade do documentário.
OITO. Dessa dificuldade que lhe é imposta de alguma maneira “de fora”, o cinema documentário tira todas as suas riquezas. Obrigação de experimentar, de tentar aproximações ajustadas às armadilhas sempre novas do mundo a filmar. Obrigação de imaginar, de testar, de verificar dispositivos de escrita – inéditos na medida em que estes só podem estar intimamente ligados a um processo de criação, a uma dimensão do mundo. Além disso, esses dispositivos de escrita, sempre dependentes de determinadas condições dos lugares, são eles mesmos submetidos à pressão do real. O movimento do mundo não se interrompe para que o documentarista possa lapidar seu sistema de escrita. As formas colocadas em ação são desarranjadas pela própria forma que elas tentam abarcar. O cinema, na sua versão documentária, traz de volta o real como aquilo que, filmado, não é totalmente filmável, excesso ou falta, transbordamento ou limite – lacunas ou contornos que logo nos são dados para que os sintamos, os experimentemos, os pensemos. Sentir aquilo que, no mundo, ainda nos ultrapassa. As narrativas ainda não escritas, as ficções ainda não esgotadas.
Ao mesmo tempo em que se entrega, a matéria do cinema documentário lhe escapa. É por isso que ele deve inventar formas que possibilitem apreensões daquilo que ainda não é cinematograficamente apreendido. Obrigação, diríamos: obrigação de criar. Mesmo que quisesse, a obra documental seria incapaz de reduzir o mundo a um dispositivo que ela já daria como pronto. Melhor: ela não pode se impedir, para levar ao extremo esta lógica de aprendizagem, de desejar ver seu dispositivo “avacalhado” pela irrupção de dados inéditos – que não seriam aqueles por meio dos quais o mundo já se oferece a nós. Eis porque os dispositivos do documentário são antes de tudo precários, instáveis, frágeis. Eles são úteis apenas para permitir a exploração do que ainda não é de todo conhecido. Os roteiros de ficção são, frequentemente (cada vez mais), fóbicos: eles temem aquilo que lhes provoca fissuras, que os corta, os subverte. Eles afastam o acidental, o aleatório. Alimentados pelo controle, eles se fecham sobre si mesmos. Retroação. O não-controle do documentário surge como a condição de invenção. Dela irradia a potência real deste mundo.
No momento em que os grandes grupos internacionais se assenhoram, por todos os lados, do controle da produção, da distribuição, da difusão audiovisual, em que triunfam os modelos, os programas, os automatismos, os sistemas de vigilância e de previsão, em que o marketing, a publicidade, a propaganda impõem um novo magma – a informação-cultura-mercadoria –, parece-me digno de nota que o cinema documentário resista e se desenvolva.⁶ Vejo nessa conjunção um fato político. À programação e à precaução generalizadas, opõe-se o risco inerente ao empreendimento do documentário. Os atos, os projetos, as obras, as construções não se deixam reduzir mais ao cálculo de máquinas humanas do que aos desejos dos homens mecanizados. A sociedade do espetáculo triunfa, mas uma parcela obscura do espetáculo mina o espetáculo generalizado. Chamemos essa parte de “a parte da arte”. Cabe a ela, hoje mais do que nunca, representar a estranheza do mundo, sua opacidade, sua radical alteridade, em resumo, tudo o que a ficção à nossa volta nos esconde escrupulosamente: que estamos no período posterior à destruição dos conjuntos fechados, que a cena é aberta, fendida, rompida, e é a esse preço que ela ainda pode pretender historicamente representar tudo o que neste mundo não é virtual.
Currículo
Jean-Louis Comolli
Escritor e diretor de cinema francês. Foi editor-chefe da Cahiers du cinéma de 1966 a 1978, publicou, entre outros, Ver e Poder - A Inocência Perdida: Cinema, Televisão, Ficção, Documentário (UFMG, 2006).
Como citar este artigo
COMOLLI, Jean-Louis. Sob o risco do real. In: Ver e poder: a inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. p.169-178.
Notas
1. Escrito em função do convite de Thierry Garrel, para o catálogo do programa Le documentaire c’est la vie, em circulação nos institutos e centros culturais franceses no estrangeiro, que reúne os filmes produzidos pela unidade documentária do canal de televisão La Sept-Arte.
2. O exemplo do “encontro filmado” permite definir a inscrição verdadeira como verdade de inscrição de um momento em um movimento (aquele da fita do filme): o realismo nasce com o sincronismo, que não é primitivamente aquele do som com a imagem, mas aquele da ação com o seu registro. Uma máquina e um corpo (pelo menos) compartilhando uma duração, que é feita da interação deles. Esse compartilhamento é real (e não virtual). Ele retira sua “verdade” da própria passagem do tempo, do uso compartilhado do tempo, provocado pela máquina e, ao mesmo tempo, registrado por ela: marcas desse uso no corpo filmado.
3. Três filmes do catálogo Arte.
4. Talvez fosse essa relação ambivalente com o “real” que teria valido ao cinema documentário dos anos de 1990 na França ser reconhecido como um gesto justo.
5. Encontraremos aqui e ali passagens de um artigo anterior: “Viagem documentária aos caçadores de cabeça”, neste volume. Na medida em que servem à articulação do raciocínio, preferi mantê-las.
6. Os filmes que acabo de citar (e alguns outros) têm em comum talvez um traço único, mas decisivo: ir adiante de sua própria impossibilidade, isto é, preferir, no lugar do “roteiro” prévio, aquilo que se escreve no próprio gesto de filmar, enfrentando o risco maior de que desse gesto não saia nada de um filme por vir.