Foi no ano de 1985 que os Kayapó¹ ganharam sua primeira câmera de vídeo, apropriando-se de uma tecnologia do mundo ocidental para dar continuidade ou ressignificar sua vida social e cultural. Coube ao antropólogo Terence Turner (1993), em uma palestra proferida no Festival de Filme e Vídeo RAI, em 1992, que ele mesmo traduziu para o português, realizar uma análise e uma excelente síntese das origens e da trajetória do coletivo de cineastas do povo Kayapó². Como se sabe, Turner foi um dos eminentes etnólogos que realizaram pesquisa de campo desde 1962 e deixou uma das etnografias de referência sobre aquele povo (1966); escreveu inúmeros artigos e dirigiu ou editou vídeos, além de ser o fundador, em 1990, do Projeto de Vídeo Kayapó.
A análise proposta por Terence Turner naquela conferência de 1992 se insere no debate muito intenso no qual a antropologia se via envolvida desde a década anterior, a propósito da crítica pós-moderna à autoridade etnográfica e à objetividade postulada pela antropologia moderna, ou, ainda, dos estudos culturais à la Stuart Hall, que encabeçou as críticas mais contundentes à ideia de “tradição” e de “autenticidade” e propôs que os “hibridismos” são muito mais vivos do que se imagina quando se trata de processos de afirmação de identidade étnica ou de criações culturais e subculturais. Seja no final do século XX, seja no contexto atual, esses processos criativos arregimentam e combinam “aspectos da cultura de massa e da tecnologia com elementos mais tradicionais” (TURNER, 1993, p. 83).
Interessante (e, às vezes, entediante) saber que, já naquela época inaugural da formação de cineastas ou videastas indígenas, muita tinta foi gasta para dizer que a tecnologia e a linguagem audiovisual poderiam “deturpar” ou “transformar” a cultura oral e tradicional indígena! Turner, exímio etnógrafo e militante a favor dos povos indígenas, argumentava que o vídeo era uma ferramenta poderosa para que os Kayapó pudessem tanto resistir aos ataques da economia e da cultura capitalista quanto revitalizar seu próprio modo de vida cerimonial e político tradicional. Turner, leitor da obra de Faye Ginsburg, que já estava escrevendo sobre vários coletivos de cinema de povos originários (da Austrália, do Canadá e do Brasil), incorporaria a ideia de que esses povos se apropriam da tecnologia do cinema e do vídeo como “meio de comunicação cultural” ou com o objetivo de “mediação cultural” entre grupos sociais. Daí, ao analisar o cinema ou audiovisual indígena de uma forma geral, Turner (1992, p. 84) propõe uma análise muito mais atenta aos processos do que às linguagens ou representações, e cita Ginsburg (s. d., p. 4):
Para abrir um novo ‘espaço discursivo’ para os meios de comunicação indígena, que os respeite e os entenda em seus próprios termos, é importante dar atenção aos processos de produção e recepção. A análise precisa enfatizar menos a qualidade formal do filme/vídeo como texto, e mais as mediações culturais que ocorrem através dos trabalhos de filme e vídeo.
Assim, o vídeo entre os Kayapó, e no mundo indígena de uma forma geral, se insere nos anos 1980 como dispositivo tecnológico e sociopolítico posto a serviço da criação e invenção da cultura local, da mediação de relações sociais internas e com o mundo exterior, sobretudo aquele da invasão dos brancos com suas frentes políticas e suas tecnologias-parafernálias para sugar os recursos dos territórios indígenas. Podemos dizer que, desde os tempos iniciais até os tempos atuais, o meio audiovisual entre os Kayapó foi predominantemente usado para filmar os embates políticos (dentro e fora das terras indígenas, muitas vezes em ações nas grandes cidades do país e também no exterior) e para registrar as festas e cerimônias no interior de suas aldeias.
As mudanças mais bruscas que ocorreram nesse período se devem muito mais às transformações dos equipamentos de filmar e aos meios onde circulam os registros audiovisuais. No início, quando da chegada dos primeiros equipamentos de vídeo, eram câmeras maiores e mais pesadas do sistema VHS (abreviação do inglês para “Sistema Doméstico de Vídeo”, isto é, Video Home System, um suporte de gravação analógica em fitas de videoteipe), o sistema de reprodução era baseado em monitores de tela pequena ou televisores, alimentados por geradores de energia a gasolina ou a diesel na aldeia.
A partir da década de 2000, a energia elétrica gerada por painéis solares ou outros suportes passou a ser usada de uma forma mais ampla, dando mais agilidade a esse sistema de produção e veiculação do audiovisual nas aldeias. Num tempo mais recente ainda, nos últimos 10 anos, pequenas câmeras de vídeo digital, ou câmeras de vídeo acopladas a celulares, passaram a ser usadas de forma intensa para o registro e a veiculação do material audiovisual, agora reproduzido nos computadores e nas redes de internet e, ainda mais recente, nas redes sociais.
Não há dúvida de que se podemos falar de uma forma genérica de audiovisual, um novo tipo de produção, com filmes curtos e, na maioria das vezes, não destinados à grande tela de cinema ou mesmo à televisão, tem se proliferado (entre os Kayapó e alhures). E o que se filma e para que se filma? Talvez, aquele objetivo inicial ainda esteja presente e, sem dúvida, no registro audiovisual ganhe mais relevância a função de comunicação e de mediação cultural: os Kayapó continuam filmando para “enfrentar o mundo dos brancos” (para denunciar as suas atrocidades) e para fortalecer sua própria cultura.
Todavia, agora, há uma quantidade muito maior de registros ainda mais diversos entre eles, circulando nas suas diversas aldeias, muitos deles não editados, outros que circulam só internamente, outros que circulam nas redes sociais abertas, e poucos ainda destinados a festivais de cinema. Deve haver, sem exagero, centenas de filmes (nos diferentes formatos, a maioria deles curtos) sendo produzidos anualmente! Para dar conta de apoiar e estruturar esse movimento audiovisual nas diversas aldeias do território kayapó, surgiu, no ano de 2015, o Coletivo Beture (Mekarõ opodjwyj), formado por cineastas indígenas Mebêngôkre-Kayapó³. Beture, nos informa o coletivo, é o nome na língua mebêngôkre para um tipo de formiga conhecida por ter uma mordida bastante potente, a cabeça vermelha e a bunda preta, assim como os Kayapó se pintam para a guerra.
Ao ver essa vitalidade do movimento de cineastas kayapó hoje em dia, fica cada vez mais antiquado e obsoleto um debate dos anos 1980, do qual Terence Turner (1993) já queria se livrar e estabelecer novos parâmetros para pensar tanto a etnologia (e a sua face militante em favor dos povos indígenas) quanto o filme etnográfico e documentário. Boa parte do argumento de Turner em favor do movimento audiovisual kayapó se constrói contra um pensador pós-moderno, James Faris, que acredita que os filmes indígenas estão prisioneiros ao “modo como os ocidentais” querem vê-los por meio de uma “representação” que usa uma tecnologia (do audiovisual) e uma linguagem destrutiva para a subjetividade e os modos de representação dos “outros” (dos indígenas).
Para Faris, a câmera “incorpora profundamente as categorias ocidentais de ordenamento visual e espacial, de maneira a impossibilitar seu uso para transmitir ou construir uma ótica não ocidental”, assim é resumido por Turner (1993, p. 111). Imagino que Faris estava querendo dizer que os “modos de representação” tradicionais, baseados na oralidade e, em boa parte, nas narrativas míticas ou nas atividades cerimoniais ou rituais, estariam sendo sabotados e capturados pelo modo e pela máquina de “olhar” e consumir do capitalismo. Nesta relação e imersão com o mundo ocidental, os Kayapó e os indígenas só teriam a perder – a cultura, o modo de vida, a terra, a autonomia.
Aliás, essa visão do “bom selvagem” e a lamúria pela possibilidade de seu desaparecimento físico e cultural frente ao contato com a sociedade de consumo capitalista aparecem de forma cristalina num filme ícone e precursor acerca dos Kayapó: Raoni (Jean Pierre Dutilleux e Luiz Carlos Saldanha, 1978). Num determinado momento do documentário, na voz em off de Marlon Brando, ouvimos o comentário:
Todo produto ‘civilizado’ que é apresentado ao índio está um passo de sua destruição. Se ele ganha uma lanterna, ele vai precisar de baterias novas. E ele sabe que pode consegui-las trocando por peles. E pela primeira vez o índio matará não para sobreviver, mas para acumular e para ser pago e, então, poderá comprar.
Contudo, Terence Turner tinha razão: a apropriação da câmera de filmar entre os Kayapó os capacitou para a batalha em defesa de seu território⁴ e a incidência política frente ao Estado brasileiro, para a reprodução e a reinvenção de sua cultura (sobretudo pela filmagem e visualização em série das cerimônias e da vida ritual no contexto local da vida em comunidade, inclusive imagens dos antigos), para o modo de fazer política tradicional e, por fim, para seu uso em guardar e transmitir conhecimento.
Essa ideia de utilizar a tecnologia do branco (a câmera de cinema-vídeo) para guardar e revitalizar a sua própria cultura é muito recorrente na fala dos cineastas-videastas mebêngôkre. Por exemplo, durante o encontro on line “Retratos indígenas: memória e imagens de si”, que ocorreu durante o 24º Forumdoc.bh.2020, o cineasta Pat'i Kayapó, ao comentar o filme Ingrõny, pisada forte (Coletivo Beture, 2019), exibido naquela edição do festival, disse:
Os jovens estão querendo aprender mais sobre a tecnologia dos brancos. Por que a gente quer aprender mais sobre essa tecnologia? Antigamente a gente ouvia a nossa avó, a nossa tia, a nossa mãe pela cabeça, pela memória. A gente está agora falando para os mais velhos para eles contarem a história para ficar gravado para as novas gerações. Então, por isso que a gente quer fazer filme mais rápido. Esse filme que se chama Ingrõny é uma semente que se nasce, a primeira semente que nasce. Por isso que a gente colocou o nome nesse filme de Ingrõny. E é muito importante a gente gravar, filmar a história dos mais velhos, porque os mais velhos estão indo muito mais rápido. Por isso que a gente está fazendo filme mais rápido para a gente mostrar para as novas gerações que estão vindo aí, para não esqueceram a nossa tradição, a nossa cultura, os nossos costumes, o que a gente tem dentro do mato, da aldeia. Por isso que a gente fez esse filme para mostrar para o kubên (não indígena), que não conhece como o Mebêngôkre vive dentro do mato. Então, estou só contando um pouquinho sobre esse filme. A gente aprende [a usar] câmera, celular, e a gente não vira branco, a gente vira Mebêngôkre ainda. A gente fala, se pinta, quando vai à cidade, a gente usa roupa do branco, calça, tênis, se arruma, mas quando a gente entra na aldeia, não usa camisa, faz festa, pesca, caça. Então, por isso que alguns jovens estão olhando nosso trabalho, olhando a câmera, olhando a tecnologia dos brancos, eles querem fazer igual os brancos fazem, guardar as coisas para o futuro.
Neste mesmo encontro on line, o cineasta e documentarista Simone Giovine, que trabalha em parceria com o Coletivo Beture e com a Associação Floresta Protegida desde aproximadamente 2014, ressalta que os jovens cineastas do Coletivo Beture ocupam hoje um lugar (uma função) muito importante na sociedade mebêngôkre, que é o de registrar as cerimônias e rituais tradicionais, os eventos políticos externos dos quais participam os caciques e lideranças indígenas, e trazer e exibir tudo isso para o povo e para as aldeias mebêngôkre. Para Simone, Beture, mais do que um coletivo de cinema, é um “movimento” produtor e replicador de uma cultura em movimento, que constrói novas e autônomas narrativas audiovisuais. Então, Beture é
um movimento muito forte dentro das aldeias mebêngôkre, é uma vontade muito grande de consumir imagens, sobretudo de assistir o próprio movimento, o que mais os Mebêngôkre gostam é de assistir as próprias festas, os próprios movimentos. Esses jovens como Pat'i, como outros, eles acompanham os caciques para Brasília, quando acontece um evento, quando eles voltam para a aldeia, a comunidade já fica esperando para assistir, assistir o que aconteceu lá. Então, eles se transformam também nos repetidores de informações, são, vamos dizer, os elementos que ganharam uma figura dentro da sociedade mebêngôkre. Hoje em dia eles são muito demandados, inclusive nas outras aldeias, quando acontece uma festa, eles mandam chamar um, mandam chamar outro, depois ficam no pé deles para assistir a festa. Não pode demorar para entregar. E eles estão desenvolvendo uma linguagem totalmente própria. Claramente, de vez em quando se choca com os formatos cinematográficos, porque, um filme que é para o consumo dos brancos geralmente tem que se adaptar aos tempos que são um pouco mais curtos, montagens mais rigorosas, digamos, mas se fosse por eles [os Mebêngôkre], seriam cortes infinitos, 7, 8 horas de filmes com todas as festas, todas as danças, todos os cantos. Eu mesmo realizei alguns filmes com os Mebêngôkre, já passei por isso, de passar um mês e meio numa aldeia para fazer um filme sobre a castanha, e voltar para a aldeia, mostrar o filme, que durava 7 minutos, e o cacique querendo me matar: ‘Só isso? Só isso que trouxe para mim? Tu ficaste um mês e meio e trouxe só isso, cadê o canto da mandioca...’ E aí você entende essas dinâmicas da forma de ver o cinema. Mekaron, que é uma palavra maravilhosa, que, na língua mebêngôkre que dizer também espírito, alma ou imaterial.
O antropólogo Madi Dias, que fez pesquisa de campo nas aldeias kayapó no final da década de 2000, realizando, inclusive, oficinas de vídeo junto às comunidades, faz um bom resumo do modo pelo qual o audiovisual ativa as relações sociais entre os Kayapó: “tanto internamente (guardando) quanto para com os seus outros (comunicando)” (MADI DIAS, 2011b, p. 325)⁵.
Digamos que essa função de registrar para “guardar” ou para “comunicar” atravessa toda a história das quatro décadas de presença do audiovisual entre os Kayapó. Desde o início, na formação inicial, quando precursores como Mokuká, por volta de 1985, pegaram uma câmera de vídeo e, em parceria com os documentaristas do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), registraram e editaram os primeiros vídeos; passando pela fundação, por Terence Turner, no ano de 1990, do Projeto de Vídeo Kaiapó; pelas oficinas de vídeo e fotografia com a participação de Dias e Demarchi no período de abril a maio de 2009 e de dezembro de 2009 a janeiro de 2010, nas aldeias Moxkarakô e Kokraimoro⁶; chegando à criação do Coletivo Beture por volta de 2014, em parceria com o documentarista Simone Giovine, ou à oficina em parceria com o projeto Vídeo nas Aldeias que culminou na realização do filme Ingrõny, pisada forte em 2019, podemos dizer que há uma continuidade e uma transformação no modo de conceber e realizar audiovisual entre os Kayapó.
A vida kayapó, internamente, foi e continua marcada pela exuberância de seus rituais de nominação, dentre outros, mas, agora, incorpora no contexto ritual jogos e eventos do mundo de fora, como concursos de beleza da mulher kayapó ou eventos como o “Dia do Índio” ou “desfile de 7 de setembro”. Além disso, os Kayapó participaram e registraram em vídeo eventos emblemáticos da história e da política nacional, lutas e resistências: a começar pelos preparativos para a Assembleia Constituinte de 1988; e, um ano depois, a luta contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte (ou Kararaô, nome indígena que a ditadura militar queria dar para a hidrelétrica – mas tiveram de mudar de nome quando os indígenas denunciaram a profanação do nome usado por eles para definir exatamente o grito de guerra); a luta pela demarcação de seus territórios no final dos anos 1980 e início da década de 1990, incluindo a participação indígena na Conferência do Meio Ambiente de 1992 no Rio de Janeiro. Isso sem citar, desde o início, a presença e participação intensa no Acampamento Terra Livre (ATL), realizado em Brasília desde 2004.
Ana Carvalho, ativista e documentarista do Vídeo nas Aldeias, catalogando e assistindo em retrospectiva os registros audiovisuais produzidos pelos Mebêngôkre (e parceiros) sobre sua trajetória, disse (em comunicação pessoal) que, no geral, esse material se refere aos rituais cerimoniais internos, e mostra também as cenas de resistência e luta, por exemplo, as primeiras negociações contra a Eletronorte e a construção de Belo Monte, dentre as quais há algumas cenas emblemáticas na cidade de Altamira e no ginásio que abrigou as negociações – ali, podemos ver grandes grupos de guerreiros pintados e cantando, se preparando para a guerra (esse material foi agora montado por Pat'i e pode ser visto no filme Ngô beje - Barragem, 2023).
Segundo Ana Carvalho, na década de 1980, a vida ritual e as tecnologias e materiais de adorno e de caça ainda eram muito semelhantes aos da época dos primeiros contatos: esses registros trazem uma atmosfera própria que, em contraste e diálogo com os grandes cerimoniais do presente, é ricamente intensa e forte. Na contemporaneidade, segue-se a abundância da vida ritual e a força das festas e cerimoniais, talvez possibilitadas pelo aumento populacional, reforçando a divisão dos clãs e as cores das miçangas.
No entanto, prossegue Ana Carvalho, muitos dos velhos já se foram e, com eles, também os cantos importantes. A estrutura das casas já é outra, sem contar a nova ordem religiosa com a chegada das congregações evangélicas. Enfim, durante 40 anos, podemos ver, nos filmes kayapó, essas continuidades e transformações que se manifestam em pequenas cenas e detalhes, em narrativas curtas ou mais longas, nas cenas da vida cotidiana das aldeias ou nos registros extensos de rituais longos (destinados ao “consumo interno” e que não fazem muito sentido para os indígenas quando são montados numa estrutura narrativa pautada nas elipses temporais).
E, talvez, a maior transformação de tudo disso, do audiovisual mebêngôkre, esteja na formação de grandes coletivos de comunicadores indígenas e na forma de circulação do material audiovisual, hoje muito condicionado pelas estruturas temporais e tecnológicas dos celulares e das redes sociais. A seguir, comentamos alguns desses filmes, representativos de uma produção diversa, imensa e mesmo incontável – pois, repetimos, eles dizem que são mais de 60 filmes produzidos a cada ano no território dos Mebêngôkre – e alguns dos filmes que serão apresentados na Mostra Coletivo Beture de Cineastas Mebêngôkre do Forumdoc.bh.2024.
Ngô beje - Barragem (Pat'i Kayapó, 2023)
Esse filme é uma montagem feita pelo cineasta Pat'i Kayapó a partir do material de arquivo que deu origem ao filme The Kayapo: Out of the Forest (Terence Turner e Mike Beckham, 1989), realizado para a Granada Television. Aqui, encontramos aquelas cenas emblemáticas do movimento liderado pelos Kayapó contra a hidrelétrica de Belo Monte em 1989, particularmente a preparação e a partida de suas aldeias para a cidade de Altamira, local onde se encontraram com outros povos indígenas nessa mobilização e resistência. Particularmente, o espectador é levado para dentro de um ginásio, onde mulheres e crianças se encontram entre os guerreiros, pintando-se e discursando contra os estragos que aquela obra traria para o povo e o meio ambiente do Xingu.
Ao rever essas imagens e discursos hoje, quase 25 anos depois, não podemos deixar de reconhecer a potência da resistência indígena, o conhecimento sobre o rio e a floresta, a força de sua imaginação visionária sobre o futuro e o grande desastre que estava em planejamento naquele momento. Apesar da potência do movimento indígena e ambientalista, o governo brasileiro fez ouvidos moucos para as lideranças indígenas, preferindo ser todo ouvidos às empreiteiras e políticos ávidos por propina, embalados num discurso desenvolvimentista.
A usina, antiga Kararaô, atual Belo Monte, foi construída com um custo aproximado de 40 bilhões de reais, o dobro do valor inicial do projeto. E hoje? Parte da mídia exibe a catástrofe ambiental da Amazônia; a floresta está queimando, os rios estão secando! Segundo o jornalista Lúcio Flávio Pinto (2024), das 18 turbinas instaladas na barragem da hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, no Pará, 17 não estão funcionando no período do verão. Na plena potência, a geração da usina seria de 11.450 MW; no período de seca intensa que o rio vive atualmente, há a geração apenas de 650 megawatts de potência.
O jornalista vai além ao apresentar os dados sobre o projeto “maravilhoso” da ditadura militar, construído num governo de esquerda, ao vê-lo “virar água” por falta de água em decorrência da intensa mudança climática nos dias atuais: Belo Monte seria capaz de atender 12% do consumo de energia do Brasil, mas, agora, é responsável por apenas 0,61%. A cidade de Altamira cresce e o rio Xingu está secando.
As imagens da luta indígena do Xingu (especialmente dos Kayapó) contra essa tragédia anunciada podem ser vistas nesta bela montagem de Pat'i Kayapó. Os rituais de guerra dos Kayapó (e os filmes feitos a partir deles), contudo, não foram suficientes para impedir a construção da barragem ecocida. No contexto atual, a natureza no Xingu foi radicalmente transformada, não existem mais os Kayapó de antes do contato, afinal, eles tiveram de se adaptar à nova realidade, e, nesse processo, por meio de seus hábeis cineastas, registraram e continuam registrando para o futuro não só as cerimônias de um passado tradicional, mas a luta e a resistência contra um projeto letal que ameaçou e continua ameaçando a vida indígena e não indígena no entorno do Xingu.
A história da luta e da resistência contra Belo Monte, que teve início em 1989 e hoje se tornou parte da cultura dos Kayapó, é vista com frequência nos filmes pelas novas gerações, que se informam e se preparam através dos conselhos dos mais velhos para, quem sabe, proteger o que resta do Xingu: a beleza do rio, da floresta e das culturas indígenas que se banham nas suas águas e que souberam ali construir um vínculo profundo entre humanos e não humanos. A chegada dos invasores brancos encontrou resistência dos indígenas e foi registrada pelas suas lentes. A história desse (des)encontro não pode mais ser contada sem o ponto de vista indígena, de seus líderes ou de seus guerreiros e guerreiras emplumados e pintados, empunhando flechas, facões ou câmeras de vídeo!
Tuíre Kayapó - O gesto do facão (Coletivo Beture e Simone Giovine, 2023)
Tuíre Kayapó é o nome de uma guerreira Mebêngôkre que faz parte, de forma destacada, da luta e da imagem indígena dessa luta contra a barragem de Belo Monte. Tuíre nasceu na aldeia Kokraimoro no ano de 1970 e faleceu em 10 de agosto de 2024. Ao lado de Raoni e de Paulinho Paiakã, ela se tornou uma ativista destacada dos direitos indígenas e do meio ambiente. Ficou conhecida no país e fora daqui pelos seus gestos e imagens produzidas durante o Encontro das Nações Indígenas do Xingu, que ocorreu na cidade de Altamira no ano de 1989. Ali, ela se colocou na frente de uma mesa de autoridades não indígenas que defendiam a construção da usina de Belo Monte, mirou um engenheiro da Eletronorte (a empresa governamental responsável pelo empreendimento) e brandiu um facão afiado; e deslizou por três vezes no rosto do homem.
O filme Tuíre Kayapó monta novamente essa cena, agora comentada pela própria Tuíre, que responde às perguntas interessadas e afiadas de seu neto, ambos registrados pela câmera de vídeo. Tuíre está ali, não mais em frente ao homem da Eletronorte, mas em frente ao neto e a uma câmera de vídeo, vendo e revivendo aquele gesto (que virou parte da cultura e da história dos Kayapó, parte imprescindível da sua relação e da sua luta contra a “invasão colonial”) presente em seu corpo e memória, gesto que deve ser relembrado e guardado pelo seu neto e pelas gerações futuras que ele representa. Ela diz:
Nossos avôs tiveram que matar muitos brancos para defender nossa terra. Eles tiveram que expulsar muitos brancos para que nós Mebêngôkre pudéssemos seguir vivendo daquelas florestas e rios. Quando eu era apenas uma criança, minha avó me contava sobre tudo isso. Ela me contava sobre o mato, sobre os rios, sobre a terra e sobre como andávamos pelo território antes do contato com os brancos. Quando eu cresci o homem branco já tinha começado a destruir a mata. Já tinham destruído a mata e queriam destruir também o rio. Queriam contaminar os rios e matar os peixes. Queriam derrubar o resto da floresta e matar os peixes e os animais. Eu estava pensando sobre tudo isso, enquanto o engenheiro da Eletronorte estava discursando. Por isso eu fiz isso. Eu queria que ele me visse e respeitasse nossa floresta, respeitasse nosso rio e nosso território. Para que todos os brancos respeitassem nosso povo Mebêngôkre. [...]
Um pouco mais à frente, o neto lhe pergunta, e ela responde:
- Quando o engenheiro começou a dizer que eles realmente iam fazer a barragem, você escutou isso e não gostou da fala dele. Por isso você foi lá ou alguém incentivou você a ir até ele e encostar o facão três vezes no rosto dele?
- Você gostaria que alguém mexesse com a sua terra? Não, você não gostaria. Os brancos querem acabar com a floresta e o rio dos Mebêngôkre, e eu não gosto disso. Então eu levantei e entrei no meio de toda aquela gente. Eu queria que ele me visse. Eu coloquei o facão na cara dele para ele ver o facão e largar de vez essa barragem. Coloquei o facão na cara dele e falei: ‘Você está vendo? Você está vendo? Você está muito longe de nós, e agora você está me vendo, saiba que eu não gosto disso’.
Depois desse diálogo entre neto e avó, diante da câmera de hoje, o filme adiciona uma imagem de arquivo na qual vemos Tuíre com uma criança na cintura e com o facão na mão, entre outros Kayapó, num momento anterior à cena final, sobre a qual ela comenta, numa entrevista dada na época, provavelmente logo após o gesto do facão brandido contra o rosto do engenheiro da Eletronorte: “Sim, eu iniciei minha luta em Altamira, e eu nunca vou deixar de lutar pelo meu povo mebêngôkre. E quando eu envelhecer ou morrer, os brancos vão ver a luta dos meus filhos e das minhas filhas”.
O plano da imagem de arquivo é cortado, continua apenas o áudio de arquivo sobre a imagem do rosto de Tuíre vendo o vídeo antigo, e, em seguida, Tuíre e seu neto assistindo no tempo presente ao mesmo vídeo antigo num notebook sobre uma mesa no local onde ocorre a entrevista. Tuíre continua falando no vídeo antigo: “Eu vou ensinar eles, e eles vão continuar lutando pela cultura e pelos direitos do nosso povo mebêngôkre”. Voltamos para as imagens do presente e para a fala final de Tuíre e do filme:
Nossos bisavôs eram lideranças que defendiam nosso povo, a floresta, o rio. Nos defendiam nas guerras. Agora eu estou no lugar deles, e depois que eu encostei o facão no rosto dele, ganhei respeito de todo mundo. Ganhei respeito dos indígenas e dos não-indígenas. Até hoje sou respeitada. Eu quero que a floresta fique em pé para as novas gerações. A floresta tem um ar puro, bom para respirar. Tem os animais, as aves, os passarinhos, as flores, as frutas, tem castanha. Eu fiz isso, para que tudo isso siga existindo. Se eu não tivesse feito isso, o branco ia continuar destruindo nossas matas e nossos rios. Se o rio Xingu está limpo até hoje, é por causa da nossa luta. Está limpo, os peixes ainda vivem, as pessoas ainda podem pescar e se alimentar. Podemos fazer nossas roças, plantar banana, inhame, mandioca. É assim, eu não gosto de destruição. E novas gerações estão vindo. Novas gerações sempre vão existir. A gente cresce, tem filhos e descendentes. Nós Mebêngôkre nunca vamos acabar, nós vamos continuar existindo, por isso eu não quero a destruição da mata, dos rios e de nossos territórios. É isso que eu tenho a dizer.
A Chegada dos Mêbengôkre na Terra (Coletivo Beture, 2024)
Nas palavras narradas pelo grande líder Raoni, esse filme curto, de menos de 10 minutos, conta a história-mito da chegada ancestral dos Mebêngôkre na Terra, repassada de geração em geração desde os tempos dos antigos.
Enquanto ouvimos a narrativa de Raoni, vemos imagens as mais diversas, captadas em diversos tipos de câmeras, inclusive aquelas acopladas em drones: a começar pela imagem do céu estrelado (ou de um patamar celestial de onde teriam vindo os ancestrais dos Mebêngôkre?); da floresta de buritis e dos rios; de uma mulher mais velha (Tuíre?) preparando um forno de terra (aquele feito com pedras aquecidas, tradicional entre os Kayapo), assando legumes; borboletas voando; um pequeno jabuti se arrastando; mulheres tecendo fio de algodão no jeito antigo (ou ancestral) de preparar os cordões usados nos enfeites cerimoniais e utensílios domésticos (os mesmos evocados no mito?); fogueira em noite de lua; cantos cerimoniais; mulheres em fila se preparando para a dança; um homem atirando flecha para o céu (para o futuro ou o passado?). Por fim, já quase no término da narrativa mítica, vemos o grande líder do povo kayapó, Raoni. Sabemos que é ele quem narra para jovens cineastas mebêngôkre a história dos seus ancestrais, fazendo a conexão entre os tempos muito antigos e os atuais, apontando para a continuidade da tradição pelas novas gerações e para o futuro.
Bira (Kokokaroti Txucarramãe, Irekeiti Kayapó, Irepryngranhiti Kayapo e Bekwynhpoi Kayapó, 2023)
Bira é mais um desses registros bem curtos, pouco mais de 6 minutos, aparentemente não mais sobre a vida tradicional dos Mebêngôkre, mas sobre sua intensa relação com o mundo urbano e dos brancos. Trata-se de um singelo registro sobre o breve retorno à aldeia de duas jovens estudantes que agora moram na cidade.
Nesse registro, não há comentário, nenhuma explicação, nenhum julgamento. Em qual cidade as duas jovens vivem? Qual a aldeia que elas visitam? Trata-se, certamente, da aldeia dos avós, mas onde estão os pais delas? Por que retornam à aldeia? Por que foram e por que retornam para a cidade? São perguntas que o espectador faz sem ter uma resposta conclusiva.
As duas jovens são mostradas dentro de uma canoa (ou voadeira) de alumínio, movida a motor de popa, pilotado por um jovem; com rostos pintados, carregando consigo mochilas e uma mala de rodinhas, telefones celulares ligados e sendo manipulados no interior da canoa. Na aldeia, as duas jovens visitantes são recebidas por duas outras jovens, que manifestam a alegria por recebê-las por meio de um breve choro (lágrimas das boas-vindas?).
As jovens são levadas para o interior da moradia dos avós. A avó lhes conta a história que poderia ser aquela do dia em que as duas jovens deixaram a aldeia, mas poderia ser, também, uma história dos ancestrais (e, se procurarmos saber um pouco mais, a começar pelo título, saberemos que, sim, estamos diante de uma narrativa mítica sendo refeita na vida das jovens e para as câmeras, uma narrativa atualizada pelos velhos que narram e pelas jovens que ouvem e encenam, assim como pelos que ouvem e filmam; enfim, trata-se da narração e da reencenação de uma história – talvez incontornável para as mulheres, quiçá para todos os membros do coletivo mebêngôkre – segundo a qual as mulheres antigas teriam se revoltado contra seus maridos e se transformado em peixes, todas menos uma – ou algumas, conforme a versão –, que tendo sido pescada, retornou à posição de mulher, e tornou-se a ancestral da geração atual dos Mebêngôkre).
De qualquer forma, sabendo ou não um pouco mais sobre Bira (nome do amante das mulheres primordiais), o espectador não pode decifrar perfeitamente o que se conta, mesmo que ele tenha certeza da separação entre mito e história – o que os indígenas não têm –, pois o próprio filme se encarrega de trazer a avó pintando as netas com as pinturas dos peixes evocados e as fazendo mergulhar no rio, enquanto conta a história:
Muitos ficaram bravos, furiosos. Todos se pintaram e foram cantando para o rio. O mais velho que estava na casa dos homens, preparando o arco e a flecha, começou a gritar: Parem, parem! Parem aí! Mesmo assim, foram empurrando ele. Ele então se transformou em uma arraia. Vocês vão se transformar em peixe para mergulhar, por isso que estão se pintando. É a fúria por causa do Birá. Vão se pintar conforme as pinturas que têm no peixe. O canto para Birá é assim: [canto na língua].
A fala da avó, em over, lembra: “eu cantei a música para ensiná-las”. Por fim, o relato termina assim: “Elas mergulham e não saem mais do rio. Ficam lá para sempre!”. O filme corta para as duas jovens se despedindo dos avós e sendo conduzidas por parentes até a beira do rio para fazerem sua viagem de volta para a vida na cidade.
Depois de uma pose para uma foto que reuniu todos, as moças se despedem da avó: “Estamos indo”. A avó responde: “Está bem, voltem assim que puderem”. Quase entrando na canoa, uma delas diz para a outra: “Vamos, Kokorati, você só quer ficar se banhando nesse rio?!”. E Kokorati, de dentro d’água, responde: “Me deixa ficar mais um pouco aqui! Depois vamos para a cidade e lá não temos rio”.
O filme termina com a imagem delas embarcadas, zarpando pelo rio; no entanto, a música e os créditos tornam a evocar Bira.
Ingrõny, Pisada forte (Coletivo Beture, 2019)
Este, por sua vez, é um filme mais longo (75 minutos), muito centrado na vida cotidiana, mas sem esquecer de uma história recente do contato dos Mebêngôkre com a sociedade branca e colonizadora, por meio do qual as epidemias de sarampo, ao que tudo indica, dizimaram o povo, especialmente os moradores de uma antiga aldeia, agora abandonada. Mas isso o espectador só fica sabendo do meio para o final do filme.
No início, vemos o personagem principal, um homem mebêngôkre de meia-idade, entrando na sua roça, afiando o facão e, depois, limpando o seu roçado. Durante a tarefa (e isso acontece por todo o tempo no filme), demonstrando uma profunda empatia e relação afetiva entre ele e o câmera, o personagem fala diretamente em direção a quem filma (e ao espectador) sobre a vida presente e sobre as novas gerações que não mais demonstram vontade de trabalhar nas roças.
Depois, o personagem volta à aldeia e ao espaço familiar, onde se encontra, provavelmente, com sua esposa, seus pais ou sogros. Tudo se passa de forma muito lenta e até mesmo contemplativa. Mais tarde, a extensa família visita a cidade mais próxima, quando o personagem principal leva uma pequena saca de cacau, extraído da sua roça, para venda e para adquirir bens da cidade, sobretudo peças de vestuário. O dinheiro adquirido pela venda do cacau mal dá para comprar duas peças na loja!
O diálogo entre o homem e sua mulher mebêngôkre, assim como entre ele e o comerciante branco, dentro da loja, pechinchando o valor das peças de roupa, é bem demorado, cheio de lições a respeito da transação confusa ou equívoca entre o mundo dos indígenas e o dos brancos. Mais tarde, de volta para casa, vemos a família do personagem principal saindo de sua morada e se deslocando até uma construção no centro da aldeia, que, ao que parece, é um local de culto evangélico.
Tudo se passa de forma bastante colada aos passos dos personagens em sua vida mais íntima, planos silenciosos e cadenciados, olhares e conversas não conclusivos, o que nos faz lembrar de um outro filme “clássico” do projeto Vídeo nas Aldeias, que é Shomõtsi (Wewito Piyãko, 2001), passado entre os Ashaninka.
Já mais ao final do filme, conforme já dito, a família principal vai até o local, hoje no meio da mata, onde estava localizada a aldeia-mãe de seus antepassados, onde havia muita gente morando, onde a epidemia dos primeiros contatos dizimou a maioria da população, entre homens, mulheres e crianças! Conhecer esse lugar é importante não só para saber do passado do povo mebêngôkre, da sua cultura tradicional, mas também do passado que fala dos primeiros contatos com os brancos, de uma história relativamente recente que, talvez, os jovens não tenham tanto interesse assim em saber. Contudo, o filme é uma forma de despertá-los sobre quem são, de onde vieram e de como os seus antepassados viveram antes e durante o contato.
Ingrõny, Pisada Forte é o nome do filme. Ingrõny é a palavra na língua mebêngôkre para broto, ou para o broto que surge da semente! Aponta para o lugar onde nasce uma planta e de onde vieram os seus galhos. Pisada forte, como se vê no filme, é uma espécie de batida dos pés sobre o chão oco – solo de um caminho usado pelos antigos nas suas andanças entre aldeias, e, como eles eram muitos e fortes, quando passavam, faziam um tremendo barulho retumbante. Este lugar, dos antigos, se encontra hoje no meio da mata. Ao passar por lá, ao encontrar o lugar, o personagem principal fala para o homem mais velho: “Chega para lá, vou limpar para ele (o câmera) filmar”. Depois de limpar a trilha já quase fechada pelo mato, bate os pés sobre o chão e diz: “Escuta, escuta! Ouviu?”. E pergunta a quem filma: “Vamos dançar aqui em cima?”. Quem filma responde: “Você canta!”. Continuando a bater os pés, o personagem principal conta: “Todo mundo passava aqui no meio e fazia barulho. Por isso o nome Pykararakre. Esse é de verdade! Desde antigamente. Ninguém fez, foi sempre assim. Nunca vai acabar. Vai ser sempre assim”.
Ingrõny poderia ser considerado um filme etnográfico, atencioso à vida cotidiana, aos encontros dos indígenas com os brancos e às transformações sofridas nos últimos tempos pela cultura mebêngôkre, mas preferimos considerá-lo um filme no qual o Coletivo Beture de cineastas indígenas busca articular passado, presente e futuro num recado audiovisual para as novas gerações. Seria Ingrõny um filme originalmente mebêngôkre? Sim e não. Sim, porque, sem os seus cineastas, sem os personagens principais, o filme não teria sido possível. Não, porque o filme foi feito a partir de uma oficina e de uma parceria feita entre o Coletivo Beture de Cineastas Mebêngôkre, a Associação Floresta Protegida e o Vídeo nas Aldeias. Aliás, é bom ter isso em conta para analisar a estrutura narrativa de Ingrõny, a versão final editada do filme está assinada por Ana Carvalho e Tita (ambas do Vídeo nas Aldeias) em colaboração com o Coletivo Beture de Cineastas Mebêngôkre.
Ao vermos e revermos Pisada Forte para escrever este texto, perguntamo-nos qual seria a reação do espectador kayapó diante desse filme, levando em conta o que Madi Dias (2011, p. 157-158) pensa a respeito do modelo padrão do filme kayapó:
Quanto ao conteúdo das imagens, eu diria que os Kayapó filmam e fotografam preferencialmente processos em andamento. Conforme me contou Bepnhô, as pessoas não gostam de assistir a planos em que nada acontece: preferem danças, pinturas, caçadas, pescarias, trabalhos manuais, preparo de comidas, jogos, viagens, encontros e outras situações em que haja uma ação sendo desempenhada por alguém. A ênfase no desempenho processual ajuda a compreender a valorização da imagem filmada em detrimento da fotografia.
Não custa repetir: o coletivo Beture de cineastas e comunicadores mebêngôkre-kayapó realiza uma pluridiversidade de filmes. A categoria “filmes” é usada aqui porque é por meio dela que nos referimos aos nossos próprios registros de processos de vida em fluxo de imagem e som, com seus sentidos e apelos estéticos e semânticos; mas, talvez, os Mebêngôkre prefiram mais adequadamente chamá-los de mekaron, ou seja, imagem, isto é, cinema em seus próprios termos (como reivindicou Ginsburg, acima).
Currículo
Ruben Caixeta
é professor titular de antropologia da UFMG. Fez mestrado em Antropologia Social pela Unicamp (1991) e doutorado em Letras e Ciências Humanas pela Universidade de Paris-Nanterre (1998). Cofundador e coorganizador do Forumdoc.bh. Faz pesquisa junto ao povo Waiwai (um grupo Caribe das Guianas) desde 1994.
Renata Otto Diniz
é antropóloga com pesquisa entre povos indígenas, integrante da Filmes de Quintal. Fez o mestrado em Antropologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ (2006) e cursa, atualmente, o doutorado pela Universidade de Brasília (UnB).
Notas
- Kayapó é um nome genérico usado tradicionalmente na literatura antropológica ou histórica para designar vários grupos semelhantes e dispersos que habitavam um vasto território no Brasil Central. Há, ainda hoje, vários subgrupos kayapó (ver a nota seguinte), mas, neste artigo, estamos nos referindo especialmente aos Mebêngôkre, e ora empregamos somente esse termo, ora preferimos a composição Mebêngôkre-Kayapó. Ainda, quando nos referimos aos Kayapó na perspectiva mais ampla, empregamos somente o termo Kayapó.
- Há, hoje, cinco terras indígenas tradicionais kayapó demarcadas no sul do Pará e norte do Mato Grosso, que totalizam uma área em torno de 10 milhões de hectares: TI Kayapó, TI Menkragnoti, TI Bau, TI Bandjakôre, TI Capoto-Jarina. Segundo informações do Instituto Socioambiental (ISA), os povos Kayapó se subdividem em 7 subgrupos atuais: Gorotire, Kuben-Krân-Krên, Kôkraimôrô, Kararaô, Mekrãgnoti, Metyktire e Xikrin. A TI Kayapó é uma das maiores das cinco TIs dos Kayapó, totalizando um pouco mais de 3 milhões de hectares. Segundo Madi Dias (2011a, p. 149, nota 1), a TI Kayapó “está localizada ao sul do estado do Pará e ao norte do Mato Grosso. Autodenominados Mebêngôkre, os Kayapó são cerca de 6 mil pessoas (Funasa, 2006) espalhadas por diversas aldeias ao longo do curso superior dos rios Iriri, Bacajá, Fresco, Riozinho e outros afluentes do rio Xingu”.
- O Coletivo Beture faz parte da Associação Floresta Protegida (AFP), uma organização indígena do Povo Mebêngôkre-Kayapó que representa aproximadamente 3 mil indígenas de 31 aldeias situadas nas Terras Indígenas Kayapó, Mekragnoti e Las Casas, no sul do estado do Pará. Para mais detalhes sobre o Coletivo Beture e da AFP, consulte as páginas: <florestaprotegida.org.br/> e <florestaprotegida.org.br/projetos/coletivo-beture-cineastas-mebengokre>
- Curioso, por mais que o filme Raoni veicule essa imagem romantizada e do “bom selvagem” sobre os povos indígenas, particularmente os Kayapó, é deixado à vista, para o espectador, exatamente esse uso do cinema como “mediação cultural”, como arma política de luta e articulação indígena em defesa do seu modo de vida e do seu território. Não deixa de ser impressionante o vigor e a clarividência do jovem líder Raoni, nas suas palavras dirigidas aos seus parentes de aldeia, ou no seu périplo pelas aldeias de outros povos indígenas, arregimentando e convocando os líderes de outros povos indígenas, outrora inimigos (mas, agora, vistos como parentes), advogando a necessidade de somarem forças na luta contra o invasor, isto é, o homem branco, e na defesa de seu território; ou, ainda, nas suas campanhas, nas grandes cidades do Brasil e do mundo afora, para denunciar as atrocidades contra os povos indígenas, para demarcar e proteger o seu território. Tudo isso, incrivelmente, num português forte e exuberante, ainda que de difícil entendimento por parte do não indígenas. E pode-se dizer que o filme Raoni, apesar de seu apelo piegas e equivocado, concede palavra e protagonismo ao pensamento e à política de líderes indígenas como Raoni.
- Em se tratando de trabalhos que refletem sobre a produção audiovisual entre os Kayapó, esse e outros textos de Madi Dias, escritos no modo solo ou em coautoria com André Demarchi, são referências. Ver, por exemplo, Madi Dias (2011a, 2011b), Madi Dias e Demarchi (2013).
- Oficinas realizadas no contexto da pesquisa financiada pelo programa de Documentação de Línguas e Culturas Indígenas, da Unesco, realizado no Museu do Índio - Funai.
Referências
MADI DIAS, Diego. Filmar e guardar: reflexões sobre “cultura” e imagem a partir do caso Mebêngôkre-Kayapó (PA). Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio - PPG - PMUS Unirio, v. 4, n. 1, p. 149-169, 2011a.
______. Três paradigmas para pensar o vídeo entre os Kayapó. In: CARDOSO VALE, Glaura; MAIA, Carla; TORRES, Junia (Orgs.). Forumdoc.bh.2011 - 15º Festival do Filme Documentário e Etnográfico / Fórum de Antropologia e Cinema. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2011b. p. 300-328.
MADI DIAS, Diego; DEMARCHI, André. A imagem cronicamente imperfeita: o corpo e a câmera entre os Mebêngôkre-Kayapó. Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v. 7, n. 2, p. 147-171, 2013.
PINTO, Lúcio Flávio. Belo Monte: o paquiderme de energia parado. Disponível em: http://amazoniareal.com.br/belo-monte-o-paquiderme-de-energia-parado/. Acesso em: 20 out. 2024.
TURNER, Terence. Imagens desafiantes: a apropriação kaiapó do vídeo. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 36, p. 81-121, 1993.
______. Social structure and political organization among the Northern Cayapo. 1966. 514 p. (Tese de Doutorado) - Cambridge-Harvard University, 1966.