25 (1975-1977): encruzilhadas amefricanas

Quando assistiu ao filme 25 (José Celso Martinez Corrêa e Celso Luccas, 1975-1977), em 1977 ou 1978, a emoção que Lélia Gonzalez sentiu foi intensa, ao menos segundo seu relato sobre um dos trechos mais contundentes da montagem do filme: “quase chorei na primeira cena em que aparece o Samora Machel e que a trilha sonora tem Jorge Ben cantando Zumbi”, diz ela, em entrevista publicada no jornal Bagaço em 1978, reproduzida parcialmente no livro Cinema Ambulante, de Celso Luccas e Beatrice de Chavagnac (1982, p. 71). “Nesse momento quase morri”, continua Lélia, “porque aí você liga com o Brasil, quer dizer, o Samora Machel também é um Zumbi porque inclusive Zumbi era de ascendência Bantu como Samora Machel também é”. A emoção de Lélia decorre do reconhecimento de uma conexão. 25 pode ser considerado um exemplo significativo das frequentes experiências de conectividade transnacional e transcultural que marcam a emergência dos cinemas africanos. O filme mostra que esse tipo de conexão, eventualmente ligada aos engajamentos móveis do internacionalismo socialista ou das articulações terceiro-mundistas, pode emergir das contingências das encruzilhadas, nas quais, contemporaneamente, dois brasileiros podem se encontrar com Samora Machel e a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) – ou, extemporaneamente, o líder da FRELIMO que se torna presidente de Moçambique independente pode se encontrar e se confundir com Zumbi dos Palmares.

Apresentado pelo Teatro Oficina, renomeado como Oficina Samba de 1973 a 1979, 25 foi realizado por Zé Celso e Celso Luccas durante o exílio que os fez deixar o Brasil, separadamente, no final de 1974, em meio à ditadura civil-empresarial-militar (1964-1985), e irem para a Europa, onde se reencontraram em Portugal. Ali, realizaram O Parto (1974-1975), com base nos arquivos da Rádio e Televisão de Portugal (RTP). Articulando o registro direto de um parto ocorrido em 25 de janeiro de 1975, nove meses depois do dia 25 de abril em que o regime fascista foi derrubado pelos Capitães de Abril, com a remontagem de material de arquivo da RTP, O Parto antecipa importantes procedimentos de montagem disjuntiva que serão aprofundados em 25, assim como um tema central: a descolonização, que o curta relaciona à derrocada do fascismo.

Iniciado como um projeto da RTP, 25 conduz Zé Celso e Celso Luccas a Moçambique, às vésperas da celebração da independência em 25 de junho de 1975, e acaba se tornando uma das primeiras produções do Instituto Nacional de Cinema do novo país, depois que a RTP retira seu apoio à produção. Com efeito, o pertencimento múltiplo e instável de 25 está relacionado tanto ao seu processo de realização quanto à consistência discursiva e sensível de sua estrutura. Na edição 11 do jornal Versus, publicada em junho de 1977, encontramos um depoimento não assinado, intitulado “Festa e anti-festa e o azul de Rimbaud”.


Figura 1 – Diagrama da “Estrutura do filme ‘25’” (p. 159) publicado na contracapa do livro Cinemação (CORRÊA et al, 1980)


Em um comentário sobre a perspectiva de 25 a respeito da história e sobre a estrutura de sua montagem, tal como representada em um diagrama (Figura 1) que viria a ser publicado cerca de dois anos depois, na contracapa do livro Cinemação (CORRÊA et al, 1980), os dois primeiros parágrafos desse depoimento são:


A estrutura do filme 25 é uma espiral, que traduz os pontos, as diferentes etapas pelas quais passa todo um processo de libertação individual ou coletiva.

Essa estrutura de espiral é tirada do Ponto de Exu, que faz parte da cultura popular de resistência da escravatura no Brasil. Esse Ponto de Exu é um meio de informação e de comunicação, nascido e utilizado por cabeças diferentes das nossas. Ele contém, nele mesmo, a percepção dos processos dialéticos do movimento da luta de libertação. Ele contém uma ciência fundada sobre a prática e a teorização desse processo. (Jornal Versus, junho de 1977)


O que define essa “ciência fundada sobre a prática e a teorização” do “movimento da luta de libertação” que estrutura 25 não pode ser compreendido por meio da reprodução de categorias nacionais na classificação e fixação dos elementos culturais mobilizados pelo filme. Em vez de recorrer a esse tipo de categoria, falo em encruzilhadas cosmopoéticas, com o intuito de caracterizar 25 em termos estéticos e epistemológicos, buscando seguir seu movimento espiralar diante da história como giro e como gira revolucionária. É com a gira da revolução que o filme começa prolongando O Parto. Da “Re-vo-lu-ção” como pedagogia, passamos então à revolução como movimento do mundo. A fotografia do menino negro diante da câmera filmadora sustentada por mãos brancas parece se tornar legível como uma representação visual condensada do campo relacional (marcado pelo racismo) em que se inscreve 25 como processo.

Na partilha quase mística do movimento do mundo como revolução, o filme parte dos “últimos dias da cidade de Lourenço Marques” (atual Maputo, capital de Moçambique, então nomeada a partir do explorador português que adentrou o território no século XVI), para, em seguida, realizar uma reconstituição da história da colonização (baseada no extrativismo minerador, no racismo e na escravização) por meio da remontagem de imagens coloniais com imagens do presente, que é assim recolocado incessantemente em questão em meio à perspectivação da história que o filme elabora. Seu movimento se desdobra em 5 tempos (associados a vogais dispostas conforme o soneto homônimo de Arthur Rimbaud), insinuando uma linearidade cronológica que, contudo, se metamorfoseia em figura espiralar centrífuga.

Uma frase repetida pela voz de Zé Celso como uma espécie de ponto ou encantamento ritual é reveladora da relação que o filme estabelece com o passado, desde que seja lida em sua polissemia: “varrer as antigas imagens, varrer as antigas imagens”. O filme varre as antigas imagens em pelo menos dois sentidos do verbo “varrer”: em parte, no sentido talvez mais evidente, as antigas imagens são removidas e descartadas para dar lugar a novas imagens; ao mesmo tempo, contudo, trata-se também de sondar e analisar as imagens para torná-las visíveis de outras formas. O encantamento se desdobra dialeticamente entre varrer como descartar e varrer como analisar – e essa dialética permanece indecidível no decorrer do filme: sua montagem insiste em desordenar e perturbar uma série de imagens e sons do arquivo colonial-moderno, destruindo sua integridade e destituindo seu comando, sua arkhé, para dar lugar a novas imagens e à construção de uma nova sociedade; ao mesmo tempo, a montagem de 25 torna o arquivo visível e audível de uma maneira diferente, transformando suas condições estéticas e epistemológicas.

Algumas das encruzilhadas cosmopoéticas de 25 estão em jogo na polifonia e nas passagens entre línguas que definem o filme: na multiplicação do português pelas vozes brasileiras, portuguesas e moçambicanas, que ressoam a cada vez com seus diferentes sotaques, apontando para a adoção do português como idioma nacional pós-colonial no Moçambique; nas ressonâncias pontuais, mas contundentes, do inglês, sobretudo em canções de Billie Holiday; no recurso ao francês, que aponta para a história da produção, da circulação e do arquivamento do filme no Institut national de l'audiovisuel - Ina da França; mais significativamente, na pluralidade das línguas africanas e de suas derivas diaspóricas (convocadas sobretudo a partir de uma experiência que apenas apressadamente seria possível chamar de brasileira).

As encruzilhadas linguísticas são, frequentemente, atravessadas pelas encruzilhadas musicais do filme. Assim, “Strange Fruit”, de Billie Holiday, aponta de modo decisivo para as lutas por direitos civis e políticos para a população negra dos Estados Unidos. A canção de Ruy Mingas, “Monangambé”, convoca a luta pela independência de Angola. A bossa nova de João Gilberto, em que estão em jogo, em parte, memórias de um Brasil tomado pela ditadura militar, realiza uma transcriação de ritmos sincopados de tradições musicais afro-brasileiras. Há também dois exemplos que apontam para o contexto brasileiro de outra forma: o dos cantos religiosos afro-brasileiros e o da canção “Zumbi”, de Jorge Ben Jor.

Quando reconstitui a repressão da resistência à colonização por Mouzinho de Albuquerque, por exemplo, o filme recorre a imagens de um filme colonial português, Chaimite (1953), de Jorge Brum do Canto, e à gravação de um ponto de Exu. Para perturbar a perspectiva épica de consagração da vitória do colonialismo de Chaimite, 25 endereça sua remontagem a uma espécie de extracampo contracolonial, representado pelo plano intercalado e descontínuo do rosto de um homem que sustenta seu olhar para a câmera. Ao discurso explícito e ao extracampo contracolonial decorrente da montagem imagética, acrescenta-se a articulação disjuntiva das músicas, na qual a persistência de um ponto de Exu desconstrói a encenação da derrota da resistência, em uma reescrita da história na qual, como diz o aforismo nagô, “Exu matou um pássaro ontem com a pedra que atirou hoje”. Na remontagem anarquívica de Chaimite, o canto para Exu, que remonta à diáspora iorubá no Brasil, introduz uma dissonância inventiva e mata o pássaro colonial.

Ao varrer as imagens coloniais, 25 procura construir um outro olhar sobre elas e introduz novas imagens do Moçambique independente, mas permanece irredutível, igualmente, à arkhé nacional que tende a recapturar o processo de transformação radical associado à descolonização. Se, conforme Matheus Serva Pereira (2021), a FRELIMO pode considerar que 25 não corresponde ao seu programa ideológico, é em parte porque o filme opera de forma não didática e não linear. Mas é também porque, em suas dimensões sensíveis, o filme permanece, assim, irredutível ao projeto de construção nacional, com o qual compartilha, contudo, parte considerável de seu discurso. Restam nas imagens e sons de 25 vislumbres de um mundo (ainda) não realizado, cuja mônada sem nome se insinua quando o filme relaciona Samora Machel e Zumbi dos Palmares por meio da canção “Zumbi”, de Jorge Ben Jor, que se torna uma canção sobre a figura de Samora Machel.

Não há identificação estável entre Samora e Zumbi. Samora Machel aparece variavelmente como herdeiro de Zumbi e sua ressurreição, força fundadora de uma nova nação contemporânea e potência de retomada de uma coletividade extemporânea. No anacronismo de seu devir-Zumbi dos Palmares, Samora Machel também inscreve, em 25, uma potência de descentramento da forma nacional pela inventividade informe resguardada na memória dos quilombos, em que está em jogo uma multiplicidade de mundos. É em uma categoria central do pensamento de Lélia Gonzalez que encontramos, talvez, um termo mais preciso, em função de sua instabilidade constitutiva, para pensar a relação entre Samora e Zumbi, assim como a escrita da história que 25 elabora: a “categoria político-cultural da amefricanidade” (GONZALEZ, 1988). Não se trata de afirmar que 25 é um filme amefricano, em um gesto classificatório, a não ser que se queira reduzir tanto o filme quanto a amefricanidade a formas fixas. As encruzilhadas cosmopoéticas de 25 inscrevem no filme registros sismográficos das vibrações móveis, das frequências inaudíveis e dos deslocamentos profundos da história da amefricanidade.

Currículo

Marcelo Ribeiro

é professor de História e Teorias do Cinema e do Audiovisual na Universidade Federal da Bahia, onde coordena o grupo (an)arqueologias do sensível (gas.ufba.br). Autor do livro Do inimaginável (2019) e de capítulos e artigos, mantém o site incinerrante.com.

Referências

CORRÊA, José Celso Martinez et al. Cinemação. São Paulo: Cine Olho Revista de Cinema - 5o tempo - Te-Ato Oficina, 1980.

JORNAL VERSUS. Festa e anti-festa e o azul de Rimbaud | Depoimento - 1. Jornal Versus, jun. 1977, p. 4. Disponível em: http://www.marcosfaerman.com.br/Versus11.html?vis=facsimile. Acesso em: 4 out. 2024.

GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, v. 92/93, p. 69-82, 1988.

LUCCAS, Celso; CHAVAGNAC, Béatrice De. Cinema ambulante. São Paulo: Global, 1982.

PEREIRA, Matheus Serva. História social de um documento global: trajetórias do filme 25 e a escrita da história da África pós-colonial (Moçambique, Brasil e Europa - 1974-2019). Esboços: histórias em contextos globais, v. 28, n. 48, p. 447-470, 2021.