Trabalhadoras metalúrgicas (1978): encontros e desencontros entre novo sindicalismo e feminismo

No primeiro plano de Trabalhadoras metalúrgicas (1978), de Olga Futemma e Renato Tapajós, uma mulher de nome Terezinha comenta, interagindo com a diretora, posicionada fora de campo: “Em um sentido, valia a pena, mas, em outro sentido, eu preferia ser homem. Tudo mais fácil, não é? Porque a mulher enfrenta muitos problemas”. Em seguida, uma sequência de montagem remete a fala de Terezinha a uma situação mais precisa, mas também a coloca em perspectiva histórica: são justapostas 12 imagens de arquivo registrando o trabalho fabril de mulheres, nos primeiros anos do século XX, enquanto uma voz feminina informa em off que o salário do operariado feminino nas primeiras fábricas instaladas no Brasil era bem menor do que o dos homens. Além disso, as trabalhadoras eram submetidas a uma disciplina mais rigorosa, a piores condições de trabalho e enfrentavam maiores dificuldades para conseguir empregos por serem mulheres. “Desde aquela época, as mulheres lutam para que sua condição de trabalhadora seja reconhecida como igual à do homem. (...) Continua na ordem do dia sua reivindicação de salário igual para trabalho igual”, conclui a narradora.  

A desigualdade de gênero é assim conduzida a um cenário paradigmático de luta de classes: a exploração do trabalho no Brasil em processo de industrialização. Depois do título sobre tela preta, entram em cena uma série de rostos de mulheres, filmadas no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema (SP). Estamos em janeiro de 1978, antessala das grandes greves da categoria que iriam desestabilizar em definitivo o regime militar. Tem início o Primeiro Congresso da Mulher Metalúrgica. Na mesa diretora, responsável pela abertura do congresso, Luiz Inácio Lula da Silva, então presidente do sindicato, cercado de outros homens, agradece “de todo coração a coragem e a vontade de participar” das cerca de 400 companheiras presentes, mesmo correndo o risco de demissão sumária ou de retaliações pelas empresas. Enquanto Lula discursa, a câmera percorre o auditório do sindicato, detendo-se no olhar e na escuta das trabalhadoras. Por vezes, o zoom in destaca um ou outro rosto, perfis em contraluz, olhares curiosos e sorrisos. O procedimento é retomado em outros momentos no filme: detalhes – como o esmalte vermelho nas unhas, o rosto sorridente com óculos grandes ou o lenço amarelo rendado cobrindo os cabelos – destacam e individualizam algumas das trabalhadoras que participam do congresso, sugerindo que ao filme interessam as mulheres – aquém e além da categoria.  

A tensão sutil entre cumprir a pauta do sindicato e questionar, de maneira mais abrangente, a desigualdade de gênero, a partir das vivências e falas das mulheres filmadas, permeia Trabalhadoras Metalúrgicas, filme que integra a série realizada por Renato Tapajós em colaboração com o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema. Desde 1976, quando ministrou um curso de formação de espectadores para operários sindicalizados, Tapajós e alguns parceiros e parceiras (reunidos na produtora Oca Cinematográfica) estabeleceram uma relação de colaboração com a entidade, que abrira, naquele ano, um Departamento de Cultura. Tapajós vinha da resistência armada à ditadura; participante da Ala Vermelha do PCB, ficou preso entre 1969 e 1974. As leituras feitas na prisão permitiram a ele e outros companheiros de organização uma postura autocrítica com relação à tática de guerrilha, e uma aproximação ao universo e às causas operárias (ANDRADE, 2019). O foco da autocrítica consistia, em suas palavras, numa recomendação "aos militantes que se liguem às massas, ou seja, vão morar em bairros operários, entrem nos sindicatos, façam trabalho junto às organizações de bairro" (2019, p. 27), caminho que ele – já documentarista quando abraçou a militância – iria trilhar junto ao Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. O primeiro dos cinco documentários realizados em parceria é Acidentes de trabalho (1977), seguido de Trabalhadoras metalúrgicas, em codireção com Olga Futemma, sua então companheira, responsável pela montagem de todos os trabalhos. 

Em carta publicada no jornal Tribuna Metalúrgica (1978), a diretoria do sindicato expõe a motivação para realizar o I Congresso da Trabalhadora Metalúrgica: 

Essa realização foi a primeira do gênero no Brasil, (...) teve como objetivo principal saber como trabalha a operária metalúrgica, e quais as providências a serem tomadas para que a legislação trabalhista seja respeitada pelos patrões. (...) foi um congresso com objetivo de integrar a mulher operária na luta sindical de toda a categoria. (...) A organização da mulher na empresa e sua participação na vida do sindicato devem constituir os próximos passos da categoria metalúrgica. (...) Quando o sindicato pensou na realização de um encontro específico de operárias metalúrgicas (...) já era sua preocupação não confundi-lo com o movimento feminista. (...) que fosse apenas uma iniciativa para integrar a mulher ao movimento trabalhista, reforçando a luta dos companheiros homens. (PARANHOS, 1999, p. 122)

Não poderia ser mais explícito o temor, pela diretoria exclusivamente masculina, de que o congresso fosse “confundido” com o “movimento feminista” – lembremos que, em 1975, a ONU havia promovido o Ano Internacional das Mulheres, “o que incentivou debates para diminuir as desigualdades entre homens e mulheres em todo o mundo, inclusive nas ditaduras latino-americanas” (ver artigo de Larissa Costa neste catálogo). É sobretudo para “integrar a mulher operária na luta sindical de toda a categoria” – talvez disputando sua participação com outros movimentos populares² - que congresso e filme foram oficialmente realizados. Antes de passar a palavra a Lula, na mesa de abertura do evento, um diretor sindical busca assegurar esse propósito: “O congresso é puro e simplesmente um encontro de vocês mulheres para discutir e resolver os problemas das trabalhadoras de São Bernardo. Correto?”³ 

Em entrevista a Karla Holanda (2020), Olga Futemma conta que, ao receber a proposta do sindicato para que realizassem um registro do I Congresso da Mulher Metalúrgica, ela estava “muito grávida” (de seu primeiro filho) e teria pensado: “Não, eu não vou fazer uma cobertura do congresso. Eu vou filmar o congresso, mas queria fazer um filme sobre as mulheres metalúrgicas” (HOLANDA, 2020, p. 178). Em seu entendimento, ela não fez “nem uma coisa nem outra”: o filme “não tem um centro, ele parece um biombo, que vai abrindo (...) isso me incomoda um pouco” (Ibidem). A meu ver, a forma “biombo” e sua abertura não são um problema. Mas é verdade que a tarefa de cobrir o congresso para o sindicato acaba por pautar certas desigualdades e opressões sofridas pelas mulheres trabalhadoras – em especial o que é de responsabilidade direta dos patrões, ou das “firmas”, como dizem as entrevistadas – em detrimento de outras... que acabam vazando, provavelmente pela sensibilidade de Olga Futemma. 

Pois a vontade de aproximação à experiência das filmadas é sensível, garante oscilações e aberturas em um discurso que poderia se pautar estritamente pela questão trabalhista. Algumas entrevistas, como a de Terezinha, personagem de destaque, são tomadas nas casas das filmadas, o que por si só garante a elaboração de cenas que ultrapassam o enquadre do sindicato e da fábrica. A voz narradora feminina, de atuação discreta no filme, também denota proximidade: ela enuncia a partir de informações oferecidas pelas próprias trabalhadoras em suas falas. É o caso da primeira sequência após a abertura do congresso, quando a montagem organiza uma série de relatos contundentes, reforçando o cenário de disparidade entre mulheres e homens no trabalho industrial, mas também especificando as difíceis condições de trabalho das mulheres no ABC. Um coro de vozes (Terezinha, Maria Isabel, Célia, Eliane, Zulene e Valdete, segundo os créditos finais), algumas delas nos debates internos ao próprio congresso, vão construindo a realidade de desigualdade, discriminação, insalubridade e insegurança sofrida pelas trabalhadoras. “Não temos luvas, o dedo incha, prejudica a vista”; “na firma que eu trabalho tem má ventilação, o calor é demais na seção (...) não tem ventilador, nada”; “é uma falta de higiene tremenda, pouco banheiro para muita mulher”; “a chefia (...) trata as meninas (...) que nem se fosse empregada. Nem empregada, como se fosse escrava (...) é gritando a mulherada”. A narração recolhe as experiências específicas, sintetiza, complementa: “As condições de trabalho são ruins. Não existem refeitórios. As mulheres são obrigadas a comer nos banheiros, que são poucos e sujos”. 

No sindicato, uma mulher introduz o tema da hora-extra compulsória e mal remunerada, questão importante da pauta trabalhista: “Quem tá lucrando é a firma (...) eles ganhando e a gente perdendo. Tá tomando o lugar de um funcionário ou dois ou três”. Seguem imagens do trabalho feminino em uma fábrica, enquanto outra mulher comenta que quem se recusa a fazer hora-extra sofre represálias. “Tudo isso complica pra gente. Porque no sábado a gente quer ficar em casa só para cuidar do serviço, da casa, do nenê…”. Em sua casa, Terezinha questiona a hora-extra e o trabalho noturno, dizendo que muitas, dentre as mulheres que conhece, “têm que cuidar dos filhos, trabalhar, pagar quem olha os filhos, ganhando salário mínimo... A lei é ter creche, mas a fábrica não cuida disso”. Parte de sua fala é ouvida em off, enquanto as imagens registram seu trabalho em casa, movimentando-se entre a cozinha e o quintal, onde lava louças em um tanque. 

Nesse paralelismo entre imagens do congresso, das fábricas e de Terezinha em sua casa, esse bloco desliza entre a pauta trabalhista e a feminista – mas será possível separá-las, em se tratando do trabalho das mulheres? Percebemos que as operárias, além do já árduo trabalho na indústria metalúrgica, perfazem uma jornada dupla devido ao trabalho doméstico e de cuidados. Ainda que não se detenha sobre essa duplicidade, mais interessado no debate sobre a desigualdade salarial e as condições de trabalho do operariado feminino nas fábricas do ABC, o filme de Olga e Tapajós sinaliza para o trabalho reprodutivo invisibilizado, historicamente atribuído às mulheres – tema fundamental de A dupla jornada (1975), de Helena Solberg, filme voltado para o contexto da América Latina (sem abordar o Brasil)⁴. Tanto Trabalhadoras metalúrgicas como A dupla jornada oferecem elementos para um debate essencial a qualquer abordagem feminista do trabalho: a sobreposição de trabalho produtivo e reprodutivo. 

O desenvolvimento do capitalismo acirra características do projeto patriarcal, como nos diz Silvia Federeci (2017), que chama a atenção para a nova divisão sexual do trabalho e para a exclusão das mulheres do trabalho assalariado (“destinadas” à reprodução). Essa divisão, “historicamente adaptada a cada sociedade”, tem por características “a destinação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutora e, simultaneamente, a ocupação pelos homens das funções de forte valor social agregado (políticas, religiosas, militares etc.)” (DELPHY apud DORLIN, 2021, p. 19). Desse modo, o trabalho doméstico projeta-se como um destino das mulheres, e as tarefas reprodutivas, naturalizadas como “não trabalho”, dificultam o seu acesso a atividades melhor recompensadas financeiramente. “Por trás de toda fábrica, de toda escola, de todo escritório, de toda mina, há o trabalho oculto de milhões de mulheres que consomem sua vida e sua força em prol da produção da força de trabalho que move essas fábricas, escolas, escritórios ou minas” (FEDERICI, 2019, p. 68). No Brasil dos anos 1970, a precária inserção da mão de obra feminina nas indústrias de ponta ainda é tratada pelos patrões, em termos salariais, como uma “complementação” à renda da família, supostamente calcada no trabalho produtivo dos homens – mesmo que muitas mulheres sejam as únicas provedoras de suas casas e famílias, como nos mostram os filmes de Futemma e Solberg. Essa jornada em dobro, produtiva e reprodutiva, não implica no reconhecimento e na valorização do trabalho doméstico: “Conseguir um segundo emprego nunca nos libertou do primeiro (...) apenas significou para as mulheres possuir ainda menos tempo e energia para lutar contra ambos” (FEDERICI, 2019, p. 69). O que dificulta também a participação política e sindical – a meta do sindicato, lembremos, seria justamente “integrar a mulher ao movimento trabalhista, reforçando a luta dos companheiros homens”.⁵

Feito esse breve recuo, voltemos ao filme. A sequência sobre a dupla jornada termina com mais um plano de trabalho feminino na fábrica: vemos, num ambiente sombrio e ruidoso, duas mulheres repetindo gestos em uma linha de montagem. Um corte seco promove um atravessamento radical: somos bruscamente transportadas para o gramado de uma localidade campestre, luminosa, onde acontece um churrasco. Na trilha sonora, “Não se esqueça de mim”, canção de Roberto Carlos. Imagens idílicas mostram mulheres deitadas na grama, sob o sol, ou descansando na sombra, namorando, crianças brincando ou dormindo, uma mesa com bebidas e carnes para o churrasco. Um novo corte na imagem nos reconduz à fábrica e a música persiste enquanto uma jovem trabalhadora manuseia uma máquina esfumaçada. A montagem passa a alternar entre imagens de descanso (cenas de praia também são mobilizadas) e de trabalho, “deslizando entre os pequenos momentos de prazer e o esforço do labor, entre o passeio do fim de semana e o chão da fábrica” (AMARAL, 2021, p. 211). 

Com essa sequência quase epifânica, vislumbra-se talvez o filme sobre as mulheres que Olga desejou fazer: um filme no qual as personagens não são figuradas exclusivamente como “operárias”, trabalhando na fábrica ou participando do congresso da categoria, mas também nos intervalos, em momentos de diversão e descanso. Um filme no qual coubessem os sonhos e os desejos das trabalhadoras – ou que reconhecesse que suas existências são integralmente “políticas”. Ao analisar Jardim Nova Bahia (Aloysio Raulino, 1971), Bernardet escreveu: “Raulino não quer reduzir seu personagem proletário ao trabalho” (2003, p. 129). Também em Trabalhadoras metalúrgicas, a resistência subjetiva das operárias do ABC não se exprime apenas no movimento organizado da categoria. Não por acaso, nessa sequência cessa a palavra, as queixas e reivindicações, e ficamos apenas com as imagens e com a canção (“onde você estiver, não se esqueça de mim”). Os planos no campo ou na praia parecem “sonhar” outro filme, no qual as trabalhadoras têm direito ao ócio... Contudo, intercaladas às imagens da fábrica, sugerem não apenas o que “vaza” (ao enquadre trabalhista do sindicato e do próprio documentário), mas também, por contraste, o tempo de vida consumido no trabalho incessante, insalubre e mal remunerado (a que se soma o trabalho doméstico e de cuidados invisibilizado).

Se o operário é “personagem emergente” no cinema brasileiro dos anos 1970 (BERNARDET, 1979-80), Trabalhadoras metalúrgicas nos apresenta operárias, cujas aparições eram ainda mais raras. E faz mais: não reduz sua abordagem à fábrica, o que confronta tacitamente a concepção de trabalho do próprio sindicato. É curioso, porque o filme resulta e se beneficia da produção fílmica associada à entidade de classe (em uma conjuntura de crescente mobilização popular e sindical no país)⁶. “Dado absolutamente novo no quadro do cinema brasileiro”, para Bernardet: nenhum dos filmes de Tapajós junto aos metalúrgicos organizados é “um estudo sobre o operariado, diferentemente de Viramundo que, até agora, constituía o principal documentário sobre o proletariado” feito no Brasil. Diferente disso, “são filmes envolvidos na ação, eles posicionam-se, e as posições assumidas não parecem resultar apenas de uma opção individual do cineasta, mas sim de um vínculo com tendências políticas existentes no meio operário, ou suas lideranças (...). Esses filmes atendem a uma circunstância precisa, visam a um público específico e pretendem alcançar um efeito determinado” (BERNARDET, 1979-80, p. 36). 

Motivado pela realização sindical do congresso, Trabalhadoras metalúrgicas, contudo, ultrapassa o vínculo com as lideranças para se construir sobretudo junto às falas das mulheres filmadas. “A barra tá muito pesada, meu marido ganha muito pouco, todo mundo tem que trabalhar”, desabafa Terezinha, trazendo sua vida pessoal para a última sequência de relatos, na qual se tematizam problemas de saúde das mulheres, precariedade da assistência médica, assim como todas as dificuldades impostas pela inexistência de creches e pela ameaça do trabalho feminino noturno. Entre muitas arbitrariedades, “algumas fábricas chegaram a demitir mulheres porque participaram do congresso”, diz a voz narradora, seguida pelo testemunho de uma mulher demitida. Entrevistada pela primeira vez, outra mulher (cuja fala tem teor e tom mais institucionais) busca sugerir que a sindicalização é a solução, abrindo passagem, na montagem, para a sessão de encerramento do congresso: “As trabalhadoras mulheres metalúrgicas deviam se unir mais e se associarem ao sindicato”, postula. Seguem-se aplausos no auditório, e a leitura do documento redigido pelas participantes do congresso (apresentado no filme pela voz narradora): 

As 400 mulheres reunidas no I Congresso da Mulher Metalúrgica, resolveram tomar posição: 1º) Por um salário igual ou de trabalho entre o feminino e o masculino. 2º) Por melhores condições de trabalho para todos os operários. 3º) Por creches, escolas-parques em condição de serem efetivamente utilizadas. 4º) Contra o trabalho noturno. 5º) Pela integração das companheiras trabalhadoras nas atividades sindicais⁷.

Segundo Krishna Tavares (2011), o congresso das metalúrgicas de São Bernardo iniciou um ciclo de congressos de mulheres em diversos sindicatos de São Paulo, com o propósito de discutir as mesmas denúncias e reivindicações. Mesmo assim, as resoluções do I Congresso da Mulher Metalúrgica não foram levadas adiante no III Congresso dos Metalúrgicos de São Bernardo, realizado no mesmo ano. Nada foi encaminhado para contemplar as pautas específicas levantadas pelas mulheres em seu próprio congresso (caso das demandas por equidade salarial e creches). Somente na campanha salarial de 1981, conduzida pelo Sindicato de São Bernardo do Campo e Diadema, constaria na lista de reivindicações uma pauta especificamente feminina: a solicitação de “estabilidade de emprego durante o período de gravidez e até 90 dias após a licença obrigatória”. 

Em paralelo às imagens do encerramento do congresso, vemos Terezinha preparando café em sua casa. Sua voz se torna narradora, enquanto ela comenta que o congresso foi “uma escola”: “Coisas que a gente não enxergava e agora tá enxergando. O congresso foi muito importante para mim, foi uma escola, aliás, acho que pra todas foi uma escola”. Entra na montagem o rosto de Lula, discursando no evento. Em mais um lance de montagem “institucional”, o aprendizado das mulheres é diretamente associado à liderança sindical. Mas o filme não termina com ele: um último plano em zoom out nos devolve ao interior de uma fábrica, onde uma mulher trabalha sozinha em meio às máquinas, imersas em ruídos. Sugestão de que a história não terminava ali, abrindo-se, para além do filme, ao curso do trabalho e das lutas. Em julho de 2023, 45 anos depois, cercado de mulheres, Lula, agora presidente do país (pela terceira vez) sancionou a Lei nº 14.611, que busca reforçar a garantia de igualdade salarial entre homens e mulheres. Fruto, é claro, das lutas de muitas, como aquelas metalúrgicas que, em 1978, ainda sob ditadura, ousaram se reunir e se manifestar. 

Currículo

Cláudia Mesquita

é professora do curso de graduação e do programa de pós-graduação em Comunicação Social da UFMG, onde integra os grupos de pesquisa Poéticas da Experiência e Poéticas Femininas, Políticas Feministas.

Notas

[1] Agradeço a Larissa Costa por sua leitura e contribuições.

[2] Para uma excelente apresentação da emergência dos movimentos sociais em São Paulo nos anos 1970, incluídos o novo sindicalismo, as associações de bairro e o movimento contra a carestia (protagonizado sobretudo por mulheres), ver “Quando novos personagens entraram em cena - experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo. 1970-1980”, de Eder Sader. 

[3] Parecia prevalecer, entre as lideranças, a visão de que reivindicar direitos específicos para as mulheres representaria uma ruptura com a suposta unidade da classe operária. Um texto hoje clássico, que avança no debate sobre a divisão sexual do trabalho nas indústrias do ABC, assim como sobre a participação das mulheres nas lutas sindicais, é “Masculino e feminino na linha de montagem” (1985), de Elisabeth Souza-Lobo e Vera Soares.

[4] Com o coletivo Projeto Internacional de Cinema Feminino, Helena Solberg – então radicada nos EUA – acompanha o dia a dia de trabalhadoras em seus ofícios nas fábricas e dentro de suas casas em cidades da Argentina, México, Bolívia e Venezuela. 

[5] Agradeço a Natália Marchiori pelas leituras e reflexões contidas nesse parágrafo, desdobradas do acompanhamento da elaboração de seu projeto de doutorado, no seminário de projetos de linha do PPGCOM/UFMG (2022). 

[6] Apesar do autoritarismo e da repressão do estado, emergia uma classe operária ativa e consciente, que não só lutava por melhores salários, como começava a reivindicar um papel político. Sobre o novo sindicalismo, ver SADER (1988).

[7] Segundo Katia Paranhos (1999), a quinta reivindicação, embora se tratasse de uma meta oficial do congresso, colocava desafios para o sindicato. Além da discriminação de gênero por parte dos homens trabalhadores e das próprias lideranças, as difíceis condições de trabalho para as mulheres nas fábricas, associadas às altas taxas de rotatividade (agravadas pela baixa qualificação da mão de obra feminina), constituíam obstáculos significativos para a sindicalização das mulheres. 

Referências

AMARAL, Leonardo. O despertar do sonho: trabalhadores e figurações oníricas no Cinema Moderno Brasileiro. Tesse (Doutorado) – PPGCOM, UFMG, Belo Horizonte, 2021. 

BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Cia das Letras, 2003.

BERNARDET, Jean-Claude.  Operário, personagem emergente. In: Anos 70 - Cinema. Rio de Janeiro: Europa, 1979-80.  

DORLIN, Elsa. Sexo, gênero e sexualidades: Introdução à teoria feminista. São Paulo: Editora Ubu, 2021. 

FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: Mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017. 

FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante, 2019. 

HOLANDA, Karla. Pegadas do cinema de Olga Futemma: entrevista. Juiz de Fora, Lumina, PPGCOM – UFJF, v. 14, n. 2, p. 171-185, mai./ago. 2020. 

OLIVEIRA, Vinícius Andrade. Intervir na História - Modos de participação das imagens documentais em lutas urbanas no Brasil. Tese (Doutorado), PPGCOM/ UFMG, Belo Horizonte, 2019.

PARANHOS, Kátia Rodrigues. Era uma vez em São Bernardo. O discurso sindical dos metalúrgicos de São Bernardo – 1971/1982. Campinas: Unicamp, 1999.

SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena – Experiências, Falas e Lutas dos Trabalhadores da Grande São Paulo, 1970-1980. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

TAVARES, Krishna Gomes. A luta operária no cinema militante de Renato Tapajós. Dissertação (Mestrado), ECA/USP, São Paulo, 2011.