Um sopro e uma luz pela autodeterminação dos povos e dos cinemas indígenas

Mais uma vez o forumdoc.bh organiza, agora na sua edição de 2023, um seminário em torno dos cinemas indígenas. A escrita no plural, “cinemas” e não “cinema indígena”, pretende dar conta da diversidade que tomou conta das formas e narrativas indígenas. Se o cinema indígena se iniciou lá nos idos anos de 1980, ou seja, há quase 40 anos atrás, a partir de uma perspectiva colaborativa, por meio do pioneirismo do projeto Vídeo nas Aldeias, hoje ele se ramificou através de distintos coletivos, feitos a muitas mãos pelos próprios indígenas, ou, ainda em perspectiva colaborativa, entre indígenas e não indígenas, mas também por meio da afirmação de autores e artistas dos mais diversos povos. Esse é o caso, por exemplo, do cineasta guarani Alberto Álvares, cujo filme mais recente abre o forumdoc.bh.2023.

A câmera é a flecha (Coletivo Kuikuro, 2022) é o título de um filme assinado pelo Coletivo Kuikuro de Cinema. Vejam bem, não é "A câmera como a flecha", e nem "A câmera e a flecha". "A câmera é a flecha", pelo menos para o cinema indígena. Mas poderia ser também, numa perspectiva indígena feminina cada vez mais presente, "A câmera é o cesto ou o cofo". Ou seja, trata-se, na verdade, dos cinemas indígenas, e não do cinema indígena. 

De qualquer maneira, a câmera é um instrumento de luta e de formação de alianças. Como diria o xamã e filósofo indígena David Kopenawa, "A câmera é uma flecha" para atingir o coração do homem branco, já que ele não tem coração, ou tem, mas quase nunca é atingido pelo apelo indígena que denuncia o massacre e o genocídio contra seu povo desde 1500! O Coletivo de Cinema Kuikuro é o desdobramento da criação, em 2002, da Associação Indígena Kuikuro do Alto Xingu (AIKAX). A AIKAX foi criada em colaboração com os antropólogos Carlos Fausto e Bruna Franchetto, com o objetivo de documentar e preservar a língua, a cultura e a história kuikuro. Takumã Kuikuro foi formado no contexto das oficinas do Vídeo nas Aldeias (VNA) e, hoje, é um dos mais destacados cineastas indígenas, com projeção dentro e fora do país. Além disso, Takumã foi o idealizador de um dos primeiros festivais de cinema indígena dirigido por um indígena no país, isto é, o Festival de Cinema e Cultura Indígena (FeCCI), que teve a sua primeira edição em 2022, na cidade de Brasília. O FeCCI tem por objetivo ser um espaço próprio de visibilidade para o movimento audiovisual indígena – promover, por meio do cinema e das artes, o pensamento e o fortalecimento da cultura originária. Seu lema é “do ancestral ao presente, do futuro ao ancestral”.

O filme A câmera é a flecha, num modelo bem próximo a uma reportagem de televisão, tem por mérito sintetizar de maneira cristalina um programa do cinema indígena de uma forma geral e, particularmente, do cinema kuikuro, qual seja, registrar e documentar a história, a língua, os rituais, as festas e os cantos, resgatar o conhecimento tradicional, valorizá-lo, mostrar dentro da comunidade indígena a sua própria imagem e, para fora, apontar a câmera (a flecha), denunciar e sensibilizar os brancos (não indígenas) sobre as mudanças climáticas e as catástrofes ambientais decorrentes do modo de vida deles: a floresta em chamas, os agrotóxicos que contaminam o solo e os rios, os fazendeiros que cercam e ameaçam invasão das terras indígenas! Inserida nas lutas dos povos indígenas por terra e territórios, a câmera torna-se um instrumento político, e não pode deixar de ser uma flecha para, ao menos, resistir ao prolongamento do colonialismo e adiar o fim do mundo.

Takumã Kuikuro assina a direção de dois outros filmes apresentados neste seminário: Território pequi (Takumã Kuikuro, 2021) e A febre da mata (Takumã Kuikuro, 2022). No primeiro, o cultivo do pequi no Xingu conecta patrimônio genético e patrimônio cultural – a arte de um vegetal semi-cultivado! No segundo filme, diante das mudanças climáticas e do aquecimento global, é preciso convocar a força espiritual e a pajelança para combater o fogo que avança sobre a floresta – ela vive a seca extrema e arde em chamas! É um filme antecipador sobre o futuro, um alerta sobre o que, mais gravemente, estamos vendo agora em 2023, a pólvora acesa pelo fenômeno El niño e o aquecimento da Terra provocado pela febre do homem-capitalista!

Takumã Kuikuro estará conosco numa mesa juntamente com Daniel Kuikuro e com a realizadora Kujãesage Kaiabi, debatendo o cinema indígena do Parque do Xingu! Kujãesage começou a atuar na área de audiovisual por volta de 2010, a partir de uma oficina ministrada pela cineasta Mari Corrêa. Já em 2016, fez o filme Meriup e, em 2017, dirigiu um documentário sobre uma festa tradicional do povo Kaiabi. Em 2018 realizou a cobertura da mobilização das lideranças indígenas no Acampamento Terra Livre em Brasília. Em 2020 participou através do projeto Vídeo nas Aldeias da oficina de audiovisual na etnia Enawene-Nawe. Atualmente Kujãesage faz parte da equipe de comunicadores da rede Xingu e tem filmado sobretudo o movimento de mulheres xinguanas. Ela virá ao seminário para nos apresentar e narrar sobre o os processos de realização do filme Syngjat (direção coletiva: Aruti Kaiabi, Ewa Kaiabi, Juirua Kaiabi, Mairiwata Kaiabi, Reai'i Kaiabi, Reiria Kaiabi, Rywa Kaiabi, Ukaraiup Kaiabi, Urukari Kaiabi e Wyiry Kaiabi​​), um filme resultante de uma oficina de formação audiovisual com as mulheres Kaiabi.

Para debater os cinemas feitos pelos e/ou com os Krahô, temos como convidados os diretores do admirável filme A chuva é cantoria na aldeia dos mortos (Messora e Salaviza, 2018), além de dois dos seus mais próximos colaboradores, Francisco Hyjnõ Krahô e Luzia Cruwakwyj Krahô. Eles vêm nos falar do cinema entre os Krahô e do seu filme mais recente, que teremos o prazer de lançar em Belo Horizonte, A flor de Buriti (Messora e Salaviza, 2023). Se o primeiro filme narra a história de um jovem da etnia Krahô e seu dilema entre se tornar xamã ou fugir para a cidade, o segundo filme trata de um massacre contra o povo Krahô cometido por fazendeiros da região nos anos 1940, seguido do drama dos filhos dos sobreviventes que são coagidos a se integrarem em uma unidade militar durante a ditadura brasileira. A diretora Renée Nader Messora trabalha com o povo Krahô desde 2010, especialmente engajada na criação de um coletivo de jovens cineastas indígenas desse povo. O coletivo denominado Mentuwajê Guardiões da Cultura propõe usar ferramentas do audiovisual para fortalecer a identidade cultural e a autodeterminação do povo Krahô. 

Pode-se dizer que o cinema (entre ficção e documentário) ou a cena filmada de Renée e João Salaviza estão profundamente engajados na colaboração e na mediação junto aos Krahô. Aliás, é numa entrevista coletiva com os realizadores de A flor de buriti, publicada no catálogo do forumdoc.bh.2023, que podemos nos aprofundar no tema do "trabalho coletivo" no cinema indígena e suas múltiplas e sutis costuras para produzir sentidos e relações. Numa edição escrita da fala, comenta um dos diretores: "Eu acho que A flor de buriti traduz uma espécie de inteligência coletiva, não só o inconsciente, mas uma inteligência coletiva dos Krahô, no sentido em que todos eles portam alguma coisa no filme. Nem sempre esse mosaico, essa constelação de vozes, que está ali falando e pontuando, nem sempre está em concordância. Aliás, quase nunca. Inclusive, as memórias históricas, elas são contraditórias". Ou seja, longe de ser uma panaceia ou algo fácil de ser alcançado, as múltiplas vozes e a perspectiva colaborativa são um desafio, que está posto desde a cena filmada até o corte e a montagem! 

No seminário "A camêra é a flecha, a câmera é a cesta", vamos mostrar e debater o cinema colaborativo krahô, vendo e discutindo dois filmes dos próprios Krahô. Em um deles, Cupē Te Mē Iquêtjê Jipej Catêjê – Homem Branco Massacrou o Meu Povo Krahô (Francisco Hýjnõ Krahô e Felipe Kometani Melo, 2023) –, vemos uma entrevista conduzida por Hyjnõ, que estará conosco no seminário. Ele se senta com a câmera para ouvir o seu avô Zacarias Ropkà, que foi sobrevivente do brutal massacre contra os Krahô na década de 1940, num depoimento que foi fundamental para a construção do roteiro de Flor de Buriti, no qual Hyjnõ também aparece como ator e corroteirista. O outro filme krahô, dessa vez contando com a colaboração do coletivo mebêngokrê de cinema, é o Ketwajê (Mentuwajê Guardiões da Cultura e Coletivo Beture, 2023), no qual é filmado um importante ritual Krahô de iniciação, que estava há dez anos sem ser realizado. Dois integrantes do coletivo Beture Mebêngokrê (Kayapó) de Cinema filmaram junto com os Krahô a festa e, posteriormente, editaram juntos na aldeia krahô Pedra Branca. Então, esse filme é resultado de um encontro mediado pelo cinema, um intercâmbio colaborativo entre realizadores destes dois povos: Krahô e Mebêngokrê.

O cinema indígena é múltiplo, e, por vezes, autoral. Aqui, a memória coletiva ou ancestral é a fonte de inspiração para trabalhos que buscam e articulam audiovisual e performance artística. O cinema de Olinda Tupinambá, que também estará presente neste Seminário, é a demonstração aguda de que as fronteiras entre as linguagens e as formas não são traçadas na concepção indígena. Mais do que isso, o recurso audiovisual se coloca ali como uma continuidade da luta para reflorestar não só a mente, mas a própria terra, que foi devastada pela colonização e pelo homem branco. Se o trabalho de Olinda Tupinambá pressupõe um diálogo com as artes ocidentais – para isso é necessário caminhar rumo às cidades, galerias de arte e festivais de cinema¹, percorrer espaços de concreto e florestas domesticadas –, essa viagem pressupõe um caminho de volta e de imersão na sua própria terra, na sua ancestralidade, na figura de Kaapora e outros personagens espirituais! O cinema de Olinda, como o de outras realizadoras, é também uma afirmação da perspectiva de gênero, revelando pontos de vistas das mulheres e da relação que esse fazer tem com a terra. O cinema também é a cesta que coleta sementes, alimentos, memórias, rituais, cotidiano, saberes. Um cinema de plantio e colheita.

"As mulheres são as guardiãs das sementes, somos nós que temos uma relação mais íntima com a terra, somos nós que nutrimos nossos filhos, mas também somos nutridas pela terra. É uma relação que nos aproxima dos elementos que compõem nosso planeta. Esse contato com a terra nos faz entender a importância de cuidarmos dessa diversidade que temos o privilégio de conhecer e conviver" (texto de Olinda especialmente escrito e publicado neste catálogo forumdoc.bh.2023)

Já no filme Quando o manto fala e o que o manto diz (Glicéria Tupinambá e Alexandre Mortagua, 2023), o espectador é levado a descobrir ou imaginar os processos técnicos de fabricação e ressemantização do manto tupinambá, o famoso objeto que foi pilhado pelo colonizador na sua invasão da costa brasileira nos idos de 1.500 e levado para os museus da Europa. Trata-se realmente de um engajamento e um ativismo contracolonial, feito de arte e política, necessário para uma retomada da cultura e para a demarcação do território tupinambá. No filme, um novo manto é tecido pelas mãos de Glicéria, ressignificado, a partir do tradicional e original, depois de ouvidas as gerações mais velhas de sua comunidade, de seguir suas próprias habilidades e intuições, enfim, depois de consultar os conselhos dos espíritos, os encantados. Nesse sentido, pensamos que a arte indígena contemporânea e o cinema indígena são, também, arte e performance, estética e política, ou, melhor, são cosmopolíticas, pois as informações dos mais velhos e dos ancestrais transmitidas pela oralidade ou pela energia cósmica são as fontes de criatividade e de invenção dos artivistas indígenas.

O cinema Guarani (Kaiowá, Nandeva, Mbya), de todos os cinemas indígenas, talvez seja o mais múltiplo e diverso, tanto no seu conteúdo quanto na sua forma, na perspectiva autoral ou colaborativa, nas redes de alianças e lutas políticas às quais se propõe a tecer ou travar. Nesta mostra-seminário, traremos para a discussão filmes e cineastas guarani e colaboradores, como Roney Freitas, diretor do filme Mborairapé (2023), que nos falará sobre a juventude e a música guarani no contexto urbano, o rap, nos apresentando uma nova forma entre a encenação e o documentário. Já o filme Mbyá' Nhendu: o som do espírito guarani (Gerson Gomes Karaí, 2022) nos introduz no universo musical mbyá-guarani, situado no Rio Grande do Sul, e nos conecta, através da música, ao mundo da religião, da política e do meio ambiente. Num outro filme guarani, Aguyjevete avaxi'i (Kerexu Martim, 2023), o espectador é convidado a pensar o cinema como semente plantada para brotar um modo de vida tradicional, numa terra arrasada pela monocultura do eucalipto (sem vida outra, sem espírito). Em contraste, nos é revelado que há uma variedade de milhos, alimentos dos humanos e dos seres divinos que possuem suas moradas no mundo celestial: "o milho passa por rituais e bênçãos desde o plantio até a colheita, quando a aldeia se junta para festejar", nos diz a sinopse desse filme.

Os realizadores indígenas e seus colaboradores não indígenas, vindos desses cinco coletivos de povos indígenas (Kuikuro, Kaiabi, Krahô, Tupinambá e Guarani), nos convidam a refletir a propósito da diversidade e da multiplicidade das maneiras de conceber e fazer o cinema-audiovisual indígena. De fato, aqui, menos do que um conceito, há uma mobilização de um meio expressivo, como diriam Els Lagrou e Lúcia van Velthem, para "condensar, transmitir e renovar – por meio da criatividade – os processos de pensar e de ver o mundo e a sociedade". Nisso, um objeto de arte indígena ou um registro fílmico são feitos para circular – e não para permanecerem embalsamados como múmias nos museus! Daí, de fato, esta mostra-seminário não poderia deixar de nos convocar para uma reflexão sobre o tema da "devolução das imagens" às comunidades indígenas de onde foram extraídas – e para onde devem voltar. Para essa reflexão, numa conferência final, contaremos com a presença incontornável de nosso amigo de longa data, cineasta e indigenista (feito na multiplicidade de corpos e imagens, junto aos povos indígenas), Vincent Carelli.

Há uma frase, ou um gesto, ou um grito entre nós, não indígenas: "nasci para brilhar", "então brilha". Tal gesto nos parece por demais egocentrado. Olhando do lado de lá, da perspectiva indígena, seria, pensando bem, "então circula" e conecte (para adiar o fim do mundo) a terra e o céu, a câmera e o ator/atriz, a pessoa que filma e a pessoa que é filmada, o espectador e o espetáculo, o visível e o invisível, a arte e a política.

O artista indígena Jaider Esbell gostava de dizer que "não há como falar em arte indígena contemporânea sem falar dos indígenas, sem falar de direito à terra e à vida”. É nesse sentido que as câmeras e os cinemas indígenas funcionam como ferramenta de luta, empunhada muitas vezes numa mão, enquanto a outra carrega um maracá, dispositivos para enfrentar a fúria do homem branco, para defender direitos e os territórios ancestrais. 

A câmera, enfim, não é um instrumento que porta em si mesmo os princípios de linguagem e pensamento dos brancos. Ela precisa se transformar num artefato da cultura de um povo para guardar sua cultura, trançar os seus saberes, expandir e circular as suas imagens, ativar forças bélicas contra os poderes que se atrevem a permitir que o céu desabe sobre nossas cabeças.

Como dizia outro antropólogo e artista indígena, Edgar Kanaykõ, há uma dimensão indissociável entre a estética e a política, e a câmera audiovisual funciona como uma ferramenta similar ao maracá e à borduna, meios para fazer festa e guerra, para capturar vestígios do outro (humano e mais do que humano) e para transitar entre o visível e o invisível. Ou, como ainda diria, novamente, Jaider Esbell, a arte indígena (no contexto contemporâneo) é uma armadilha para armadilhas.

Os cinemas indígenas são múltiplos, o que nos leva a expandir não só o conceito de cinema, mas também as suas funções, intraduzíveis em grande medida – "a câmera é uma flecha", a "câmera é um cachimbo", a "câmera é o cesto, ou o cofo", a "câmera é o mekarô, é o espírito do Karon".

Notas

[1] Olinda também atuou como curadora da Mostra Amotara, que provavelmente foi a primeira mostra a se dedicar de modo específico a filmes realizados por mulheres indígenas no Brasil e também a primeira a ter uma curadora indígena na idealização, contando com a coorganização de Joana Brandão e a parceira da Universidade Federal do Sul da Bahia (Cf. catálogo da mostra Amotara em: https://amotara.wordpress.com/).