καταστροϕή: o fim e o começo

A história humana já conheceu várias crises civilizacionais, mas nossa civilização jamais enfrentou uma crise ambiental como esta que está em curso, e provavelmente não sobreviverá a ela.

Não estamos falando apenas do aquecimento global. Em setembro de 2009, a revista Nature Climate Change publicou um nº especial em que diversos cientistas identificam nove processos biofísicos do sistema Terra e buscam estabelecer limites precisos para esses processos, os quais, se ultrapassados, poderiam gerar mudanças ambientais insuportáveis: mudança climática, acidificação dos oceanos, depleção do ozônio estratosférico, uso de água doce, perda de biodiversidade, interferência nos ciclos globais do nitrogênio e do fósforo, mudança no uso do solo, poluição química, taxa de aerossóis atmosféricos. Segundo comentam os autores: "não podemos nos dar ao luxo de concentrar nossos esforços em nenhum desses parâmetros isoladamente. Se um limite for ultrapassado, outros limites também correm sério risco¹".

Acontece que podemos já ter saído da zona de segurança de três desses processos – a taxa de perda da biodiversidade, a interferência humana no ciclo de nitrogênio (a taxa com que N2 é removido da atmosfera e convertido em nitrogênio reativo para uso humano) e as mudanças climáticas –, e estamos perto do limite de outros – uso de água doce, mudança no uso da terra, e acidificação dos oceanos.

O que estamos presenciando, portanto, é a modificação radical das condições ambientais que permitiram o florescimento e a manutenção não só do nosso modo de vida atual (industrial, de produção e consumo globalizado), mas, dependendo de como as coisas se desenrolem, da civilização humana como um todo, em suas diversas manifestações (a cultura humana, ou a Cultura).

E entretanto, expressões como "catástrofe", "fim da civilização", ou mesmo apenas "declínio" provocam fortes reações de aversão, exceto quando se referem a catástrofes ancestrais, ao fim de outras civilizações ou ao declínio e extinção de populações de espécies vivas não humanas. Nós não podemos estar em declínio, e por isso a catástrofe não pode ser real.

Pior ainda: diante daqueles que levam a sério a gravidade da situação e propõem, como caminho alternativo, alguma forma de positivação da noção de declínio, repetem-se as reações indignadas, o que nos leva a uma constatação tão ou mais importante quanto aquela. Assim como já tivemos horror ao vácuo, hoje temos horror à limitação, ao decrescimento, à suficiência, à descida. Qualquer coisa que lembre esse movimento descendente é quase imediatamente associado à vontade de regresso, ao primitivismo, irracionalismo, niilismo, quando não ao fascismo. Só uma direção é pensável, aceitável e desejável, a que leva do negativo ao positivo: da posse de pouco à propriedade de muito, da baixa tecnologia à alta tecnologia, do local ao global, do nômade paleolítico ao cidadão cosmopolita moderno, do índio ao proletário civilizado.

Ao mesmo tempo, vimos assistindo nos últimos anos a uma curiosa proliferação de livros, filmes, blogs, movimentos e até revistas acadêmicas que parecem ir na contracorrente desse otimismo civilizatório. Do Institute for Collapsonomics ao livro de Isabelle Stengers, No tempo das catástrofes: resistir à barbárie que vem (2009), do livro Colapso: como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso, de Jared M. Diamond (2005), à revista de filosofia Collapse, da magnífica ficção de Cormac McCarthy, The Road (A Estrada) ao filme trash 2012, são inúmeras as narrativas que tematizam justamente a catástrofe e o fim do mundo. Essa movimentação não tem passado despercebida, é claro, mas é frequentemente reduzida ao epíteto "catastrofismo". Raramente se para para pensar qual a razão da forte atração, neste momento preciso da história, pelo tema do fim do mundo ou da civilização humana.

Na verdade, não se trata de um tema único, mas de um complexo de temas estreitamente relacionados. Para ficarmos apenas com alguns exemplos da literatura e do cinema, A Estrada narra o percurso de um pai e um filho numa terra desolada após um desastre ambiental global de causas indeterminadas, um mundo onde só restam alguns humanos, boa parte deles virados canibais; 2012 trata do colapso geológico do planeta, que só não leva ao fim instantâneo da espécie humana e da maior parte das outras porque o filme é muito ruim; O Dia depois de Amanhã encena um comportamento catastrófico do clima na Terra que seria o inverso do atual: o resfriamento global; o Planeta dos Macacos: A origem imagina uma série de experimentos científicos que acabarão por produzir um pós-humano inesperado, levando ao declínio a civilização humana e sua submissão à civilização dos macacos; o livro O Mundo sem Nós (The world without us, de Alan Weisman) descreve o destino do mundo após o fim da espécie humana, e como nossa marca sobre o planeta, que neste momento é tão grande que muitos consideram que estamos numa nova era geológica, o Antropoceno, entretanto levará um período de tempo proporcionalmente muito curto para desaparecer. E finalmente Melancolia, filme de Lars von Trier que marca nosso encontro com o fora absoluto, o choque da Terra com o planeta que inesperadamente cruza sua rota.

O que esses filmes e livros têm em comum é que todos procuram imaginar o que é ou será o mundo para além disso que nossa civilização hoje postula como eterno e, mais ainda, como a única alternativa capaz de corresponder ao que seria uma vida digna de humanos. Nenhuma das alternativas imaginadas é muito agradável, e algumas são bem piores que outras. O Dia depois de Amanhã imagina, como consequência de uma nova era do gelo, a inversão das relações políticas globais, com os norte-americanos, por exemplo, terminando como refugiados ambientais obrigados a pedir asilo ao governo do México. Em O Planeta dos Macacos, o mundo não será assim tão diferente do atual: a “natureza” será até mais próspera, e a Civilização na verdade continua, só que não mais com nossa espécie no comando. Há uma troca de perspectivas, e nós, humanos, passamos de predadores a presas. No livro (e filme) O Mundo sem Nós, desaparece o Homo sapiens sapiens juntamente com todos os traços de sua civilização, mas as outras espécies vivas estão mais felizes do que nunca. Em A Estrada, o que resta do mundo é o cinza e as cinzas, algumas palavras humanas que lutam para permanecer apesar do fim de seus objetos, e uns poucos homens que carregam o fogo e continuam, não se sabe bem por que nem para onde. Melancolia representa o colapso não só de nossa espécie e das outras, mas de Gaia ela mesma, que sequer terá a chance de encontrar um novo ponto de equilíbrio sem nós. É o fim absoluto.

Mas é entre as situações representadas em A Estrada e em Melancolia que me parece de fato se passar o que está em jogo nisso que podemos chamar de movimento global de “colapsonomia” (para tomarmos de vez emprestado o termo do Institute for Collapsonomics).

A Estrada representa um processo acelerado e extremamente perigoso de decaimento que não conseguimos frear, um pouco à maneira de Ubiq, de Philip K. Dick, em que os objetos vão envelhecendo, apodrecendo, num ritmo cada vez mais rápido e incontrolável, até finalmente percebermos que a morte não é, como pensávamos, um inimigo externo contra o qual estamos lutando em enorme desigualdade de condições, mas um inimigo interno: nós já estamos mortos, e a vida é o que passou para o lado de fora. Troca de perspectivas, mais uma vez: enquanto achávamos que éramos os campeões do mundo dos vivos, há muito já havíamos sido capturados pelo ponto de vista dos cadáveres. É bem parecida a situação de A Estrada, em que a morte o tempo todo ameaça capturar os poucos vivos que restam: ou retirando-lhes os objetos, a memória e a linguagem, ou transformando-os em comida de predadores canibais, ou penetrando seus corpos pela doença e pela fome, ou ainda, forma talvez mais perversa, roubando-lhes suas próprias almas. Em Melancolia, ao contrário, não há decaimento, não há passagem. O choque com o Fora tem a brutalidade do limite inegociável.

Isabelle Stengers de certa forma expressa essa ideia dizendo que o ponto crítico (no sentido matemático) que ameaça desestabilizar o equilíbrio atual do Sistema Terra, que James Lovelock batizou de Gaia, "separa nossa situação de algo difícil de imaginar". Não se trata de uma crise que vai passar, e em relação à qual pudéssemos dizer que um dia tudo voltará a ser o que era. E entretanto, se estivéssemos aqui simplesmente para constatar que o mundo vai acabar, não teríamos o que fazer senão talvez construir uma cabaninha como a que Justine constrói para ela própria, sua irmã e seu sobrinho aguardarem a chegada de Melancolia. Na verdade, aliás, não penso que a cabaninha mágica fosse uma fuga, o abrigo desesperado na irracionalidade, ou a exacerbação da negação (como sugeriu recentemente Bruno Latour no belo artigo “Waiting for Gaia”), mas antes um instante, um último instante, de pensamento hiperconcentrado.

Pois é esse encontro com nosso Fora, com o Fora de nossa civilização atual e do ambiente que a tornou possível e a sustentou durante milênios, que temos por tarefa pensar. Não como um puro exercício intelectual, mas porque desse pensamento (em sentido amplo), do pensamento de todos nós, talvez dependa como vamos fazer essa passagem e que outro mundo é possível "do lado de lá". 

É fundamental entender que não estamos diante de um problema apenas simbólico, ou de representação. Esse fora não é um fora posto por nosso pensamento, que em última análise significa o pensamento humano. Fim do mundo ou catástrofe, para nós hoje, é o encontro real, material mesmo, com o fora que se introduz em nossas vidas, e que não poderemos mais desconsiderar. É Gaia quem fala agora, e é melhor que "prestemos atenção" a ela, como diz Stengers. 

É nesse sentido que eu dizia no início que podemos falar em limites não apenas para nos referirmos aos limites naturais e físicos de nosso modo de civilização e do planeta, mas também no sentido de propor uma limitação, como forma de pensar uma saída pela via do declínio, ou antes da suficiência intensiva, como disse uma vez Eduardo Viveiros de Castro, em lugar da expansão e do progresso. É que "prestar atenção" e "declinar" (como estou entendendo aqui esta palavra) significa "descer" (no sentido antropofágico). E descer não significa voltar para trás, voltar a ser o que éramos, mas produzir novas formas de vida; significa entrar em outras formas de relação – com os outros homens, com a tecnologia, com o saber, com o mundo não-humano e seus muitos pontos de vista, enfim com a terra e sua diversidade constitutiva.

Descer é devir-outro, devir-menor, devir-índio. É também sair, com a condição de entendermos que sair não é transcender. Só temos um mundo, mas o mundo não se resume a nós humanos, e menos ainda a nós ocidentais urbanos corporativos globais. Sair é aterrizar. ATERRAR.

// Texto originalmente apresentado no Colóquio TERRATERRA, durante a Cúpula dos Povos, no Rio de Janeiro, em 15 de Agosto de 2012.

Currículo

Déborah Danowski

Professora Associada da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, atualmente pesquisa sobre o Antropoceno, o colapso ecológico e o negacionismo.

Como citar este artigo

DANOWSKI, Déborah. καταστροϕή: o fim e o começo. In: forumdoc.bh.2017: 21º Festival do filme documentário e etnográfico – fórum de antropologia e cinema. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2017. p. 125-129 [Impresso]; p. 127-131 [On-line].

Notas

1. Trabalho coordenado por Johan Rockström, do Stockholm Resilience Centre, “A safe operating space for humanity": 474. (http://blogs.nature.com/climatefeedback/2009/09/planetary_boundaries_1.html).