Um dia na vida de Noah Piugattuk (Zacharias Kunuk)

traduzido por Júnia Torres

Um dia na vida de Noah Piugattuk, último filme de Zacharias Kunuk (Atanarjuat: The Fast Runner, Maliglutit) mostra as relações entre colonos inuits de forma a um só tempo humorística e trágica, ao tratar de uma tradução impossível entre dois mundos. O filme observa Noah Piugattuk (Apayata Kotierk) enquanto lidera membros de sua comunidade, jovens e velhos, na caça às focas que seus ancestrais desfrutavam. Mas quando um homem branco interrompe a alegria do clã em uma missão para persuadir Noah a se mudar para um assentamento em Igloolik, Kunuk, o diretor, apresenta um encontro que diz muito. Por meio das nuances das linguagens e da complexidade de traduzir conceitos tradicionais em línguas que carecem de palavras para expressá-los, o filme de Kunuk observa de forma pungente um momento histórico crucial em níveis micro e macro.

O dia de Noah começa quando ele come e bebe chá em seu igloo. Ele murmura para sua esposa sobre querer açúcar para sua bebida quente e começa o dia sentado em um silêncio feliz. O evento principal do filme mostra Noah ao embarcar em trenós puxados por cães com seus vizinhos. Depois de muito comer, beliscar peixe e saborear o dia, eles são interrompidos pela chegada de um homem branco grosseiro, interpretado por Kim Bodnia, da série Killing Eve (2018), apresentado simplesmente como “o chefe” por seu amigo Evaluarjuk (Benjamin Kunuk), que trabalha como seu tradutor. Ele ostenta um baú cheio de guloseimas açucaradas para atrair os inuit, mas o revólver em sua cintura diz mais sobre suas intenções e presença.

The Boss quer que Noah concorde em se mudar para o assentamento e, por meio da tradução de Evaluarjuk, tenta convencê-lo a fornecer uma “data de mudança” definida. Ele atrai Noah com a oferta de um barraco de madeira (alugado ao custo de dois dólares por dia quando Noah não paga nada na residência atual) em troca de estar perto de seus filhos enquanto eles frequentam a escola obrigatória. Algumas das proposições do Boss se perdem na tradução, no entanto. Evaluarjuk tenta simplificar a linguagem, ou talvez não entenda inteiramente os termos que o chefe pronuncia.

Mais frequentemente, as expressões e palavras não se traduzem de forma clara. Como “dinheiro”, que muitos dos inuit que ouvem a conversa não conseguem entender. É um termo alienígena. Outras trocas veem o equilíbrio de poder subvertido pela linguagem. Evaluarjuk e Noah referem-se ao chefe como Isumataq, que significa “chefe”, mas, como observa Kunuk, traduz-se literalmente como “ele pensa por nós”. Mesmo que Noah e companhia não entendam inteiramente o que o chefe está tentando vender, eles estão no jogo e o jogo tem sua comicidade trágica. Essa conversa acontece em tempo real e dura quase uma hora. Piugattuk é lento. O domínio do cinema lento de Kunuk encontra um trunfo em seu dom para a linguagem à medida que a troca entre Noah e o colonizador se desenrola em um ritmo irritantemente glacial.

De muitas maneiras, o filme se constitui de um equilíbrio de contradições. Dá a sensação de um documentário, mas cada tomada é deliberada e precisa. A história gira em torno de uma longa e frustrante tentativa de comunicação que ilustra de forma hábil a impossibilidade de uma conversa na qual nenhuma das partes pode, nem deseja, entender a outra. Um dia na vida de Noah Piugattuk destaca as falhas nas relações governo-indígenas com um aspecto de tragédia no contexto histórico mais amplo. Essa conversa estranha e perigosa, pelo menos inicialmente, parece nada mais do que uma conversa amigável. São essas contradições que o fazem um filme que atrai o espectador, tornando o que poderia ser monótono em cenas hipnotizantes e emocionantes. Essas pequenas dicotomias no filme ganham mais significado quando expandidas para as dicotomias maiores entre os Inuit e o Homem Branco.

A conversa central é filmada em momentos prolongados de beleza e silêncio, aprimorando os rostos dos personagens e mantendo o tempo. O efeito é duplo. Dá ao público tempo para contemplar as verdadeiras implicações do que está acontecendo. Qual é o papel da nossa cumplicidade em sua narrativa? Até onde chegarão as promessas de Boss? Isso é realmente uma necessidade? O que podemos aprender com essa história? Esses momentos de pausa também permitem que o público mergulhe na vida de Piugattuk, uma existência lenta e simples na qual a família é o mais importante. É aí que as apostas do filme realmente estão. Essa perspectiva dá uma visão rara de como o colonialismo significa para uma população indígena – algo que muitas vezes é incompreensível para quem está de fora.

Impulsionado por uma atuação convincente de Kotierk no papel-título, One Day in the Life of Noah Piugattuk é um valioso retrato de resiliência. Enquanto os filmes anteriores de Kunuk se basearam mais em elementos de mitos ou tropos de Hollywood com fatias de realismo, Piugattuk ancora-se em uma abordagem mais próxima ao docudrama. O estilo vérité de Kunuk ressuscita figuras reais e as histórias que o verdadeiro Piugattuk transmitiu às gerações futuras. Filmado na mesma terra onde Piugattuk desfrutou de sua vida nômade até se mudar para o assentamento para ganhar os parcos cheques do governo, o filme homenageia sua vida e a vida da comunidade inuit. Um dia na vida de Noah Piugattuk devolve seu herói à sua terra e reafirma os valores que Noah articulou de forma tão eloquente e paciente, mas que caíram em ouvidos surdos.

Currículo

Pat Mullen

é o editor da POV Magazine. Possui mestrado em Estudos Cinematográficos pela Carleton University, no qual sua pesquisa se concentrou em adaptação e cinema canadense. Pat também contribuiu para veículos como The Canadian Encyclopedia, Paste, That Shelf, Sharp e Complex. Ele é o vice-presidente da Associação de Críticos de Cinema de Toronto