No museu dos dias, as ruínas do futuro nos exigem:
Olhem. Mais do que isso. Percebam. Movam-se. Comovam-se. Rebobinem, acelerem, desacelerem, rasurem o que sobrou para que o tempo dos arquivos seja todos os tempos. Mais do que isso, para que os arquivos suguem o próprio tempo e preencham o pulmão da História com o ar granulado da poeira dos escombros e das cinzas dos incêndios. É com esse espírito anárquico, mas rigorosamente calculado, que as imagens são montadas no radical exercício de produção de contra-arquivo em A Fidai Film (2024), décimo filme de Kamal Aljafari. Propositalmente se recusando a nos oferecer as referências oficiais das imagens que recolhe no caminho, Aljafari mais uma vez produz uma Palestina de dentro da densidade das imagens que sobraram, mas, agora, faz isso de forma ainda mais arriscada: misturando as imagens registradas pelo colonizador sionista com aquelas das câmeras que, por muitos anos e até hoje, operam como armas de resistência.
Mas não apenas isso: ele produz manipulações nessas imagens a ponto de instituir essa outra temporalidade do arquivo que, em lugar de apontar para o passado, está sempre nos sussurrando sobre o tempo que, todos os dias, está se reencenando. A questão do arquivo, nos lembra Derrida (2001, p. 50), não é uma questão do passado. “Trata-se do futuro, a própria questão do futuro, a questão de uma resposta, de uma promessa e de uma responsabilidade para amanhã”. Manipulações de ritmo, de cor, de rabiscar para apagar alguns índices e desapagar o que está por trás deles, de criar sonoridades específicas para esses movimentos sem som, de deslocar o som do arquivo de suas origens e fazer com que eles habitem outros espaços da imagem.
Prefácio: a densidade de ruídos riscados e granulados, índices aqui e ali de incêndios e explosões. Aljafari produz muitas histórias com o uso desses ruídos em seus filmes, neste caso usando as modulações sonoras criadas pelo artista Attila Faravelli. Logo após os barulhos, o falso silêncio por trás da voz de uma criança que canta os refrões de uma famosa brincadeira infantil árabe: Taq Taq Taqiyah. Isso não está dado já no começo do filme, mas o jogo consiste em uma roda de crianças sentadas enquanto uma delas corre ao redor com um pequeno objeto na mão. A criança que canta Taq Taq Taqiyah corre em círculos e precisa depositar esse objeto atrás de uma das outras crianças sentadas sem ser notada. Se ela completa uma volta sem que a outra note, pode tomar seu lugar e ganhar o jogo. Mas se a outra criança nota que um objeto foi colocado atrás dela, ela pode se levantar e correr para pegar a outra sem que ela ocupe seu lugar. É uma brincadeira de preencher espaços vazios e povoá-los a partir de movimentos astuciosos. Tal como combinar uma sequência de mulheres da resistência armada palestina sentadas em roda com, finalmente, a imagem de meninas brincando em câmera lenta de Taq Taq Taqiyah. Essencialmente, eis aí a ação no mundo do cinema de Kamal Aljafari.
Duas palavras reverberam: manipulação e recusa. A decisão de fornecer referências contextuais para as imagens convocadas, embaralhando texturas e pontos de vista divergentes diante do que é posto em tela, parece caminhar lado a lado com o exercício de recusar o próprio apagamento que se impõe como prática dominante. Apagar o apagamento, por assim dizer, tal qual os rabiscos vermelhos que cobrem vigorosamente os letreiros dos registros oficiais, nos planos que dão início ao longa. Nesses traços feitos à mão, o procedimento crítico ressalta a dimensão artesanal dessa luta contra as máquinas do poder (seja um aparato de guerra ou uma câmera cinematográfica), sem que o caráter manual diminua a sua eficácia, pelo contrário.
O próprio fato de que a cor que risca e/ou borra a imagem é a cor vermelha diz sobre que tipo de ênfase que se impõe. Vermelho sangue, vermelho alerta, vermelho como a inequívoca cor da História. Esse gesto demanda novas estratégias de lida com um material díspar; requer navegar por entre fragmentos de modo a conhecê-los a fundo, mergulhar nas suas instabilidades. Mas imiscuir o registro de opressores com as perspectivas das resistências é algo arriscado, uma vez que as contaminações que daí resultam não são totalmente previsíveis, controláveis. É necessário estar atento para deixar-se perder por entre essas imagens. O filme nos convida a embarcar em seu fluxo ambíguo de imersão e questionamento, em que o desejo de controle e a abertura para o imponderável convivem em uma tensão irresolúvel. Ao abdicar da ancoragem de uma narração explicativa, falada ou escrita, o longa de Aljafari nos lança a um lugar de espectatorialidade ativo e desconfortável, sem que as regras desse peculiar dispositivo sejam de fato explicitadas. Uma aposta que faz ruir as lógicas de oposições binárias – inclusive, entre vítimas e algozes – que por tanto tempo homogeneizaram a complexidade dessas histórias, agora reclamadas filmicamente.
Alguns marcadores importantes: em 1968, Vladimir Tamari, que nos anos anteriores trabalhava como fotógrafo e cineasta a serviço da UNRWA (Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente), decide tomar para si a narração daquilo que ele filmava e era utilizado a serviço de narrativas “humanitárias”. No filme Al-Quds, ele coleta essas imagens e produz por cima delas uma narração que reconduz as sequências filmadas de Jerusalém como algo genuinamente palestino. Talvez seja o primeiro registro de uma retomada de imagens de arquivo (sob controle das forças coloniais) para produções de contra-arquivos. Em 1975, Serge Le Perón (in SANTOS, 2024) escreve na Cahiers du Cinéma que o cinema palestino é movido pela produção de memórias. E que essa produção se manifesta da seguinte forma:
Uma memória fragmentada no tempo e no espaço; em pequenos pedaços; fragmentos de filmes; imagens, sons; em caixas pouco identificáveis, etiquetadas pelos outros; espalhadas pelo mundo inteiro: fragmentos de histórias caídos por toda parte, em filmes que precisam ser reunidos-reagrupados-remontados, arquivados. Problema vital. Prova da existência passada, marca da identidade. História.
Em 1982, quando Israel invade o Líbano justamente para tentar desarticular os membros da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), três salas abarrotadas de latas de filmes da Unidade de Cinema Palestino (UCP) desaparecem. Há um prédio incendiado e há uma lenda, nunca confirmada, de que os filmes, assim como parte dos documentos guardados naquele prédio, tenham sido queimados. O que contam as cinzas da História? O fato é que, com o desaparecimento daqueles filmes da UCP, Khadijeh Habashneh e Mustafa Abu Ali, que eram membros do grupo e guardiões desses arquivos, não conseguem lidar com o trauma. Boa parte da vida de Khadijeh e de Mustafa depois disso foi uma constante frustração pela perda de um acervo imenso de imagens, frustração esta que, num plano pessoal, terminou levando os dois a se separarem alguns anos depois e, num plano coletivo, abriu uma fenda imensurável na produção de passados, presentes e futuros da Palestina. É possível dizer que uma boa parte do cinema palestino hoje é obsidiado por essa perda. A Fidai Film é só mais um testemunho disso.
Diante da impossibilidade de acessar os arquivos palestinos usurpados da sede da OLP, ou dessa ausência constitutiva, o filme não se esquiva de esmiuçar as imagens que efetivamente existem: aquelas criadas e disseminadas pela ideologia genocida. Atravessando A Fidai Film, pedaços de filmes de ficção de origem israelense convivem com registros documentais de outras décadas, atestando as existências palestinas vividas naqueles espaços. Uma série de manipulações sobre os sons e imagens vem desestabilizar seus pressupostos, recorrendo a estratégias que resistem à apreensão. O caráter de índice desses fragmentos é colocado em suspenso, uma vez que a realidade à qual eles supostamente se referem parece um outro tipo de ilusão. Em uma sequência emblemática do filme, um casal de atores israelenses encena um diálogo à beira-mar, performando de maneira descontraída em meio às ruínas de uma cidade palestina: “Acho que é impossível ser mais maravilhoso do que isso”, diz a mulher, cujos olhos e boca estão impregnados de enormes manchas vermelhas. Essa intervenção cromática pela montagem desumaniza a personagem, invertendo a hierarquia de poder entre protagonismo e plano de fundo, em mais um gesto disruptivo que se modulará no decorrer do trabalho.
A sobreposição de registros de diversas ordens também está em algo que vai costurando o filme a partir de um suporte literário (a literatura e o cinema palestino se confundem, se alimentam) que faz uso de textos do famoso escritor e revolucionário Ghassan Kanafani, sejam eles lidos como voice over, sejam apenas descritos em legendas. Na estratégia de confundir o inimigo sobre suas táticas, é preciso deslocar esses textos de sua fonte e fazê-los povoar as imagens que restaram.
A Fidai Film também pode ser tomado como uma espécie de catalisador para todos os filmes anteriores do diretor, fazendo convergir duas décadas de criação e ativismo estético-político. De partida, ele surge como a contribuição mais recente no seu trabalho de montagem com imagens pré-existentes – o que, por vezes, se nomeou found footage –, na esteira de dois longas anteriores: Recordação (Recollection, 2015) e Um verão incomum (An Unusual Summer, 2020). A cada novo filme, é notável a depuração de um mesmo método que tem no processo de montagem o seu vetor de irradiação, com diferentes graus de radicalidade.
Recordação retoma filmes de ficção israelenses e norte-americanos realizados na cidade portuária de Jaffa entre as décadas de 1960 e 1990. Na montagem de Aljafari, ao invés dos protagonistas, a atenção se volta ativamente para as bordas das imagens: para os passantes palestinos que funcionavam como figurantes, ou as casas, muros e lembranças que constituíam aquela comunidade. Do ponto de vista desse material narrativo, os palestinos (e a Palestina) nunca existiram. Mas eles se infiltraram nas imagens. Esses longas ficcionais servem de prova de uma ocupação cinematográfica, mas, ironicamente, fornecem justamente a matéria que permitirá a reconstrução cinemática desse mesmo território¹. Tal movimento de fazer emergir o que estava soterrado a partir de um redirecionamento radical do olhar – de maneira metafórica e literal – é uma estratégia que se atualiza e expande em A Fidai Film.
Já Um verão incomum remonta os registros de uma câmera de vigilância, instalada pelo pai do diretor em frente à sua casa, em Ramle, e que acabaram retendo também a vida cotidiana daquela comunidade. Ao retomar essas gravações familiares, Aljafari esgarça os pixels de baixa resolução ao levá-los ao limite da abstração, tornando manifesto aquilo que, histórica e forçosamente, foi convertido em invisível. Certa dimensão fantasmática de Um verão incomum vai perdurar neste último longa. Agora, o espectro e o imaterial, não mais restritos aos limites de uma cidade, uma esquina, ou a um recorte temporal preciso, se expandem para toda uma ideia de Palestina no decorrer da sua história de imagens, alçando A Fidai Film a outra magnitude em termos de construção discursiva, sensorial e política.
Nesses três filmes, bem como nos demais do realizador (lembremos de seu primeiro longa, The Roof, de 2006)², nosso olhar é intimado a escrutinar os detalhes desses arquivos, indagar o que ainda não se sabe. São obras que materializam uma espécie de “câmera dos despossuídos”, como sugere o título da videoinstalação criada por Aljafari em 2023 para a 35ª Bienal de São Paulo, parte do processo de feitura deste último longa. Algo que nos incita a indagar essas imagens a partir de um conjunto de questões fundamentais, tal qual sugere Nicole Brenez (2013) a respeito do que nomeia “cinema de intervenção”: “por que fazer uma imagem? Com quem e para quem? Com quais imagens ela entra em conflito? (...) Ou, em outras palavras, qual História queremos?”.
Uma ideia vai ganhando centralidade nesse projeto militante de cinema e vida: a sabotagem. Mais do que uma ideia, uma ação direta no mundo; um rasgo que, em si, é uma postura ativa contra injustiças persistentes. Para efetuar um ato de sabotagem, é preciso conhecer bem a lógica do sistema ao qual se deseja minar, suas estratégias de manutenção, bem como suas brechas constitutivas. Brechas que, frequentemente, residem na expectativa de totalidade das narrativas do poder há muito naturalizadas. Seria necessário, então, desnaturalizar a falácia de autenticidade desses discursos e imagens – reenquadrar, desfocar, sufocar, tingir de um vermelho sangue que escorre, se for preciso. E a retomada dessa ideia ganha outros significados quando compreendemos, a partir do que relata o diretor, que “sabotador” foi justamente o termo empregado pelos israelenses para se referirem aos freedom fighters palestinos na década de 1970, antes que a noção de “terrorista” se popularizasse³.
Epílogo: Imagens de uma cidade palestina, à beira do mar, ocupada. Sobre o teto de alguns edifícios, crianças soltam pássaros no ar enquanto um soldado israelense mira sua arma em tudo aquilo que voa. Rapidamente, percebemos que os espaços internos das casas onde essas cenas se passam estão tomados por um fogo. Um fogo artificial, colocado ali como uma intervenção gráfica do diretor. O que queima quando os arquivos são queimados? O que arde quando um povo começa a ser dizimado em seu próprio território? O que se incendeia no cinema quando os festivais de cinema negam a hipervisibilidade de um incêndio em curso? Na história desse cinema, é fundamental “interrogar as cinzas”, escreve Marcelo Ribeiro (in MAAN; GUERRA, 2024, p. 43-51) em seu pensamento sobre o conceito de arquivo, o que “deve ser entendido não apenas como a constelação dos filmes existentes e os corpos variáveis de matéria documental que os orbitam, mas como a nebulosa dos filmes inexistentes e os buracos de matéria documental que tornam possível entrever seus rastros”.
As imagens desaparecem. Surge aquilo que parece ser os créditos finais. Não são. Lemos um diálogo entre Kamal e um amigo identificado apenas como Yousef: “Eu achei um arquivo e ele se perdeu. Era muito material. Material que estava em um lugar abandonado e que, de repente, desapareceu”. Yousef parece desesperado. Kamal pergunta o que eram esses arquivos. Yousef não responde a isso, sua única certeza é que os arquivos desapareceram. O conteúdo dos arquivos parece ser seu próprio apagamento. Kamal Aljafari trabalha a partir dessas fendas abertas, jamais para preenchê-las, mas certamente para, astutamente, sabotar as narrativas sionistas criadas por cima delas. Taq Taq Taqiyah.
Currículo
Carla Italiano
atua como pesquisadora e curadora de mostras e festivais. É doutora em Comunicação Social pelo PPGCOM-UFMG. Integra anualmente a equipe de programação do Olhar de Cinema de Curitiba, do FENDA, e a organização do forumdoc.bh. Foi curadora de diversas mostras, incluindo Mulheres Mágicas - Reinvenções da bruxa no cinema (CCBB). É natural do Recife e residente em Belo Horizonte.
Carol Almeida
é pesquisadora, professora e curadora de cinema. Doutora no PPGCOM-UFPE, com pesquisa centrada no cinema contemporâneo brasileiro. Faz parte da equipe curatorial do Festival Olhar de Cinema/Curitiba, da Mostra de Cinema Árabe Feminino e da Mostra que Desejo, esta última promovida pelo Mirante Cineclube. Realiza oficinas sobre cinema brasileiro, curadoria e crítica de cinema e representação de mulheres no audiovisual.
Notas
- Como apontado por Kamal Aljafari na Conversa Aberta realizada em 12 out. 2021, como parte da mostra Foco do 10º Olhar de Cinema - Festival Internacional de Curitiba, com mediação nossa. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Yi_DlMl4-5w. Acesso em: 12 out. 2024.
- Exibido no forumdoc.bh.2020, no contexto da mostra online Esta terra é a nossa terra.
- Aljafari em Conversa Aberta, 2021.
Referências
BRENEZ, Nicole. Political Cinema Today – The New Exigencies: For a Republic of Images. Screening the past, set. 2013. Disponível em: https://bit.ly/3KhgIaz. Acesso em: 12 out. 2024.
DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
PERÓN, Serge. Sobre o cinema palestino. In: SANTOS, William Fernando de Oliveira. Mostra de Cinema Militante: Palestina anos 1970. (Trabalho de conclusão de curso). Departamento de Comunicação Social - Universidade Federal de Pernambuco, 2024, 75p.
RIBEIRO, Marcelo R. S. Casulo, secreção, segredo. In: MAAN, Gustavo; GUERRA, Nayla (org.). No Rastro dos Encontros Perdidos: a Mostra Novíssimo Cinema Brasileiro. São Paulo: Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária - USP, 2024.