Cenas da Luta de Classes em Portugal¹

Caminhos paralelos (que talvez se encontrem na infinidade)

CENAS retrata factos ocorridos em Portugal entre 1974 e 1976, tendo-lhe sido acrescentados em 1978 um prólogo e um epílogo. Esta versão tem diálogos em português, com narração em inglês em fundo. O filme é em 16 mm, a preto e branco e a cor, e tem a duração de 98 minutos.

Já passam quase três anos desde que eu e Phil Spinelli fizemos CENAS. Três anos e aconteceu muita coisa para toda a gente. Quando vejo o filme agora, ainda fico preocupado pela nossa interpretação dos acontecimentos em Portugal depois de 23 de abril de 1974. Em que medida é que estávamos errados e porquê? Qual é o valor de uma ideologia? Como é que ela é um instrumento útil? O que é que se ganha e o que é que se perde? E, certamente, poderia a evolução dos acontecimentos, o resultado, ter sido diferente e até que ponto teria isso dependido da «análise», especialmente a análise dos próprios participantes? Mas quando vejo CENAS mantenho também uma conversa continuada com o desenho formal do filme.

Acima de tudo, este desenho depende da separação (a luta real) entre a banda da imagem e a banda sonora.

A banda da imagem é violentamente fragmentada. Tudo somado, é uma série de relances de Portugal duma gente e dum país em convulsão social, de breves lampejos do que descobrimos, nitidamente justapostos. Na imagem estávamos a tentar manter-nos abertos, deixarmo-nos ser guiados pela poderosa torrente de energia que caracterizou este período.

Por outro lado, a banda sonora é essencialmente um discurso, uma análise destacada que flui indiferentemente sobre as imagens. Não é realmente um comentário sobre as imagens. Raramente as reforça. E as imagens não têm necessariamente de corroborar (pretender justificar) a análise. A análise corre lado a lado da imagem e a distância entre as duas frequentemente espoleta significados que não estão presentes só na imagem ou só no som.

Os elementos para a banda sonora foram feitos no momento –em interacção directa, em descoberta. Para simplificar, pode-se dizer que se trata da resposta emocional à situação: da reacção instintiva (por exemplo, em quase todo o material de «entrevista» ou cobertura de comícios e acontecimentos públicos, etc., nós não falávamos português suficiente para compreender o que as pessoas na verdade diziam. Ligávamos e desligávamos a câmara e o gravador, de acordo com a nossa intuição, a nossa resposta instintiva ao tom de voz, expressão facial, gesto).

Mas o elemento dominante da banda sonora, a nossa análise, foi feita posteriormente. Depois de montada a banda da imagem, depois de termos visto que pelo menos metade do que queríamos (do que tínhamos pensado e de que tínhamos falado) não estava lá, no filme.

O «drama» da banda sonora é a nossa luta para compreender algo de concreto, sim, mas também para aplicar uma certa análise política: tentar fazê-la e seguir esta linha de pensamento até à sua conclusão. Para dizê-lo doutra maneira: queríamos entender («teoricamente») porque é que tínhamos correspondido a certos estímulos e não a outros.

Penso que chegamos à conclusão de que esta separação entre a imagem e o som, o «sentimento» e a «interpretação», corresponde a algo de essencial na situação sobre a qual tentávamos fazer um filme. No mesmo momento, cada coisa, cada pessoa, cada cena era irresistivelmente concreta e cheia de detalhes específicos e ao mesmo tempo sujeita a uma interpretação absolutamente impessoal e abstracta: uma interpretação ideológica e uma «exigência de uma tomada de posição». Tudo era «específico e Português» e simultaneamente uma «ilustração académica», «o exemplo vivo das leis históricas gerais». E esta separação estava, no espírito de toda a gente, na linguagem, no discurso do período. E parece ser uma das qualidades mais importantes do ambiente altamente politizado dos processos revolucionários em geral.

Não sei como tudo isto finalmente funciona no e para o filme. A minha opinião modifica-se de tempos em tempos. Penso que cometemos um erro em fazer uma versão totalmente falada em português. Isto reduziu o drama da narração, através da eliminação

da nossa condição de estrangeiros, escondendo o facto da nossa grande distanciação dos acontecimentos e reduzindo a possibilidade de você, o espectador, poder vir a considerar as nossas exigências tanto quando fizemos a análise, como quando fizemos o filme.

Ao mesmo tempo, às vezes penso que teria sido melhor se Phil e eu, os realizadores, nos tivéssemos colocado dentro do filme, a fim de tornar mais claro quem é que estava a sentir a separação, esta dissociação e qual a razão. Talvez isso fosse mais claro. Mas, quase inevitavelmente, ter-nos-íamos tornado o assunto do filme e isto era exactamente o que não queríamos. De facto, este desejo de invisibilidade, esta «redução do pessoal», é inseparável do estado de espírito em que realizámos o filme. E não teria a nossa presença amortecido a força da colisão entre imagem e interpretação, entre resposta directa e a tentativa subsequente (tortuosa) «de fazer uma interpretação coerente dentro das tradições revolucionáveis de pensamento dadas»?

O nosso projecto não era o de contar «A História de Portugal». Oferecemos cenas da luta de classes em Portugal, lampejos que não eram os habituais, dado que mesmo assim «a luta de classes» não é um ponto de início vulgar para um filme. Pensamos que não poderia haver um filme que fosse inteiramente compreensível, mas que todos os filmes sobre os acontecimentos ocorridos durante esse período, poderiam, em conjunto, começar a reflectir uma experiência de forma mais substancialmente adequada.

Paris, 22 de agosto de 1980

Notas

  1. Publicado originalmente no catálogo do Festival de Cinema da Figueira da Foz (1980). Este texto, cedido gentilmente por Keja Ho Kramer, foi extraído do encarte do DVD editado pela Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, em 2024, mantendo a ortografia original.