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Depois do seu prólogo com imagens de arquivo da antiga Moçambique, o longa de Inadelso Cossa nos mostra uma cena sob a luz minguante do anoitecer, em que as árvores são desenhadas em preto contraluz, e sob essa mesma tinta negativa, formada pelo contorno do espaço não iluminado, desenhada pelo seu contrário, vemos um microfone direcional de cinema, numa vara, segurado por um homem, em plano aberto. Ouvimos o ruído da noite e vemos a insistência dessa cena. O que estaria sendo captado ali? A atmosfera, o ambiente, o silêncio?
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Talvez ainda seja cabível afirmar o óbvio: o armazenamento e a transmissão da memória negra no mundo são necessariamente atrelados ao som: às vozes, aos toques nas peles, aos silêncios e às síncopes, e a constante duplicidade poética da produção do encanto e do registro da violência. Isto é: a mesma pele do maravilhamento é também uma inscrição da violência, um registro dissimulado pela própria evidência. O som, esse meio tão concreto quanto abstrato, que permite explorações em planos muito variados, é o espaço de expressão e inscrição das forças diaspóricas e contracoloniais. Isso se dá porque o som é inapropriável, seu sopro quase imaterial resiste aos olhos do vigia, às ameaças da polícia. O som e sua elasticidade existencial são o meio através do qual as sobrevivências do que não pode ser possuído se alastraram até os nossos dias. Não por acaso, um ex-combatente pela independência moçambicana diz, em Memória em Três Atos (filme anterior de Cossa): “A polícia colonial ia em nossa casa vasculhar as coisas, mas não achava nada, não havia nada escrito, não havia papéis, pois a missão estava na cabeça”.
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Essa forma de armazenamento é uma tecnologia de defesa, que assegura uma defesa contra a visibilidade compulsória, e, ao mesmo tempo, depende de sua atualização pela presença. O que assegura o vigor da transmissão é, em algum nível, uma frequência de retornos, alguma comunidade, interna ou externa, que ofereça conexões que ativem o viço do segredo. A narrativa de Inadelso Cossa em As Noites Ainda Cheiram a Pólvora mira seu mergulho justamente nessa região intersticial de uma memória da violência da guerra civil moçambicana que se encontra, de maneira geral, recalcada nos corpos que precisam seguir, que estão num mesmo lugar, que necessitam calar para colar os pedaços do que sobrou de longos anos de medo e massacre. Porém, Inadelso não está interessado exatamente em desrecalcar o não dito, mas em buscar constantemente ajustar a narração ao desajuste inerente da narração do inenarrável. Uma certa impossibilidade permanente açoita do início ao fim a jornada fílmica, porém, mais do que um limite, isso se torna uma zona de atuação. A angústia de uma guerra inenarrada se torna um estudo da forma de existência e inexistência que reside nas constantes presenças do não dito que o microfone e a câmera conseguem materializar com serena inventividade diante de nós.
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Essa energia muda repousa na simples ideia de que é preciso perseguir finas linhas que atravessam as diversas situações de cena: entrevistas, encenações, reencenações, que se cruzam com a permanência de um tom sonoro da ordem do sussurro, da reza e do segredo. O som desenha um espaço perceptivo que desperta nossa atenção de uma forma muito peculiar. A emissão de murmúrios se localiza numa espécie de limiar entre a fala para dentro e a fala para fora, entre o pensamento e a expressão, materializando-se como uma espécie de inscrição cuja forma de ser se caracteriza por uma quase presença, por uma iminência do dizer, por uma interseção entre emitir e omitir. Assim, os jogos do filme são jogos que fazem variar as formas materiais de elisão: as vastas zonas de preto e a constante presença da palavra suprimida (pelas várias combinações de medo e esquecimento) são as peças do mergulho diáfano de Cossa em busca de si mesmo por meio dos rastros e resíduos da memória de seu país, igualmente massacradas como os corpos de seus antecessores.
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A fragmentação do encontrado é diretamente conectada à forma de ser que, igualmente, não cogita o uno. O segredo escondido faz da fuga uma forma de ser e faz do ser um lugar de unificação impossível. Assim, a forma desse testemunho é a de um tenaz laboratório que busca ritualizar, pela variação de suas repetições, um sutil jogo de exorcismo e revelação. A repetição da cena com sua avó, na ruína da mercearia proibida pelo poder colonial, demonstra que a insistência na ressonância, se não revela fatos, elucida a maneira como seus rastros se movimentam. Sua metodologia de iluminar os medos por uma espécie de teatro da noite reafirma uma insistência em uma politização do olhar que nos convida a navegações por um mar infrassensorial que não é o das informações, o da palavra escrita, fiscalizada e contábil. O trabalho de Cossa na construção de uma temporalidade fílmica que não progride, que ganha forma em corpos muitas vezes parados, de perspectiva confundida, de desorientação gráfica, de discrepância entre tom e sentido, é justamente o de edificar no ar, na casa do som e da luz, desvios invisíveis que trafeguem nas zonas de ausência, registrando, simultaneamente, a história material do não dito e não mostrado, ao mesmo tempo que sugere, a partir de uma ressensibilização política, que as intensidades do não narrado sejam tornadas sinais de frequências variadas. O boom é um pilão da memória pelo que capta, pelo que não inscreve, porque o silêncio ou o preto são a tinta que desenha em contraluz o que ainda não conseguimos entender, mas que conseguimos experimentar pela força da restituição indelével da presença. É feito desse escuro magma a carne ética da poética de Cossa nesse belo e lírico exercício de Sísifo.