“Uma outra história”: mulheres, cinema e vídeo no Brasil em redemocratização

Além do controle político, econômico e ideológico, o golpe militar de 1964 impôs ao Brasil 21 anos de um rigoroso controle sobre a população, seus modos de vida, suas vivências e suas organizações políticas. Do ponto de vista da luta social, foram anos de clandestinidade e de recuo estratégico, diante da violência instaurada no país contra partidos políticos e movimentos sociais. Em março de 1974, quando Ernesto Geisel assumiu o governo, cresce a pressão pela redemocratização do país, provocada pela insurgência popular, em face dos desmandos dos militares, e por denúncias dos atos repressivos do regime no exterior. O militar no comando, então, dá início a uma “abertura lenta, gradual e segura”. Esse momento do país coincide com conjunturas progressistas nos Estados Unidos e na Europa, que viviam intensamente a contracultura, a luta pela paz e os efeitos do Maio de 1968 na França. 

Do ponto de vista dos direitos das mulheres, diversos países legalizavam o aborto sob protestos massivos de mulheres, caso do Reino Unido, em 1967, da Suécia e da França, em 1975, e da Itália, em 1978. Ao mesmo tempo, 1975 foi considerado pela Organização das Nações Unidas (ONU) como o Ano Internacional das Mulheres, instaurando até 1985 a Década da Mulher, o que incentivou debates para diminuir as desigualdades entre homens e mulheres em todo o mundo, inclusive em países sob regimes ditatoriais na América Latina. Como parte das comemorações, no Brasil aconteceu uma reunião de mulheres na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no Rio de Janeiro, e o Encontro para o Diagnóstico da Mulher Paulista, em São Paulo, sob liderança de mulheres do PCB ou próximas a ele (TELES; LEITE, 2013).

No Brasil, portanto, como argumenta Cynthia Sarti (2001, p. 31), o feminismo, entendido pela autora como “uma experiência histórica que enuncia genérica e abstratamente a emancipação feminina e, ao mesmo tempo, atua dentro dos limites e das possibilidades [...] de se referir a mulheres em contextos políticos, sociais, culturais e históricos específicos”, surge como parte da esquerda, comprometido fundamentalmente com a oposição à ditadura e com as liberdades democráticas. Como fator a ser considerado, é real que mulheres de setores privilegiados da sociedade brasileira experimentaram, desde os anos 1960, mudanças efetivas em suas vidas, com o uso da pílula anticoncepcional e a entrada massiva de mulheres brancas na universidade: de acordo com Rose Marie Muraro, entre 1970 e 1975, o número atingiu 500 mil, passando para a proporção de 1:1 em relação aos homens (GONZALEZ, 2020). Em 1977, as mulheres conquistaram finalmente o direito ao divórcio, com a promulgação da Lei 6.515, que acabou, pelo menos do ponto de vista legal, com a noção de casamento indissolúvel. Joana Maria Pedro (2006) destaca que o ano de 1975 foi um marco na história dos movimentos feministas brasileiros, uma vez que houve a retomada de uma trajetória pública e a ampliação do campo político de atuação das mulheres. 

Com a anistia, em 1979, diversas exiladas voltam ao Brasil, inaugurando a década de 1980 com novos ares progressistas. O reencontro delas, que puderam experimentar organizações feministas de vanguarda e realidades com legislações mais avançadas, com mulheres que ficaram no país contribuiu para fortalecer o pensamento feminista, que se expandiu durante a década de 1980 para incontáveis organizações políticas, mistas ou auto-organizadas. O que antes era malvisto, já que ser feminista tinha uma conotação negativa, tanto para as forças de direita (por ser considerado um movimento imoral e perigoso) quanto para a esquerda mais ortodoxa (por ser visto como reformismo pequeno-burguês), passou a ser assumido por grupos e coletivos, abrindo espaço para a reivindicação de políticas públicas, em tempos de declínio do autoritarismo da ditadura, e para o aprofundamento da reflexão de gênero (SARTI, 2001). Nos anos 1980, os movimentos de mulheres no Brasil já eram, segundo Cynthia Sarti (2001, p. 41), uma experiência política e social consolidada – sindicatos, partidos políticos e associações profissionais passaram a incorporar o gênero como perspectiva de análise e, ao longo da década, grupos feministas se especializaram tecnicamente em organizações não governamentais ou em instituições cujo foco era a influência na construção de políticas públicas – processo denominado por Jacqueline Pitanguy (2019) como advocacy

Embora seja um avanço inegável, todo o processo de desenvolvimento da consciência feminista no Brasil durante esse período é contraditório e, por vezes, tende a homogeneizar na “mulher” sujeitos e corpos distintos, profundamente marcados por desigualdades de raça, classe social, sexualidade, idade e outras interseccionalidades. Como bem sistematiza Lélia Gonzalez:

Apesar dos aspectos positivos em nossos contatos com o movimento de mulheres, as contradições e ambiguidades permanecem, uma vez que, enquanto originário do movimento de mulheres ocidental, o movimento de mulheres brasileiro não deixa de reproduzir o “imperialismo cultural” daquele. E, nesse sentido, não podemos esquecer que alguns setores do movimento de mulheres não têm o menor escrúpulo em manipular o que chama de “mulheres de base” ou “populares” como simples massa de manobras para aprovação de suas propostas (determinadas pela direção masculina de certos partidos políticos). Mas, por outro lado, muitas “feministas” adotam posturas elitistas e discriminatórias com relação a essas mesmas mulheres populares. (GONZALEZ, 2020, p. 105)

As contradições do chamado “movimento feminista brasileiro” nos levam, portanto, a preferir termos no plural, como “movimentos feministas”, “feminismos” ou “movimentos de mulheres”, em respeito às diversas concepções e iniciativas surgidas nesse mesmo período, em paralelo ao feminismo dirigido por mulheres brancas e originárias das classes médias e altas, que geralmente “se esquece” da questão racial, “tipo de ato falho, a nosso ver, [que] tem raízes históricas e culturais profundas” (GONZALES, 2020 p. 102). Preocupadas com o recorte de gênero, os primeiros grupos organizados de mulheres negras durante os anos 1980 surgiram no interior dos movimentos negros. Como relata Lélia Gonzáles, nas participações em encontros e congressos feministas, as mulheres negras eram frequentemente vistas como “agressivas” ou “não feministas”, pela insistência no debate de que o racismo deveria ser considerado pelas lutas feministas.

Quando, por exemplo, denunciávamos a opressão e a exploração das empregadas domésticas por suas patroas, causávamos grande mal-estar: afinal, dizíamos, a exploração do trabalho doméstico assalariado permitiu a “liberação” de muitas mulheres para se engajarem nas lutas “da mulher”. Se denunciávamos a violência policial contra os homens negros, ouvíamos como resposta que violência era a da repressão contra os heróis da luta contra a ditadura (como se a repressão, tanto num quanto noutro caso, não fizesse parte da estrutura do mesmo Estado policial-militar). Todavia, não deixamos de encontrar solidariedade da parte de setores mais avançados do movimento de mulheres que demonstraram interesse em não só divulgar nossas lutas como em colaborar conosco em outros níveis. (GONZALEZ, 2020, p. 105)

No já citado encontro na ABI, organizado pelas feministas chamadas “ocidentais” por Lélia Gonzalez (2020), cerca de 20 militantes – que participavam dos históricos encontros na Universidade Candido Mendes, no Rio de Janeiro, onde uma nova geração negra passou a se reunir para discutir o racismo e suas práticas de exclusão – compareceram e apresentaram um documento em que caracterizavam a situação de opressão e exploração específica das mulheres negras (entre elas a professora Maria Beatriz do Nascimento). Nos anos seguintes, diversos coletivos de mulheres negras foram criados no país. No Rio de Janeiro, surgiram os primeiros deles: Aqualtune, em 1979; Luísa Mahin, em 1980; e o Grupo de Mulheres Negras do Rio de Janeiro, em 1982. Em São Paulo surge, em 1982, o Coletivo de Mulheres Negras. E posteriormente, no contexto da realização do primeiro Encontro de Mulheres de Favelas e Periferia, em 1983, surge o Nzinga - Coletivo de Mulheres Negras, que convergiu mulheres dos movimentos negros, de bairros e de favelas, entre elas a própria Lélia Gonzalez.  

Mulheres e a luta pela Constituinte

No processo de transição democrática, as eleições gerais de 1982 constituíram um divisor de águas no país, por serem o primeiro pleito, desde 1964, em que a população foi convocada a votar e, como resultado, a oposição à ditadura ganhou os maiores colégios eleitorais. O clima no Brasil, portanto, se esquentava não só do ponto de vista das lutas sociais, como também na disputa institucional. Nesse terreno fértil, feministas, ainda em 1982, fundam estruturas para atender mulheres vítimas de violência doméstica, como o Centro de Defesa dos Direitos da Mulher, em Minas Gerais, a Comissão de Violência, no Rio Janeiro, e o SOS Mulher, em São Paulo – deste último fazia parte Jacira Melo, uma das realizadoras que se valeu do vídeo em suas “experimentações feministas”. O avanço das ações de advocacy junto a governos possibilitou a criação, em 1983, do Conselho Estadual da Condição Feminina, em São Paulo, e do Conselho Estadual da Mulher de Minas Gerais. E, ainda, diante do crescente índice de violência doméstica e à publicização de assassinatos de mulheres, feministas demandam a criação de delegacias especializadas munidas do slogan “quem ama não mata”.  

Assim, os temas feministas da violência doméstica e do feminicídio – termo usado mais recentemente – se somavam a pautas relacionadas à legalização do aborto, ao direito a creches e à reivindicação de melhores condições de trabalho. A luta pela participação política das mulheres ganhou ainda mais força com as Diretas Já, campanha que envolveu todos os grupos de oposição ao regime, inclusive setores dissidentes, agenciando amplo apoio na sociedade civil. Como ressalta Jacqueline Pitanguy (2019, p. 85), durante a grande movimentação pelas Diretas, as mulheres organizadas em coletivos, grupos, movimentos sociais, associações e sindicatos participaram intensamente das lutas de rua e exigiram ainda a “redemocratização das instituições políticas e também das relações entre mulheres e homens, requalificando o conceito de democracia”. Apesar da Proposta de Emenda Constitucional Dante de Oliveira, que alterava a Constituição Federal e reinstaurava as eleições diretas para presidente da República, ter sido derrotada no Congresso Nacional, o peemedebista Tancredo Neves derrotou Paulo Maluf, candidato da ditadura, nas eleições indiretas, comprometendo-se em seu discurso da vitória em convocar a Assembleia Constituinte, ato realizado pelo seu vice, José Sarney, que assumiu a presidência após a morte de Tancredo. 

Nesse contexto de declínio da ditadura militar e de intensa luta política, surge no âmbito dos movimentos de mulheres a necessidade de se criar um órgão governamental de nível federal que tivesse a capacidade de propor um marco normativo para acabar com a discriminação de gênero e efetivar políticas públicas voltadas para as mulheres ou, em termos da época, para a “condição feminina”. Em agosto de 1985, a Lei 7353 cria o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), órgão federal com autonomia administrativa e orçamento próprio, organizado em comissões temáticas, como violência, saúde, creche, educação, cultura, trabalho, mulher negra, mulher rural e legislação, além de um centro de documentação e um setor de comunicação (PITANGUY, 2019). Segundo Jacqueline Pitanguy (2019), a criação do Conselho respondeu à demanda dos movimentos feministas, que acreditavam que a agenda de direitos das mulheres deveria ter condições objetivas para ser implantada. A autora sublinha, no entanto, que não havia unanimidade entre os movimentos quanto à criação desse órgão, visto que havia o risco real de cooptação.  

É preciso destacar que uma das primeiras ações coordenadas do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher foi construir um programa de ação voltado para a Assembleia Constituinte, cujos deputados e senadores seriam eleitos em novembro de 1986. Os slogans “Constituinte para valer tem que ter direitos da mulher” e “Constituinte para valer tem que ter palavra de mulher” resumiram esse trabalho do CNDM (PITANGUY, 2019). O Lobby do Batom, como ficou conhecida a atuação das mulheres ao longo de três anos até a promulgação, em 1988, da nova Constituição Federal, é considerado uma das principais ações de advocacy pelos direitos das mulheres na história do país. O processo foi inédito e possibilitou uma articulação estratégica entre diversas categorias de mulheres, como trabalhadoras rurais e urbanas, empregadas domésticas, profissionais de saúde e delegadas de polícia (PITANGUY, 2019). O Conselho “conseguiu, em uma época sem internet e com comunicações telefônicas bastante deficitárias, mobilizar mulheres de todo o país e sensibilizar setores diversos da sociedade para a importância de uma forte atuação naquele momento político” (PITANGUY, 2019, p. 86). Diversos eventos descentralizados foram organizados nas capitais, e foi aberto um canal direto com o Conselho, por meio do qual as mulheres podiam enviar cartas e telegramas com suas propostas. Um coletivo fazia a triagem do material e o organizava por temas, que seriam posteriormente analisados por um grupo de advogados voluntários.

Todo o engajamento dos movimentos de mulheres levou, sem dúvida, a um fato histórico: a eleição de 26 deputadas que compuseram a Assembleia Constituinte, o que significou um aumento percentual de 1,9% para 5,3% da representação feminina no Congresso Nacional. Apesar de, concretamente, esse número ser reduzido em termos absolutos, algo ainda atual no Legislativo brasileiro, houve um impacto direto na formação da bancada feminina e, consequentemente, no fortalecimento do lobby, do debate e da disputa por uma Constituição progressista (PITANGUY, 2019). Esse contexto da luta das mulheres pela Constituinte é documentado no filme Mulheres: uma outra história (de Eunice Gutman, 1988), produzido em película 16mm, com imagens captadas entre 1986 e 1988. O filme problematiza, por meio da montagem, a relação entre as manifestações massivas de rua, a participação política, a democracia e as desigualdades entre diferentes sujeitos, apresentando em paralelo imagens de parlamentares, trabalhadoras da limpeza, produtoras rurais, dirigentes feministas e lideranças do movimento negro. 

Logo no início do filme, o foco é a Marcha Fala Mulher, realizada no Rio de Janeiro em 1986. A câmera, posicionada no meio da multidão, nos dá indícios sobre a cena documental do período, especialmente aquela interessada em registrar ações dos movimentos de mulheres, ligadas a pautas feministas – algo que o vídeo, tecnologia mais barata do que o cinema, ampliou efetivamente. A diretora do filme, Eunice Gutman, foi uma das criadoras, em 1975, do Centro da Mulher Brasileira (RJ), considerada a primeira organização declaradamente feminista do país, e mais tarde também contribuiu na criação do Coletivo de Mulheres de Cinema e Vídeo do Rio de Janeiro, um dos primeiros grupos de mulheres cineastas do Brasil. 

A Marcha Fala Mulher, registrada nas imagens do filme de Eunice Gutman, foi uma das maiores manifestações de mulheres daquele período, clamando por maior participação política das mulheres e levantando bandeiras feministas. Em planos abertos e médios, identificamos a presença massiva de mulheres, a maioria branca e aparentemente de classe média. Os rostos de atrizes conhecidas, como Maria Padilha, Lúcia Veríssimo, Elizabeth Savalla, Lucélia Santos e Joana Fomm, ganham destaque. Uma das primeiras entrevistadas é uma mulher que amamenta seu bebê, enquanto diz sobre a importância da participação das mulheres na política e nos atos de rua. A sequência traz ainda depoimentos em close up de Lúcia Arruda, deputada estadual do Rio de Janeiro pelo PT, e de Benedita da Silva, então candidata a deputada federal, também pelo PT, no pleito que elegeria o Congresso Constituinte. Centralizada no enquadramento e mirando a câmera, Benedita faz seu discurso certeiro, chamando todas as mulheres à participação política, no bojo da campanha de 1986, enquanto, ao fundo, vemos e ouvimos o coro feminino entoar de improviso “O bêbado e a equilibrista”, canção de Aldir Blanc e João Bosco, eternizada na voz de Elis Regina como um hino de resistência à ditadura militar.  

As imagens da manifestação são logo contrapostas, por meio de um corte seco, a imagens de Brasília, com planos abertos que mostram a Esplanada dos Ministérios, já em 1987, às vésperas da sessão que dará início à Assembleia Constituinte. O interior do Congresso Nacional é apresentado vazio pela câmera posicionada no alto. A cena é tomada de repente pelas faxineiras, uniformizadas, que em um movimento sincronizado, cada uma em uma fileira, limpam os cinzeiros com um paninho e recolhem o lixo antes dos parlamentares chegarem. Apontam-se, assim, diferenças marcantes de classe e raça entre as trabalhadoras e grande parte das manifestantes que ocupavam as ruas da capital carioca. Aos poucos, o plenário vai sendo ocupado pela nova legislatura e, com o recurso do zoom in, a câmera procura as deputadas em meio aos muitos homens homogeneizados de terno e gravata. Se os congressistas são homens brancos, em sua maioria, cabe às mulheres negras o trabalho subalterno de limpeza. Por outro lado, e mais uma vez, nos deparamos, nas imagens das deputadas, com um perfil bem diferente das trabalhadoras que antes limpavam o lugar. São brancas, bem vestidas, provavelmente oriundas das classes médias intelectualizadas. Benedita, sem dúvida, é um ponto de luz no grupo das 26 parlamentares, como disse Lélia Gonzalez (2020, p. 256): “a Bené, nossa Bené, essa força, linda, maravilhosa aqui, que para nós é a mulher mais bonita da Constituinte, é a Benedita da Silva. Quer dizer, os crioulos todos acham isso. É só olhar para ela”.

Uma sequência de entrevistas com algumas deputadas federais, como Moema São Thiago (PDT-CE), Eunice Michilles (PFL-AM), Bete Mendes (PMDB-SP) e Cristina Tavares (PMDB-PE), que têm falas convergentes em torno do avanço da participação feminina no parlamento, decisiva para a construção da democracia no Brasil, dá o tom da bancada feminina: apesar das diferenças partidárias, há um interesse comum. As cenas das entrevistadas são entremeadas a imagens do Congresso, que vai ficando, aos poucos, lotado. Todas as parlamentares se dirigem à câmera, em uma mise-en-scène típica do sistema político brasileiro, que privilegia o discurso feito para a tribuna, com um linguajar próprio dos partidos políticos.

Figuras 1, 2, 3 e 4. Cenas de Mulheres: uma outra história (Eunice Gutman, 1988)

A sequência das entrevistas no Congresso é finalizada com o depoimento de Jacqueline Pitanguy, então presidenta do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), que acompanha do plenário a abertura da Assembleia Constituinte. Filmada em primeiro plano, vestida de rosa, Jacqueline relata, com um semblante feliz, a chegada da “nossa voz” à Casa, por meio dos movimentos e associações de mulheres, dos clubes de mães, grupos feministas, sindicatos, “movimentos femininos” dentro dos partidos políticos. Enquanto o áudio de sua fala, sobre a emoção e a esperança do momento político, é colocado em off, é apresentada a imagem do então presidente da República, José Sarney, chegando aplaudido à mesa diretora e instalando oficialmente a Assembleia Nacional Constituinte.  

Dois trechos do filme merecem ser destacados. Um deles é a entrevista com Jacqueline Pitanguy e o outro é a entrevista com Benedita da Silva. O contraponto entre as duas cenas nos ajuda a compreender as distintas origens do pensamento feminista no Brasil, bem como a capacidade de construção de alianças. O plano da entrevista com Jacqueline se inicia com a câmera posicionada à contraluz, frente a uma grande janela de vidro que ocupa a parede inteira da sala de seu apartamento. Ela e a mãe caminham bem-vestidas, com sapatos de salto, junto às plantas organizadas perto da janela. Jacqueline segura um regador e mostra à mãe como as plantas devem ser aguadas. Na cena seguinte, sentada elegantemente em seu sofá, Jacqueline narra diretamente para a câmera o processo de participação das mulheres desencadeado pelo CNDM, cujas propostas foram sistematizadas na “Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes”. O áudio da entrevista é utilizado em off, enquanto as imagens ilustram encontros, conferências e seminários que definiram as propostas no âmbito da saúde das mulheres, dos direitos das trabalhadoras, do combate à violência doméstica, do direito à creche e à educação, dos direitos específicos das mulheres rurais e negras.  

Já a entrevista com Benedita da Silva acontece nas ruas e becos da Favela do Chapéu Mangueira, no Rio de Janeiro. No plano inicial, captado em janeiro de 1988, Benedita é enquadrada em plano americano, vestida com uma saia vermelha e uma camiseta com a frase “apartheid não”, em referência à África do Sul e à luta internacional contra o racismo. Benedita toma a cena, ganhando evidência à medida que o zoom in a reenquadra, até seu rosto ganhar praticamente todo o quadro. Ela analisa a conjuntura política, a correlação de forças no Congresso, o machismo e o racismo da sociedade, e ainda ressalta as conquistas das mulheres, já que cerca de 80% das demandas presentes na Carta foram incorporadas na nova Constituição. Benedita ainda comenta sobre a capacidade de aliança entre os movimentos de mulheres, algo inédito na historiografia brasileira. Enquanto o áudio da sua fala é posto em off, imagens dela caminhando pelo morro, subindo as escadarias junto aos moradores, são entremeadas com fotografias de arquivo que registram a atuação das mulheres no Congresso, inclusive a própria Benedita sentada na cadeira da presidência da mesa diretora. Assim como a entrevista de Jacqueline Pitanguy, a de Benedita apresenta sua origem, seu contexto social. Inevitável a comparação, já que são duas lideranças dos anos 1980, aliadas, como mostram as fotografias e imagens de arquivo ao longo do filme. Cada uma à sua maneira, com seus trejeitos, suas mise-en-scènes, suas leituras políticas e suas habilidades de se dirigirem a distintos grupos, elaboram um discurso convergente em defesa da unidade em torno da luta pela democracia, pelos direitos das mulheres e pela nova Constituição.

Figuras 5, 6, 7 e 8. Jacqueline Pitanguy e Benedita da Silva em Mulheres: uma outra história (Eunice Gutman, 1988)

É com as imagens da luta pela aprovação das emendas populares, no Rio de Janeiro, que Eunice Gutman finaliza o documentário, numa perspectiva cíclica, em diálogo direto com a fala de Benedita da Silva, pouco antes apresentada. Benedita ressalta a inauguração de uma nova etapa política, que impõe a manutenção e a ampliação da luta popular. A câmera, mais uma vez, está no meio da manifestação, como quem faz parte e se compromete inteiramente com a luta pela democracia e pelos direitos das mulheres. No gesto da montagem, a cineasta não apenas registra, mas exercita um espaço de alianças insólitas, em termos de María Galindo (2021), entre os movimentos de mulheres, pois articula diferentes experiências de vida, contextos sociais, demandas políticas, posicionando as mulheres, sobretudo as lideranças, como Jacqueline e Benedita, lado a lado. Assim, o filme tenta dar conta de uma certa pluralidade de mulheres que coabitam, na medida em que se juntam para ocupar as ruas e exigir direitos, motivadas pelo interesse comum na luta pela nova Constituição Federal. Além da montagem, o comprometimento do filme com as alianças se faz notar na mise-en-scène das entrevistadas, que encaram a câmera e se dirigem, confiantes e seguras, às espectadoras.  

O vídeo e os movimentos de mulheres

Foi também durante os anos 1980 que o vídeo se popularizou no Brasil, tornando-se uma importante ferramenta para inúmeros coletivos de produção independente e movimentos sociais emergentes, inclusive os feministas, que encontraram na tecnologia uma maneira de registrar suas ações políticas e propor novas visões sobre fenômenos sociais. Nos Estados Unidos e na Europa ocidental, o vídeo, como campo de produção audiovisual, como destaca Yvana Fechine (2003), desponta 25 anos após o surgimento da televisão, justamente em contraponto a esse modelo de fabricação de imagens e narrativas. Ainda hoje, segundo a autora (p. 88), “o vídeo é tratado por muitos críticos e realizadores como uma espécie de contratelevisão, ou, quando muito, é associado à reinvenção da sua linguagem, à ideia de qualquer experimentalismo envolvendo seu aparato”. Assim, “procurando seu lugar entre a arte e a mídia, o vídeo acabou se afirmando, desde cedo, pela sua crítica contundente aos modos de produção tanto de uma quanto de outra” (FECHINE, 2003, p. 89).

A proposta estética do vídeo chega ao Brasil oficialmente em 1974, ainda muito mediada pelo acesso à tecnologia. As experiências de artistas brasileiros com as câmeras portáteis – esses que fizeram parte do que Arlindo Machado (2003) identifica como a primeira geração do vídeo brasileiro – só foram possíveis pelo acesso ao equipamento comprado em outros países, sendo que nem as emissoras de televisão utilizavam essa tecnologia. Os primeiros videoteipes foram realizados por um grupo do Rio de Janeiro, convidado para participar de uma mostra de videoarte na Filadélfia (EUA). Como relata Arlindo Machado (2003), somente os cariocas conseguiram viabilizar a produção, graças a uma portapack que o diplomata e diretor de cinema Jom Tob Azulay tinha acabado de trazer dos Estados Unidos. Em São Paulo, de acordo com Yvana Fechine (2003), as primeiras manifestações da videoarte só começaram em 1975, quando o Museu de Arte Contemporânea de São Paulo (MAC/USP) comprou uma câmera e a disponibilizou para artistas da cidade. Ainda de forma muito precária, essa primeira geração utiliza a tecnologia como um novo suporte para sua produção. Como destaca Arlindo Machado (2003, p. 15), em decorrência do baixo custo e da independência em relação a laboratórios de revelação e de sonorização, que funcionavam como centros de vigilância e de censura da produção durante a ditadura militar, a tecnologia do vídeo foi privilegiada pelo movimento artístico, considerando-se, ainda, as “características lábeis e anamórficas da imagem eletrônica, mais adequada a um tratamento plástico”.

Em 1982, chega ao Brasil o videocassete de uso doméstico e suas pequenas câmeras com gravadores-reprodutores. De acordo com o Censo de 1980, cerca de metade dos lares já possuía televisão, a maioria dos equipamentos ainda em preto e branco. Nessa década, surge uma nova turma de jovens realizadores recém-formados, interessados em explorar o vídeo como possibilidade de disputar a linguagem hegemônica da televisão. A segunda geração do vídeo brasileiro, a do vídeo independente, em termos de Arlindo Machado (2003), buscava transformar a imagem eletrônica em um fato da cultura da época, mirando na televisão, e não mais nos circuitos fechados dos museus e galerias de arte, se lançando na tendência ao documentário e à temática social. O vídeo pôde executar durante esse momento uma função cultural de vanguarda, de acordo com Arlindo Machado (2001), no sentido produtivo do termo, implicando a ampliação de horizontes, o questionamento da relação autoritária entre quem produz e quem consome, o que, no ideário dessa geração, forçaria mudanças na instituição convencional da televisão, engessada devido a interesses próprios do mercado.  

A produção independente ligada às organizações não governamentais, a sindicatos e centrais de trabalhadores, às associações de bairros, a movimentos de mulheres, negros, indígenas e sem-terra foi utilizada como uma “rede alternativa de comunicação aliada à luta pela redemocratização, às ações de educação e conscientização nas comunidades, à mobilização dos trabalhadores” (FECHINE, 2003, p. 101). Grande parte dos produtores de vídeo popular teve algum vínculo com a Associação Brasileira de Vídeo Popular (ABVP), criada em 1984. Segundo Henrique Luiz Pereira Oliveira (2009 p. 118), “o vídeo popular pretendeu se diferenciar do entretenimento e da notícia”, o que não se devia apenas ao tema e ao conteúdo das produções, mas dependia dos vínculos estabelecidos com as comunidades e com o público espectador. Apesar de muitos vídeos populares terem sido mostrados em festivais nacionais e internacionais, a tendência era a uma circulação restrita e exibição circunscrita a espaços organizados pelos próprios movimentos (FECHINE, 2003).

A tecnologia do vídeo permitiu um significativo avanço da cena documental no país, incorporando muitas mulheres realizadoras, com distintas relações com os movimentos sociais do período, na chamada segunda geração do vídeo. Como aponta Gilberto Alexandre Sobrinho (2016), mesmo com as recorrentes dificuldades de produção e circulação no Brasil, filmes de contestação produzidos em 16mm, com som sincronizado, desde o golpe militar, tiveram certo domínio masculino, ainda que algumas cineastas tenham sido pioneiras na realização de filmes de ficção e documentários, a exemplo das diretoras Teresa Trautman e Helena Solberg. Mas foi com a apropriação do vídeo que diretoras puderam explorar de forma mais ampla temas concernentes às mulheres, construindo uma história do documentário brasileiro a partir do olhar feminino, e feminista.   

A pesquisa realizada por Hanna Esperança (2020) identifica os anos 1980 como um período de intensa produção de documentários curtos feitos por mulheres, embora ainda haja escassez de estudos científicos sobre essa produção. Entre 1980 e 1989, as mulheres realizaram cerca de 30% de toda a produção de curta e média-metragem documental, de acordo com mapeamento realizado pela autora no Catálogo do Documentário Brasileiro. Parcela significativa dos filmes se relacionava com o contexto sociopolítico do país e do próprio movimento feminista, que criou uma demanda por documentários informativos e educativos (ESPERANÇA, 2020).

Maria Célia Selem (2013) ressalta que a demanda por vídeos com conteúdo feminista surgiu da própria atuação dos movimentos de mulheres e dos questionamentos da desigualdade de gênero na sociedade brasileira. As organizações de vídeo, de forma geral, atuaram para construir alternativas aos conteúdos televisivos e para produzir discursos pela legitimação de políticas públicas para as mulheres. Um levantamento realizado por Jacira Melo (1993), em sua dissertação de mestrado, listou 99 vídeos com temáticas relacionadas às mulheres, produzidos entre 1981 e 1992, entre obras documentais, ficcionais e registros de encontros e de experiências comunitárias, alguns com produção compartilhada ou assinada por homens. Dessas, 32 são assinadas por coletivos feministas e 21 por realizadoras. São Paulo e Recife/Olinda se destacam como centros produtores de vídeos, com a maior produção em termos quantitativos, sendo que a capital paulista concentrava durante o período pesquisado cerca de 50% da produção nacional. Em Recife, os vídeos eram produzidos pela organização não governamental Instituto Feminista para Democracia (SOS Corpo), em parceria com a produtora independente olindense TV Viva. 

  Em São Paulo, em 1983, foram criados os dois primeiros coletivos que articulavam feminismo e produção de vídeo: o Mulher Dá Vida, formado por pós-graduandas do Instituto Metodista de Ensino Superior, e o Lilith Vídeo, composto por mulheres que participavam da SOS Mulher, organização feminista que atuava na luta pelo fim da violência contra as mulheres. Jacira Melo foi uma das idealizadoras do coletivo Lilith Vídeo, composto também, inicialmente, por Márcia Meireles e Silvana Afram. Além de um espaço de organização feminista, o Lilith permitia a experimentação estética do vídeo de modo coletivo. O Lilith Vídeo produziu 14 trabalhos, entre eles Beijo na boca (1987) e Contrário ao amor (1986), de Jacira Melo.

Outra produtora independente que vale a menção é a Enugbarijo Comunicações, criada por Vik Birkbeck [ver entrevista neste catálogo] e Ras Adauto, no início dos anos 1980, no Rio de Janeiro. Apesar da proximidade com os movimentos de mulheres, a produtora atuava mais intensamente junto aos movimentos negros. Atualmente, mais de 3 mil vídeos, originalmente feitos em VHS, foram digitalizados e disponibilizados no Acervo Digital de Cultura Negra Brasileira (Cultne), projeto alimentado por Filó Filho, que nos anos 1970 criou a produtora Cor da Pele Produções. A Enugbarijo tem mais de 30 videodocumentários editados e diversos registros “brutos” que documentam manifestações, experiências de organização em distintos estados brasileiros, encontros e realidades sociais diversas. Entre os trabalhos, vale mencionar As kineastas (Vik Birkbeck, 1986), que propõe paralelos entre entrevistas com diretoras e produtoras de cinema de vários países, como as brasileiras Helena Solberg, Ana Carolina, Rose Lacreta e Lucy Barreto, a senegalesa Safi Faye, as estadunidenses Donna Deitch e Susan Seidelman, entre outras. 

Quanto aos registros de encontros, Vik Birkbeck esteve presente com sua câmera em diversos deles. Em 1985, por exemplo, aconteceu em Bertioga (SP) o terceiro Encontro Feminista da América Latina e Caribe. No arquivo do Cultne, está disponível um trecho do encontro que mostra Luiza Bairros, ex-ministra da Secretaria de Políticas Públicas da Igualdade Racial do Brasil (Seppir), entre 2011 e 2014, defendendo a necessidade de o movimento feminista encarar com seriedade as diferenças e contradições de classe e raça. “Creio que agora é o momento de nós começarmos a olhar o que existe de diferente, o que existe de aparentemente contraditório dentro do movimento”, disse, sob aplausos da plateia composta por uma maioria de mulheres brancas. Ao finalizar sua fala, ela convoca suas companheiras à frente e em coro cantam “Anônimas guerreiras brasileiras”, de Miguel Lagdbá, música que fez parte da peça Iyá ou Anônimas Guerreiras Brasileiras, montada pelo Grupo de Mulheres Negras do Movimento Negro Unificado (MNU) e encenada no Teatro do Centro de Cultura Popular Forte Santo Antônio, em 1982: “Luiza Mahin / Chefa de negros livres / E a preta Zeferina / Exemplo de heroína / Aqualtune de Palmares / Soberana quilombola / E Felipa do Pará / Negra Ginga de Angola / África liberta em tuas trincheiras / Quantas anônimas guerreiras brasileiras”.

Currículo

Larissa Costa

é jornalista e mestra em Comunicação Social pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (PPGCOM/UFMG). Pesquisa documentários brasileiros realizados por mulheres e a potência das imagens de instaurar experiências feministas, tanto políticas quanto estéticas. Atualmente é editora-geral do Brasil de Fato MG.

Referências

ESPERANÇA, Hanna Henck Dias. Diretoras brasileiras e a representação da mulher em documentários dos anos 1980. Dissertação de mestrado (Imagem e Som) – Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP. 2020.

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MELO, Jacira Vieira. Trabalho de formiga em terra de tamanduá: a experiência feminista com vídeo. Dissertação de mestrado (Ciências da Comunicação) – Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, 1993.

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SELEM, Maria Célia Orlato. Políticas e poéticas feministas: imagens em movimento sob a ótica de mulheres latino-americanas. Tese de Doutorado (História Cultural) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP. 2013.

SOBRINHO, Gilberto Alexandre. Questões de gênero: vídeos, documentários e mulheres no Brasil. In: SUPPIA, Alfredo (org.). Gêneros cinematográficos e audiovisuais: perspectivas contemporâneas. Bragança Paulista: Margem da Palavra, 2016.

TELES, Amelinha; LEITE, Rosalina Santa Cruz. Da guerrilha à imprensa feminista: a construção do feminismo pós-luta armada no Brasil (1975-1980). São Paulo: Editora Intermeios, 2013.