Yvy Pyte, o brilho contra as fronteiras

“Permanece a noite originária.” (Timóteo Verá Tupã Popygua, em Yvyrupa)

Sonhos são outra maneira de caminhar. Como os cantos, ao virem de longe e ao serem compartilhados, tornam essa uma caminhada coletiva. Em territórios há muito habitados e percorridos, os mapas que produzem desfazem as fronteiras. O que significa “sonhar em Guarani”¹? Talvez essa seja a pergunta que move Yvy Pyte, longa-metragem de Alberto Alvares e José Cury (2023), em um trabalho imaginado pelos dois há mais de dez anos, à beira de uma fogueira². Bem diferente, contudo, do sentido que se costuma conferir ao cinema como “máquina de sonhos”, aqui, ele trabalha por mostrar como se trata de um dispositivo muito concreto de perceber, percorrer e habitar coletivamente o mundo presente, a partir dos ventos que o passado nos sopra. 

Yvy Pyte se abre com o sonho pela voz diretor: o sonho de retornar – ou de “ir mais uma vez”, em suas palavras – às terras onde nasceu e passou a infância se liga ao sonho de voltar às terras de origem dos povos Guarani, e, para isso, o filme viaja, encontra e reencontra parentes, sejam eles Mbyá, Kaiowá, Paî ou Nhandeva, em dez tekoha³ no Brasil e no Paraguai. Trata-se assim de ultrapassar as fronteiras dos estados nacionais, as cercas das propriedades privadas e as classificações estritas, intransitivas às redes de trocas, de saberes e afetos. Sem deixar de se ligar ao passado, a origem é, antes, o que pulsa como história no presente, e o que se sugere como devir, busca coletiva (busca de um coletivo), vinculada à retomada dos territórios ancestrais, para que se possa viver o teko porã (modo de ser belo)⁴.

Em Yvy Pyte, a volta ao tekoha de origem do diretor e ao tekoha de origem de um povo – o Coração da Terra, o Umbigo da Terra – se relaciona, expressamente, ao devir guarani, à busca histórica e atual pela Terra sem Males (Yvy Marae'yn). Mas, se essa experiência se alia ao cinema, é para mostrar, muito concretamente, por meio dos longos percursos pelas estradas, das sinuosas e, não raro, íngremes trilhas pelas matas e à margem dos rios; por meio das conversas nos quintais, nos lajedos, à beira da fogueira e nas casas de reza, sempre ciosas com as palavras, ditas com calma e firmeza; por meio dos cantos e das danças que atravessam o dia e a noite, dos breves retratos que nos mostram rostos pintados para a guerra e para a festa; e mesmo por meio das imagens aéreas feitas por drone (transformadas por dentro, como veremos, pela palavra, pelo canto e pelas caminhadas), trata-se de mostrar, na companhia dos parentes que o filme encontra, que essa busca deve desfazer outra fronteira: aquela que a tradição cristã-ocidental forjou entre as dimensões imanentes e transcendentes da experiência. Seja no âmbito da experiência individual – o amadurecimento corporal-espiritual para se alcançar a imortalidade (aguyje) –, seja no âmbito da experiência coletiva, a busca pela Yvy Marae'yn está ligada às condições concretas para que ela se exerça, ou seja, ao tekoha e à possibilidade que ele oferece de retomada das matas, dos rios, das festas, do plantio do milho e da mandioca. Também à liberdade de se mover pelo território, encontrando nele o espaço para que a vida cotidiana seja um exercício de constante aprendizado, no intercâmbio entre homens, deuses, bichos e plantas. De uma dimensão a outra, da transcendência à imanência (ou, dito de outro modo, a transcendência que não existe e não se manifesta senão por meio da imanência), da espiritualidade à terra (espiritualidade na e por meio da terra), circulam as palavras e as imagens do filme.

Que essas dimensões se mostrem indissociáveis, palavras e imagens nos permitindo passar de uma a outra, faz desse um filme a um só tempo grandioso, amplo, extenso – “nosso modo de vida é muito comprido”, avisa Catalina Benites, Kunhã Rendy’i – e contingente, povoado de pequenas trilhas, de refúgios, recantos, adquirindo a escala “menor”, modesta, mas intensa dos encontros e reencontros. É nesse sentido que o sonho de um indivíduo ou de um grupo se vincula, por uma espécie de rede, ao sonho de um povo, que não é nunca totalitário ou totalizante, mas uma miríade de sonhos parcial e afetivamente compartilhados. Nesses trânsitos entre a grandiosidade das paisagens e da experiência histórica e a tessitura local dos percursos, algumas estratégias fílmicas se criam – o cinema a compor as “redes guarani”⁵, não sem deixar de se alterar, como tentaremos sugerir.

Sonhar o vento da Terra sem Males

Sob a imagem aérea de uma floresta, feita com o uso de um drone, ouvimos a voz que nos conta o sonho, em Guarani: retorno ao lugar de origem. 

Era um lugar bom de se viver, um lugar bonito para levantar nossa casa. Eu ouvia o canto dos pássaros, o sopro bom do mundo balançando as florestas. Eu sentia o vento da Terra sem Males em meu rosto, a sabedoria dos mais velhos guiando meus passos. Nesse sonho, eu encontrava meus parentes e eles brincavam e rezavam, me diziam que estavam felizes em me ver. Eu também estava feliz em reencontra-los. Fazia muitos anos que não os via e para mim era como se eu estivesse no meu lugar de alegria, bem ali, no Coração da Terra. 

A narração, aliada ao travelling lento e suave sobre o rio que serpenteia fluente pela floresta, a porção de terra que se abre para abrigar a bela casa de reza, tudo parece levar o filme à uma experiência idílica, aquela de Yvy Marae'yn, a terra onde nada perece, lugar de júbilo e bem-viver, tal como o sonho sugere. Mas não é bem esse o caminho que o filme seguirá: nem utopia, nem paraíso a ser finalmente alcançado. Yvy Marae'yn se desdobra, aqui, como devir no presente e como liame entre pessoas e povos, tantas vezes dispersados em sua experiência histórica. Logo na sequência seguinte ao travelling de abertura, o carro da equipe atravessa uma rodovia que corta a paisagem, enquanto ouvimos, no rádio, a música paraguaia cantarolada por Alberto Alvares, hábito, ele diz, que o mantém próximo ao lugar de onde veio. As infindáveis plantações de soja, o trânsito de caminhões e os slogans bolsonaristas dos outdoors nos sinalizam onde estamos.

Ali, duas histórias vão se cruzar: aquela de um mundo cortado por fronteiras físicas e simbólicas e aquela da origem de um mundo outro, anterior, no qual o Coração da Terra é ao mesmo tempo lugar sagrado e vivido cotidianamente, distribuído nos modos de vida dos vários tekoha que o filme visita. A um só tempo, morada dos deuses e dos homens, na medida em que, entre um plano e outro, há menos divisão do que trânsito, troca, transformação.

Onde a força brota

Ao reencontrar o amigo de infância, Roberto Carlos, agora uma liderança na retomada de Yvy Katu, na terra indígena de Porto Lindo (município de Japorã, MS), onde nasceu, Alberto Alvares lembra da vida dura das crianças no canavial, dos estigmas vividos na infância. Lembra os muitos parentes que se foram e que não puderam se reencontrar⁶.

Ao saber de Ture’i, aquele que, ainda menino, ajudou a criar, o rezador Aflício se alegra em exibir o pequeno refúgio, a casa onde os pais do diretor moravam. “Vamos ali ver minhas panelinhas”. Mostra então as plantas, os “bichinhos”, como ele diz, as casas feitas ao modo guarani, de bambu e madeira. 

Ao se despedirem, discretamente, Aflício se emociona com a visita dos meninos, agora adultos, cada qual à sua maneira, participantes da história guarani. Nesse momento de difícil e intenso retorno à casa dos pais, Alberto canta-reza em uma paisagem agitada pelo vento, uma forma de evitar que a tristeza tome conta do seu coração e de se fortalecer para a jornada por vir. Ali, como reitera o amigo, é o lugar onde “a força brota para você”.

A dispersão que marca a história de um povo, e que se manifesta nas trajetórias das pessoas e suas famílias – história que será, de diversos modos, violentada pelos processos de colonização e de esbulho das terras ancestrais – se duplica, mais adiante no filme, com o reencontro entre seu Valdomiro Flores, liderança espiritual do tekoha Guaiviry, no Mato Grosso do Sul, e o rezador Simório, no tekoha Kurijevy, no outro lado da fronteira com o Paraguai. O filme, comenta o diretor, se tornara o “sopro de bons ventos que nos levaram aos encontros de origem”. 

Ante a viagem – geográfica, temporal e também cinematográfica – de Valdomiro Flores, como não nos remeter pontualmente ao filme homônimo, dirigido por Genito Gomes e Johnn Nara Gomes⁷? 

Nesse curta, bastante distinto em seu propósito e formato, enquanto vemos o pôr-do-sol (o cocar do sol, kuarahy jeguaka) em travellings pela janela do carro, o rezador nos ensina sobre o Coração da Terra, ao mesmo tempo origem, deslocamento e retorno: “Como uma criança que engatinha, nós não vamos pra longe do Coração da Terra. (...) Não sabemos o que é dinheiro. Vamos a qualquer lugar e de qualquer lugar voltamos. Vamos até onde não tem fim. Se você não se sente alegre, dá uma volta e volta. Diz-se que sempre voltamos para onde está o Coração da terra”. O caminho, ele continua, não é reto, como a água de um rio que faz curvas, mas segue em frente. “Todos os rios, Pane Guasu, Panemi, Guarai, Guarairy e outros vêm e desaguam no rio Paraguai. E o rio Paraguai cai no mar, naquele mar.”

Novamente, chegamos ao tekoha por meio de um travelling aéreo, que se aproxima lentamente da casa de reza. A imagem se aterra em palavras de amizade e proximidade: “Eu gosto muito de vocês. Todas as pessoas daqui”; “Eu também sou assim. Sou desse jeito. Sou igual a você, meu amigo. Até o fim do mundo, eu gosto da pessoa”; “Eu cuido muito das minhas palavras quando vou falar de alguém”. Eles entram na casa de reza (ongosu, para os Kaiowá, e Paî, e opy, para os Mbyá) e “o tempo, que do lado de fora parecia correr a passos largos, tornou a se estender ali dentro, como se quisesse, o próprio tempo, ouvir toda a remontagem que os dois amigos fariam de suas vidas”⁸. Diante da inquietação do diretor – Nhanderu nos dividiu ou não nesse mundo? –, Simório parece ecoar as palavras de Valdomiro Flores – vários rios, o mesmo rio a desaguar naquele mar: “quando eu vou pra outro lugar, utilizo o teko de lá. Eu uso o teko de cada lugar. E quando eu entro aqui, no Coração da Terra, eu uso o teko daqui. Dentro desse grande território. São vários teko, mas todos têm o mesmo ponto final. Kotyju, só existe um. Guahu, só existe um. Só temos um modo de vida. Isso nos alegra muito”. Assim, continua, todos temos brilho próprio – nossa sabedoria –, que, mesmo não visto pelos outros (apenas pelos deuses), está por todo nosso corpo. 

Em um corte, a montagem nos leva aos relâmpagos que povoam o céu noturno, a nos lembrar, quem sabe, deste outro filme realizado no tekoha Guaiviry: na longa sequência final de Ava Yvy Vera – Terra do Povo do Raio. Antes de fazer a reza longa, Valdomiro Flores conversa com alguém fora de campo: “Cheguei no lugar do raio sem fim”, ele anuncia. “Onde é esse lugar onde os raios nunca acabam?”, o interlocutor pergunta. “É onde nossos parentes se encontram”⁹. Aqui também, em Yvy Pyte, passa-se do brilho de cada corpo, de cada pessoa, ao brilho que lampeja no cosmos. E o que o filme vai nos dando a ver, pouco a pouco, é que o encontro dos parentes já acontece, em uma rede de deslocamentos e trocas, cuja dimensão é sempre dupla, simultaneamente terrena e divina, histórica e metafísica.  

Sonhar e cantar o mapa: origem e fim

Reunir os parentes dispersos em diferentes territórios, reconstruir o mapa anterior às fronteiras impostas, voar livre sobre o lugar de origem. Manuseando o mapa da região, diante da ongosu, da chuva e do vento, Alberto Alvares reafirma o propósito do filme. Em uma espécie de cartografia contracolonial – ou uma contracartografia? –, Ivy Pyte vai nos sugerindo os gestos, os passos, os traçados e a materialidade desse mapa que se refaz: materialidade dos sonhos – aqueles que partem e aqueles que esperam (“Vocês não vieram à toa. Eu já tinha visto vocês no meu sonho”, dirá o rezador Avelino Verá, no tekoha Itanaramim); da terra, onde Genito Gomes redesenha o mapa com o dedo e nos pergunta: “havia fronteiras?”; onde as mulheres batem os pés e o takuapu, para ritmar, ao som do trovão, o canto e a dança; dos ventos (“que ficam nervosos porque a mata acabou”); das águas (yy), que, como nos ensina Eliel Benites, é a ligação de tudo (a terra, yvy, as árvores, yvyra, e os ventos, yvytu); e das encruzilhadas, onde se cruzam os quatro lugares sagrados: Ara Katu, Ara Jussu, Xiru Amba, Yvary Py. 

E se as imagens aéreas, feitas pelo drone, nos mostram à distância o curso dos rios, cortando o verde da mata com suas águas escuras, será preciso sempre retornar ao território, onde arduamente o percurso se faz pelas trilhas cerradas e entre pedras íngremes. Em uma dessas sequências, soando antes, ainda sobre o plano do drone, o canto dos rezadores acaba por alterá-lo por dentro, fazendo com que as imagens maquínicas, nascidas da guerra, feitas para a vigilância e o controle à distância, se tornem agora um dispositivo de passagem entre duas dimensões: a primeira, de amplitude histórica, nos mostra as terras sem fronteiras onde os Guarani habitaram e por onde livremente se deslocaram; e a segunda nos indica que essa paisagem histórica foi cantada por eles, ou seja, suas trilhas físicas e geográficas são também trilhas sagradas abertas pelos cantos. Vale aqui mencionar outro filme – Nũhũ yãg mũ yõg hãm - Essa terra é nossa¹⁰ –, no qual o canto sobre os planos aéreos feitos pelo drone torna a imagem, ali também, abrigo de uma dupla dimensão, histórica e cosmológica. 

Estamos na tekoha Pirakua (“buraco do peixe”, entre Bela Vista e Ponta Porã, MS), terra indígena retomada em 1985, às margens do rio Apa, guardando uma área de floresta, rios e cachoeiras. Alberto Alvares e Argemiro Escalante caminham por suas margens, subindo as pedras, guiados pelo canto. Perguntado pelo diretor-aprendiz se os antigos alcançavam o Coração da Terra pelos rios, o rezador responde que sim, que por meio da reza se vê o caminho: “Se você cantar pouco, você não enxerga. Se você só cantar, durante dois, três meses, já se mostra o caminho que você está pedindo”. “Assim eles caminhavam pelos brilhos das águas”, comenta o diretor, ao que o rezador responde: “Sim, o brilho vai acompanhando você.”

No paredão de Itaguy Mirim, próximo a Jasuka Venda, reencontramos o brilho de que são feitos os mapas guarani. Nesse lugar sagrado, guardado pelos marimbondos vermelhos, conduzido pelo rezador Ava Rendy Ju (Heleno Aquino), o grupo reza o nhembo’e para acalmar os guardiões e pedir permissão para admirar as inscrições, tão antigas “quanto o nascer do sol”. Nesses rastros, nos diz o rezador, o passado e o futuro se encontram. Vemos Alberto Alvares e Genito Gomes, intrigados, a tentar decifrar as mensagens deixadas pelos antigos. A operação do filme é fazer com que essa tentativa se opere no âmbito do sensível, no encontro entre o plano detalhe das inscrições e o canto que as anima. “E se um dia isso desaparecer, como será? Se destruírem isso...”, se inquieta Alberto. “Como dizem os brancos, vai chegar o fim do mundo”, responde o rezador. “Nós Guarani estamos em outros países para defender nossos territórios. Esse aqui é o Coração da Terra. É o começo e o fim de tudo. Aqui é a origem, daqui saem nossas palavras. As palavras nascem aqui. Os cantos também. O conhecimento e o nosso modo de vida nascem aqui”.

Palavras-pássaro, palavras-marimbondo

As palavras que nascem no Coração da Terra, junto aos pássaros, junto aos marimbondos, junto às pedras, e que se distribuem pelos diversos tekoha guarani, ganham no filme de Alberto Alvares e José Cury variadas cenas de enunciação. Poderíamos dizer que elas também constituem esse mapa sem fronteiras, no qual origem e mobilidade, passado e futuro, sagrado e cotidiano, humano e não humano, visível e invisível trocam constantemente de lugar. Se são enunciadas de modo zeloso – as falas cuidadosas constituídas por uma escuta, ela também, cuidadosa –, é porque se sabe que agem no mundo. Agem não a despeito de sua poesia – como se esta detivesse uma função exterior, meramente retórica –, mas porque a poesia se vincula a essa origem, que não cessa de pulsar e que emerge, se adensa e se intensifica no momento em que se fala. Palavras que, no caso de rezadores e rezadoras, estão em conexão com os deuses – são, de certa forma, sua presentificação –, não como expressão de uma transcendência, mas como palavras-pessoas-pássaros que estão no mundo e nele atuam. “Nossas palavras são pessoa”, dirá o rezador Argemiro Escalante. “Nosso espírito é um pássaro. Quando você entristece, seu pássaro-espírito quer voltar ao lugar. Os brancos chamam de alma e nós de pássaro. Palavras são pássaros”¹¹.

Palavras são pessoas; pessoas são pássaros; pássaros são palavras e, nesse complexo de transformações e transmutações, a terra – o Coração da Terra – é fim, devir e origem. Ou como compara o rezador Salvador Ramires, de Yvy Katu, “Os pássaros vão onde quiser. Eles são sem fronteiras. Hoje ele pode dormir onde encontrar uma sombra. (...) Nosso rezador dizia: ‘ali vivem nossos parentes. Vocês têm que procurar por eles’. E você quer ir nesse lugar, você quer ver isso. Vendo, você retorna para o lugar. Assim está acontecendo na nossa retomada”. Nesse contexto, diante da violação do direito às terras ancestrais, a palavra dos rezadores se torna palavra de guerra. 

Oscilando entre sua dimensão testemunhal, poética e profética, a palavra ganha no filme uma variedade de cenas, situações em que ela não apenas se torna coletiva, mas produz coletividades. Mesmo quando uma única pessoa endereça sua fala para a câmera, é um coletivo que povoa a cena. Na chegada da equipe em Jesuka Venda, sugere-se a dificuldade de acessar o território, já que a chave da porteira de entrada fica de posse do encarregado da fazenda. Ainda fora de campo, Catalina Benites toma a palavra para dizer que são eles os guardiões do espaço sagrado, seus verdadeiros donos. “Se formos falar sobre nossa vida, assim como nos ensinaram, começamos assim: ‘foi nosso Nhanderamoi Papa que enviou vocês aqui. Através disso, vocês conseguiram chegar no nosso território sagrado. O espírito iluminado de vocês chegou no nosso Amba. O brilho de vocês se elevou para chegar aqui.’”  

Se o cinema possui suas formas de construir cenas de palavra, aqui, elas ganham singularidade, dados os modos de enunciação próprios aos Guarani. Se uma cena testemunhal se cria – como aquela que reúne seu Valdomiro Flores, Genito Gomes e Tereza Amarília, ou aquela em que Valdomiro se encontra na casa de reza com o antigo amigo, o rezador Simório –, ela logo transita entre o sagrado, o poético e o político. A fala constitui antes uma cena de escuta, em que o olhar se desvia, mira alhures, para que se possa privilegiar o ouvido. Trata-se de uma cena concentrada na fala (todos escutam), mesmo que aparentemente disjuntiva no plano visível (não se devolve o olhar, nem se olha para o mesmo ponto).¹²

Poderíamos nos deter nessas várias cenas de palavra que emergem no filme, algo que não caberia nos limites deste texto. Apenas citaria algumas delas: as assembleias que, em seu formato emergente, breve, se vinculam às Aty Guasu, forma de organização política entre os Guarani e Kaiowá que tem na palavra e na presença sua força performativa¹³. Há conversas em grupo que surgem para o filme, provocadas por ele e, nesses coletivos, destaca-se seu caráter múltiplo, constituído por anciãos, jovens, crianças, homens e mulheres, não raro, na companhia dos bichos, com a mediação do petyngua e do maracá. Em inúmeras situações, a palavra se torna canto, seja aquele entoado por um rezador ou uma rezadora para a câmara, seja aquele que conduz a reza de um pequeno grupo, seja ainda aquele que move a dança e, nesse caso, a câmera é trazida para o interior da cena: ela dança, guerreia, será benzida. 

Mesmo quando silencia, para que um pequeno retrato se destaque – o rosto que encara a câmera, a face pintada para a guerra, uma máscara ritual –, a palavra continua a ser o que circula e o que ativa: palavra sempre situada – habitante – e que, ainda que emergente, mostra-se herdeira de uma história que vem de longe. Palavra que age e que, dadas as cenas variadas que ela constitui (e nas quais se constitui), traz como traço comum sua capacidade de mover a produção de uma coletividade. 

Flor e raio

Em sua releitura de Pierre e Helene Clastres, Renato Sztutman nos diz de uma “subversão do princípio de não contradição” próprio à palavra como forma de organização política “contra o Estado”. “A discussão, em ambos, P. e H. Clastres, sobre a resistência guarani ao princípio de identidade, e que vemos desembocar numa ideia de devir – no caso, um devir-não humano, um devir-divindade –, passa pela consideração de formas expressivas, como a palavra, fala e canto, e a dança”.¹⁴ São formas que expressam a aversão à univocidade do mundo, e ao princípio de identidade que impediriam ser homem e ser deus ao mesmo tempo, agir simultaneamente no plano da história e no plano do cosmos. 

Aqui, essa ação política, que é também criação estética, se daria como uma espécie de desdobramento (ombojera, em Guarani, que Clastres traduz como déploiment). “Nhamandu se desdobrando tal uma flor que se abre para a luz do sol; Nhamandu sendo ao mesmo tempo o sol e a flor.¹⁵ Construído em torno da escuta e da enunciação de uma “palavra habitante”¹⁶, não teria o filme organizado sua forma expressiva em torno desse “desdobramento”? Em sua mise-en-scène, trata-se de ver a fala se desdobrando e, ao se desdobrar, instaurar o próprio desdobramento da cena. Já a montagem, produz-se menos pelos sucessivos momentos de uma viagem, de uma busca, apresentando cronologicamente esses momentos, do que pela ligação sensível entre esses desdobramentos. Se a palavra “desabrocha”, “aflora” e se dela se desdobra uma cena (para que ela possa, na cena, se desdobrar), à montagem cabe avizinhá-las por meio de sua matéria sensível mesma: o brilho visível e invisível dos seres, das palavras e dos espaços. 

Talvez essa proposição não faça jus aos tantos momentos do filme em que a palavra precisa se debater contra as injustiças e violências do Estado e da propriedade privada. “Se a gente colocar os ouvidos na linha do mapa, será possível, lá no fundo, escutar os gritos de socorro”, nos diz Alberto Alvares, em sua narração. A palavra torna-se guerreira, insubmissa, menos desabrocha do que irrompe e lampeja. “Aqueles relâmpagos que vêm”, nos diz Valdomiro Flores, “nem todos conversam, mas o líder deles fala com os rezadores. Se ele tem um tipo de cocar brilhante na cabeça, não conseguimos olhar para ele. Assim como o brilho do sol.” 

Currículo

André Brasil

Professor do Departamento de Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais. Participa do Grupo Poéticas da Experiência (CNPq/UFMG), da equipe de editores da Devires - Cinema e Humanidades e do Núcleo de Antropologia Visual (NAV) da Fafich. Compõe o grupo de docentes da Formação Transversal em Saberes Tradicionais na UFMG.

Notas

[1] Refiro-me aqui à expressão de Karaí Mirim (Algemiro da Silva), em Sonhos e conhecimentos na vida guarani. In: Gallois, D.T.; Macedo, V. Nas redes guarani. São Paulo: Hedra, 2022.

[2] Como sugere a narração ao final do filme e como nos conta José Cury, a idéia de Yvy Pyte surgiu à beira da fogueira, em 2012, quando ambos se conheceram, em uma oficina (a primeira que realizaram) em Biguaçu, na aldeia do Sr. Alcindo Verá Tupã. O desejo de Alberto Alvares de retornar ao lugar onde nasceu (onde seu umbigo fora enterrado) se ampliou para uma espécie de filme de estrada (road movie) aos modos guarani.

[3] Tekoha: lugar onde se pode habitar, cultivando os modos de vida guarani.

[4] Segundo José Cury, a pesquisa de Eliel Benites em torno do teko araguyje (modo sagrado de ser), que passa pelo teko joja (modo harmonioso e coeso), foi uma importante referência para o filme. BENITES, Eliel. A busca do teko araguyje (jeito sagrado de ser) nas retomadas territoriais guarani e kaiowá. Tese defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal da Grande Dourados. Dourados (MS), 2021. 

[5] GALLOIS, D.T.; MACEDO, V. Nas redes guarani. São Paulo: Hedra, 2022.

[6] Yvy Katu, sabemos, é uma entre tantas retomadas que sofrem constantes ameaças e violências da parte de fazendeiros da região. A retomada foi feita em 2003 e em 2005; a demarcação foi aprovada pelo Ministério da Justiça, não tendo ainda sido, contudo, homologada. Em 2016, Fábio Vera e Gabriel Martinez, dois indígenas de Yvy Katu, foram assassinados e seus corpos foram encontrados, tempos depois, na fazenda Dois Irmãos. Conferir em BOMBA, Pedro. Indígenas Guarani Kaiowá do MS prometem resistir ao Marco Temporal. Este é um dos inúmeros textos que fazem parte do belo site do filme, que muito me auxiliou na redação deste texto. Disponível em: https://yvypyte.com.br/

[7] Yvy Pite – Coração da terra (Genito Gomes e Johnn Nara Gomes, 2020, 7 min.). 

[8] BOMBA, Pedro. Ir ao encontro dos encontros. Disponível em: https://yvypyte.com.br/texto/ir-ao-encontro-dos-encontros.

[9] Sobre essa cena de Ava Yvy Vera, seu processo de produção e tradução, ver OLIVEIRA, Luciana e VASQUEZ, Daniel. Aprender a Rezar Guarani Kaiowá: pedagogia decolonial e o fazer cinema como fórum cosmopolítico. In: Devires – Cinema e Humanidades (UFMG), Belo Horizonte, v. 15, n.1, jan./jun. 2018. Disponível em: https://www.devires.org/produto/revista-devires-v-15-n-1-dossie-pedagogias-do-cinema-i/.

[10] Nũhũ yãg mũ yõg hãm – Essa terra é nossa (Isael Maxakali, Sueli Maxakali, Roberto Romero e Carolina Canguçu, 2020, 70 min.).

[11] Nesse ponto, cito novamente a tese de Eliel Benites, especificamente no tópico: Guyra ypy: a origem e a ancestralidade dos pássaros, 2021.

[12] Remeto-me, neste ponto, a uma formulação afim, em outro contexto, feita por GUIMARÃES, César. Dar espaço ao lugar: a economia fotográfica de Marcela Bonfim. Anais do 31º Encontro Anual da Compós, Universidade Federal do Maranhão, Imperatriz, de 6 a 10 de junho de 2022.

[13] Sobre as Aty Guasu, cf. BENITES KAIOWÁ, Tonico. Ore ava reko: Luta dos Guarani e Kaiowá para manutenção de seu modo de ser e viver. In: GALLOIS, D.T.; MACEDO, V. Nas redes guarani. São Paulo: Hedra, 2022.

[14] SZTUTMAN, Renato. O desabrochar da palavra. In: GALLOIS, D.T.; MACEDO, V. Nas redes guarani. São Paulo: Hedra, 2022.

[15] SZTUTMAN referindo-se ainda a P. Clastres. O desabrochar da palavra, 2022, p. 183.

[16] Pierre Clastres citado por SZTUTMAN, R. O desabrochar da palavra, 2022, p. 181.