O tempo foi o meu mestre que me ensinou a curar
“O que é cura para você?” É impulsionada por essa pergunta provocadora e sem resolução, tomada de empréstimo do filme fundamental de Castiel Vitorino Brasileiro Lembrar daquilo que esqueci, que a jornada desta mostra se modula. Frente às incontáveis possibilidades de resposta, nos lançamos ao desafio de pensar a ideia de cura no cinema, em particular brasileiro e realizado nos últimos anos, junto às imagens sonoras que pensam uma existência partilhada no difícil cenário atual, permeado por retrocessos e apagamentos, mas também por novos modos criativos que a eles se opõem. ¹
Conceito plural e em disputa, por vezes inapreensível, e por isso uma via estimulante de aproximação às realidades vividas e propostas estéticas em suas estratégias de existência. Pela via do dicionário, o termo denomina o “ato, processo ou efeito de curar(-se)”², definição que, embora carregue a cegueira ocidental que move o ímpeto colonizador de categorização de tudo e todes, também revela a cura tanto como processo quanto como efeito, gesto simultâneo para si e outrem, funcionando como uma instigante força motriz. Mas se, num primeiro momento, a palavra evoca o tratamento e restabelecimento da saúde, em especial pelo viés das ciências médicas no senso comum, é fundamental retirá-la desse lugar apaziguador, ao expandi-la para múltiplas formas de conhecimentos e vivências, nas cosmologias tradicionais e conexões entre povos “afropindorâmicas”³, nos modos insurgentes de estar no mundo frente às ficções de normatividades históricas, em especial sob a égide de movimentos antirracistas, feministas, queer, que convocam a rearticulação de práticas de cura e, sobretudo, a formação de comunidades voltadas para um cuidado sob bases outras.
Um desafio que se desdobra em novas camadas no presente contexto de pandemia e isolamento social, com o seu brutal poder de reconfiguração de tempos, espaços e afetos. Castiel nos apresenta a cura como um “processo perecível de liberdade”. Se acionarmos a categoria tempo, talvez possamos nos aproximar de um estado que nos enlaça, passível de deterioração, mas que se renova como tudo o que é orgânico, que tem vida. O momento da cura pode ser o fim e o começo, assim como é um meio, como tantas vezes morremos e nascemos no tempo da Terra, esperando e vendo outros tempos chegarem. Desse modo, outras indagações vêm se somar à inicial, em uma profusão de interrogações: o que poderíamos chamar de éticas de cura? Que gestos podemos hoje, a fim de criar esses espaços perecíveis de liberdade? Quais as ações possíveis ao corpo, rumo a um espaço de liberdade na arte, na clínica e na vida? Qual a potência de um cuidado com outre que se dá no encontro com a câmera que filma e escuta?
Nos meses que levamos a conceber a mostra, com uma metodologia gestada a várias mentes, mãos e corações, as referências vieram de diferentes campos, teóricos e artísticos, bem como da perspectiva daquilo que nos toca enquanto espectadoras/es desejantes – reconhecendo e assumindo os riscos de tal posicionamento subjetivo. Um primeiro passo foi pensar a cura longe de definições hegemônicas e ingênuas; não uma finalidade em si, ou um télos a ser alcançado individualmente, e sim como um meio e tentativa transformadores coletivamente. Cura como uma experiência e uma ideia, um equilíbrio momentâneo e efêmero⁴. Como lágrimas que deságuam e podem ou não irromper em soluços. Uma estética que diz respeito às formas que desviam dos parâmetros cristãos: o céu, a salvação, a culpa e punições. Castiel nos apresenta a pergunta “Como criar um espaço que não seja só de resistência, mas também de criação?”⁵
Partindo desse mote, digamos, conceitual, e mantendo no horizonte a vigorosa produção audiovisual brasileira encabeçada por sujeitos pertencentes a minorias de gênero, étnico-raciais de orientação sexual, que por décadas foram apartados dos modos de realização e exibição cinematográfica tradicionais, outras noções passaram a integrar nosso vocabulário: cuidado, amor, comunidade. Palavras que até poderiam ser consideradas ideias abstratas se não encontrassem lastro na concretude desses corpos à margem, em seu caráter intenso e insubmisso. Mais do que outros paradigmas estéticos, o que essa seleção de filmes almeja é despertar para epistemes que pulsam entre as cidades, as vidas confinadas pela pandemia, nas brechas e espaços nos quais muito amor se reinventa, enfrentando a violência com sonhos, (auto)cuidados e diversas propostas de curas.
Nesse sentido, torna-se fundamental pensar o papel do amor como ferramenta de transformação social em todas as esferas, junto a bell hooks: “Quando escolhemos amar, escolhemos nos mover contra o medo – contra a alienação e separação. A escolha por amar é uma escolha por conectar – por nos encontrarmos com o outro.” ⁶ Atualmente, o que se vê dentro das incertezas é um desejo e um objetivo que toma forma muitas vezes em conjunto, entendendo que o cuidado com nós mesmes e com outres que nos cercam e também nos cuidam [humanas e não-humanas] é um possível caminho para persistir no amor.
E não só de amor passivo vive a humanidade, mas é por amor que devemos enfrentá-la. A existência da espécie humana no mundo chegou num ponto crítico em que devemos dizer não. É necessário que este enfrentamento à guerra em seus muitos disfarces seja categórico, irreverente, cheio de energia, assim como é a própria guerra. Devemos propor o inverso, linhas de fuga sem destino certo, encontros que nesta proposta curatorial se delineiam entre debates, mesas online, conferência, textos e filmes que integram a programação.
Frente ao desafio de categorização, aproximamos os dezenove filmes da mostra a partir de três agrupamentos tão provisórios quanto instigantes, de modo algum definitivos, que nos convidam a visitar comunidades de cuidado: enfrentamentos, éticas de cura e fabulações, como veremos a seguir.
Enfrentamentos, ou corpo como arquivo
Audre Lorde, em “A poesia não é um luxo”⁷, demonstra como a criação, sempre restrita aos corpos brancos e masculinos, e como o enfrentamento ao cartesianismo do “‘penso, logo existo’, é sussurrado pela mãe negra com um ‘sinto, logo posso ser livre’. A poesia cria a linguagem para expressar e registrar essa demanda revolucionária, a implementação da liberdade” (LORDE, 2019, p. 48). Ao eleger os sonhos como direção para a liberdade, no que diz respeito ao gesto feminino, ela nos coloca que
(...) a força das mulheres está em reconhecer as diferenças entre nós como algo produtivo e em defender sem culpa as distorções que herdamos, mas que agora são nossas e cabe a nós alterar. A raiva das mulheres pode transformar a diferença, por meio da compreensão, em poder. Pois da raiva entre semelhantes nasce a mudança, não a destruição, e o desconforto e o sentimento de perda que ela costuma causar não são fatais, mas sintomas de crescimento. (LORDE, 2019, p. 164)
A raiva de que fala Lorde, passível de transformar a diferença em poder de mudanças efetivas, escancara como o confronto direto pode também operar enquanto uma estratégia de lidar com os adoecimentos de si e do mundo. Combater um projeto pautado pelo extermínio, na esteira do que propõe Jota Mombaça com uma redistribuição anticolonial da violência: “que modalidades de cuidado político devemos gerar a fim de sanar as feridas que a violência (contra nós e a nossa própria) produz em nós mesmas?”⁸ O paraíso não chega, mas talvez o que se evoque nas obras aqui selecionadas sejam justamente essas tentativas que libertam e permitem enfrentamentos ao sistema: não banalizar a violência, questionar a medicina enquanto instituição disciplinadora e homogeneizante, forjar outras formas de estar em grupo, de produzir e criar discursos artísticos como afirmação de existência coletiva.
Em Recado do Bendegó/Kaminhos da pedra, díptico de Gustavo Caboco, há um encontro com imaginários indígenas, desta vez situado junto ao povo Wapixana, em Roraima e Paraná. A ética da pedra que chega a partir da transmutação de uma árvore em monte, traz o sentido de viver junto e cantar essa vida para que o caminho siga com os pés que forem possíveis, inclusive resistindo ao apagamento de sua memória diante do incêndio do Museu Nacional no Rio de Janeiro. Na animação, a música é visualidade concatenada para ser vista em diálogo com o vídeo Recado do Bendegó, ambos trabalhos originalmente exibidos em proximidade na 34a Bienal de São Paulo, 2021. Já em Exercício de Arquivo #2, de Abiniel João Nascimento, o enfrentamento está na intervenção sobre os arquivos dos brancos em seus discursos históricos que atestam as tentativas sistemáticas de apagamento simbólico e literal contra os povos indígenas, convocando para isso outras dimensões de arquivo, por meio do corpo e de memórias por ele carregadas.
O tempo de agora tem mostrado que o estado de violências reservado a certos grupos se deteriora na medida em que se desenham novas formas de confrontação. A exaustão causada por essa “atualização perpétua da injustiça como fantasia de controle”⁹ só poderá oferecer saídas, que têm sido arquitetadas de forma mais sutil do que se imagina. E com sutil não se quer dizer dócil, muito menos fácil, menos ainda sem dor. Algo latente em Pérola, filme-processo disruptivo realizado coletivamente junto a um grupo de jovens mulheres em situação de rua. Trata-se de um filme fascinante no sentido de transformar a diferença em poder – também de fazer cinema –, e com raiva, ao recriar a existência da vida das ruas. Como processo ele inventa junto aos enfrentamentos ao status quo tantas vezes cego. Tão cego como é o imaginário vigente que violenta os corpos jovens em Rolê - histórias dos rolezinhos. No longa de Vladimir Seixas, o enfrentamento se faz nos corpos que atualizam a luta contra o racismo soterrado mas firme, tal qual as estruturas confrontadas pelos corpos jovens e negros nos/dos shopping centers. No filme, em diferentes dimensões de performances, em se manter vivo, atento e forte diante de violações dos seguranças, Rolê narra mais uma das batalhas da negritude nas cidades brasileiras e a potência de transformação nas vidas pulsantes.
Fechando os modos de enfrentamento, e retomando a noção de pandemia sob outra ótica, temos dois filmes, um contemporâneo brasileiro e um estrangeiro da década de 1990, que evidenciam que o HIV/Aids são experiências que se constroem no tempo. Documentários feitos em momentos distintos, mas que se aproximam por apostarem em experiências de sujeitos que se livram da culpa, da posição de vítima e a partir da responsabilização se colocam frente à câmera como corpos-vivos falando de vida. Ambos nos apresentam outras possibilidades para o papel da produção de discursos artísticos sobre um vírus que (des)conhecemos há no mínimo quatro décadas.
Quais projetos éticos-estéticos estão envolvidos nessas propostas? O filme do estadunidense Marlon Riggs, Non, je ne regrette rien (No regret), nos possibilita um acesso a uma ancestralidade positiva¹⁰, que vemos performar a vida no contemporâneo Deus tem AIDS, dirigido por Fábio Leal e Gustavo Vinagre. Filmes que quebram o silêncio e povoam a tela apresentando tentativas de cura para o que (ainda) não tem cura. Que nos levam à urgência de entender que a AIDS não é uma doença do outro, que o HIV é um vírus, atualmente com possibilidade de se tornar indetectável,¹¹ a partir do avanço do tratamento.
É preciso eliminar monstros, construir outros e acabar com a ideia de outridade. E isso é possível justamente quando se criam condições para que corpos vivendo com HIV falem, inclusive, quebrando o silêncio garantido por lei. Tais corpos parecem operar numa performatividade da urgência. Não porque estejam à beira da morte, mas justamente porque precisam reafirmar sua potência de vida.
Preciado nos ensina que o corpo é objeto central da política. Poderíamos pensar que os filmes dessa mostra afirmam a ideia inicial de queer, não se restringindo apenas à comunidade LGBTQIA+, mas se relacionando com outras vidas à margem: quem mora na rua, quem é patologizado, pretes, mulheres e pobres. Corporeidades em movimento que em tela não só nos possibilitam um contato com uma ética/estética, mas também com um saber-do-corpo.
Éticas de cura, ou corpo como sonho e ancestralidade
Este agrupamento reúne filmes que explicitamente tematizam práticas curativas a partir de uma gama de epistemologias e conhecimentos. A começar com o curta de Castiel que inicia este texto. Mostrando ser possível construir linhas finas, ligações, laços, formando desenhos, constelações, modos de se conectar a saberes que estão para além e, por isso mesmo, com poder de cura sobre os corpos; poderes que agem também pelos sonhos e ancestralidades, epistemes que transcendem a racionalidade binária. Formando lugares, sentimentos individuais e coletivos que irrompem trazendo novas propostas de sobre-vivências não atreladas a esse normal. Já faz um tempo que estamos descobrindo os efeitos danosos de uma pretensa normalidade.
O mergulho no cotidiano de Afetadas, realizado por Jean, nos leva ao encontro de corporalidades encantadoras que superam o normal. Corpos plenos de desejos, enfrentando dificuldades e dores, ampliando sua gestualidade em ritualidades inventadas ao se preparar para a balada, para a expressão dançada, para os encontros e a performance, para ferver com os outros corpos que ali se alinham. O signo da performance que se inventa a partir de ancestralidades sonhadas pelos corpos também guia Aracá, outro curta de Abiniel João Nascimento a integrar a mostra, desde a encruza que recebe oferendas, até a dança silenciosa do manuseio da magia que misturam as ancestralidades negras e indígenas, o silenciamento de mulheres e de corpos encantados, enfeitiçantes, corpos calibãs.¹²
Daniel Munduruku, no texto “Da Gênese de Vexoá”, explica como o processo de silenciamento pelo qual passam os sujeitos indígenas na escola, quando lhes é arrancado de seus corpos o que trazem de “mágicos”, “a magia cede lugar para um princípio que escamoteia nosso desejo mais íntimo pela verdade: somos seres originados de uma matéria cósmica. Somos parte do universo e não seus donos.”¹³ Nesse sentido, em Encontro de Pajés - Yãy Tu Nuhnãhã Payexop, a cura coletiva se atualiza diante da câmera de Sueli Maxakali que, atenta, nos mostra a comunidade de seres que se reúnem na água, na terra, entre seus corpos, com os Yãmiy e conosco, que assistimos ao transe compartilhado e, afetadas, sentimos o arrepio na espinha que nos informa: estamos vivas!
Também como nos diz Edna, que se posta enfaticamente diante da câmera cerrada no close das caixas de remédios espalhadas em um canto do quarto. Viva enquanto fala, narra, reconta e recria a trajetória da resistência de seu corpo diante da indústria farmacêutica, curando-o ali, no cinema. Fardo farmacopornográfico, como enuncia Preciado, que Edna carrega; no filme ela responde aos médicos que a receitavam cápsulas, drágeas, emplastos e um homem para chamar de seu. Mas a cura estava em outro lugar, no criar para voltar a sonhar e reverenciar as que vieram antes, como ela faz.
A raiva que enfrenta e que tem potencial de curar, porque extrapola o limite do corpo, é compartilhada, pode se transformar inclusive em entendimento de que A vida é sempre um mistério, como anuncia o título do filme que acompanha o encontro do Movimento Nacional da População de Rua, no Rio Grande do Sul, em uma paragem plena de paisagens naturais. Entre as praias, dunas, manhãs, entardeceres e noites, os corpos dos associados performam danças, capoeiras, meditações e curas outras, éticas diferentes, conectando delírios/desenhos de outro mundo possível.
Fabulações, ou corpo como memória
Seriam as imagens fabuladas nos filmes aqui presentes capazes de enfrentar e (des)construir os cinemas hegemônicos em suas ficções de poder particulares? Os gestos, procedimentos, montagens e remontagens dessas corpas deixam de ser sensações passivas e compõem, com afetos, os mapas que orientam trajetos rumo aos encontros e aos efeitos dessas presenças em nossas vidas, mas também na de cada existência.
Processos criativos como em O Elixir, de Marina Sandim e Lucas Campolina, que produzem lampejos de desejo com Raul e Martim em gestação, câmera que escuta as cantigas balbuciadas, o sussurro das sombras do vento nas folhas das plantas enquadradas em alguma parede da casa, um canto que serve de espaço para a escuta dos sonhos que seguem e virão. Há de se dizer que, na mostra, os encontros foram inúmeros, com seres viventes, sonhados, gestados, mágicos. Vemos em Nossos espíritos seguem chegando – Nhe'ẽ Kuery Jogueru Teri, de Kuaray Poty/Ariel Ortega e Bruno Huyer, o cuidado que Patrícia Ferreira Pará Yxapy nos deixa saber quando compartilha conosco as práticas guaranis de esperar uma criança, uma nova vida que vem aqui habitar e existir. E ainda sobre um estar no mundo sendo criança temos Olhos de Erê, dirigido por Luan Manzo, que revela os mistérios de sua casa, terreiro, quilombo a partir da curiosidade e fabulação infantil. A ancestralidade adentra o quadro por meio de sua atenção às guias, aos espaços sagrados, aos corpos que circulam pela sua morada-mundo na pandemia
O estado de mundo pandêmico atravessa também Ano 2020, do Coletivo Olhares (Im)possíveis, em que adolescentes de Ouro Preto, no interior de Minas Gerais, recorrem às câmeras para inventar e dividir uma história do ponto de vista de quem não habita um centro. Por meio de texturas e telas diversas, a construção desse cotidiano marcado pelo distanciamento (dos amigos, da escola), por um lado, e pela conexão afetiva em um mundo que agora parece só existir imageticamente, por outro, se dá pela atenção àquilo que lhes é mais próximo, em uma potente reformulação de espaços e tempos no cenário contemporâneo.
Em outra chave de fabular, mas não desprovida de tensionamentos, a imagem da Coroação de Nossa Senhora das Travestis, cena curta que Fredda Amorim, da Academia Transliterária e mamma da Queerlombos, performa, questionando uma tradicionalidade simbólica baseada em opressões que, quando apropriada, transforma e inverte esses significados, convocando um novo olhar. Para finalizar a seleção, o longa estrangeiro Latcho drom, do diretor franco-romeno Tony Gatlif, apresenta as circularidades ciganas por muitos lugares do globo, em uma viagem musical que se torna uma potente experiência sensorial a iluminar os demais filmes da mostra, especialmente em uma era regida pela onipresença da palavra em sua lógica racionalizante.
Um contexto macropolítico específico está instaurado. A tríade moderna (capitalismo, colonialismo e patriarcado) segue operando na construção e reconstrução de um vírus social que atinge a todes, mas que em algumas corpas opera até o estágio máximo: o fim, a morte, o aniquilamento. Uma modernidade, indissociável do pensamento a sustentar a era do Antropoceno, que concebe um mundo que também destrói a biodiversidade. Contra o “vírus colonial”,¹⁴ apresentamos aqui um conjunto de filmes que trabalham incessantemente na busca pela imunização das biodiversidades que são atacadas por esse vírus, que diferente do da Covid e do HIV não é nada silencioso, ainda que muitas vezes velado. Anticorpos produzindo gestos e movimentos de corpas que fogem à representação.
Em suas singularidades, os filmes aqui reunidos apresentam uma pluralidade de caminhos e modos de organização, de posicionamentos políticos e subjetivos, formas de aliança e de estar junto, além de estratégias de combate às violências sistêmicas. Propostas estéticas inovadoras, em consonância com o poder insurgente dos corpos colocados em cena, que transitam por vertentes de criação: da performance às artes visuais, à música, à dança, à literatura, entre relatos etnográficos, dispositivos em primeira pessoa ou narrativas de inspiração ficcional. A seu modo, cada filme coloca em curso a formulação de diferentes “comunidades de cuidado” que se rearticulam e questionam a cada trabalho.
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Para falar de cuidado e cura, convidamos especiais queridas, querides e queridos para compartilhar suas ideias com o festival. Começamos com uma conferência com Castiel Vitorino Brasileiro, multiartista, escritora e psicóloga clínica, presente como quase síntese do que aqui enfatizamos, em conversa mediada pela professora e pesquisadora Tatiana Carvalho Costa.
Nas mesas temáticas, Ronaldo Serruya, ator e participante de Deus tem AIDS, divide o debate com Fredda Amorim, da Academia Transliterária, e Arquivo Mangue, coletivo artístico composto por Cafira Zoé e Camila Freitas, que interpela a realidade com outras éticas, como a mineral e a herbária, para tematizar as Fabulações, ou o corpo como memória, no Dia Mundial da Luta Contra a Aids. Na mesa dedicada a pensar Enfrentamentos, ou o corpo como arquivo, Priscila Resende, artista sediada em Belo Horizonte e Vladimir Seixas, diretor de Rolê - História dos Rolezinhos, conversam com Gabriela Gaia, professora em Arquitetura e Urbanismo na UFBA, sobre as interpelações vividas pelo corpo negro nas cidades brasileiras desde o início de suas formações; o texto “Contra o racismo, ocupar espaços” de Carlos Henrique Lima, professor na Faculdade de Arquitetura da UnB, também se dedica a estes enfrentamentos éticos.
Na terceira mesa, Éticas de cura, ou o corpo como sonho e ancestralidade, Makota Cassia Kidoialê, mestra no espaço de afrobetização Kilombo Manzo Ngunzo Kaiango, do filme Olhos de Erê, encontra Sueli Maxakali, cineasta e liderança indígena e Abiniel Nascimento, que também escreveu o texto “Aracá é partícula de tempo”, excerto de seu trabalho de conclusão de curso na Universidade Federal Rural de Pernambuco. Já na mesa transversal de abertura do forumdoc.bh.2021, Gustavo Caboco, realizador do díptico que integra a seleção, será a presença de nossa mostra em diálogo com os demais convidados. Quanto aos debates gravados, contaremos com uma conversa sobre o filme processo de Pérola, num diálogo entre as realizadoras e a montadora Cristina Amaral, bem como com um debate junto ao coletivo realizador de Ano 2020.
Na fortuna crítica inédita deste catálogo, Ana Carvalho e Maria Silvanete Lermem escreveram “Há sempre uma árvore que somos nós”, no qual conversam com as águas, ervas, cantos e sonhos dos filmes Encontro de pajés e Nossos espíritos seguem chegando. Em “Percursos de cuidado”, Priscila Miraz atenta para os modos de inventar e recriar os encontros entre a corporeidade, a música, a dança e o afetivo, inclusive na dimensão transfamiliar, ao comentar O Elixir, Latcho drom e a crítica inventiva de Lembrar daquilo que esqueci . “Do ritmo do outro aos muitos, um corpo para o cinema”, escrito pelo Fórum Nicarágua, enfatiza a substância da entrega ao acompanhar processos criativos em audiovisualidades motivados por situações de cuidado terapêutico. Ritmos que encontramos ao acompanhar Edna, os quatro integrantes do Movimento Nacional da População em Situação de Rua, em A vida é sempre um mistério, ou mesmo as mulheres em relação pelas ruas centrais de Belo Horizonte, em Pérola.
Em “Sobre descanso”, Micaela Cyrino, que performa em Deus tem AIDS, apresenta um manifesto pela superação da cura social da Aids que interpela quem ainda não entendeu o que está acontecendo em 2021, igualmente em consonância com o filme No regrets. Em “Escrita que sai da tela”, Dodi Leal, primeira professora universitária trans na área de artes em uma universidade pública na América Latina, e novamente Fredda Amorim, vêm dizer que “não é possível a cura sem as pessoas trans estarem na curadoria”, diante da presença dos filmes Afetadas, uma dança com as amigas de Jean, Lembrar daquilo que esqueci e, no mesmo continuam, Coroação de Nossa Senhora das Travestis. Para Fredda, infectada pela Covid-19 durante a escrita do texto, as éticas de cura aterrissam e aterram como bruxaria a seus modos de reencantamento e sonhos, como “o dia das (DES)APARECIDAS”, e ao futuro em que as travestis sejam cura, como dizem com Ventura Profana, com Linn da Quebrada. Por fim, Joanna Ladeira e Paula Kimo tecem os “Relatos de um filme-ação entre mulheres nas ruas de Belo Horizonte”, narrando o processo de produção de Pérola enquanto um filme de encontro entre mulheres, implicadas na realidade e nas imagens.
Estamos em um momento difícil da história. Intuímos, então, que estes filmes podem nos apresentar algo inspirador, mantendo acesa a chama que nos conta que existem processos capazes de solapar as narrativas hegemônicas e contaminar nossa vida social. Procedimentos que nos apresentam outras maneiras de viver a vida, passando por práticas clínicas, artísticas, performáticas, educativas, derivas e encontros que abandonam a ideia de circuito fechado. Essas experiências “espiraladas” garantem a possibilidade de que esses mundos outros continuem acontecendo. Mundos onde a cura não é cristã, mas uma ética de não permitir o apagamento, uma ética pela vida. Algo possível de se vislumbrar quando o movimento de lembrar daquilo que esqueci esgarça os possíveis e coloca em cena repertórios que ainda não estavam evidentes no “mundo como conhecemos”.
Notas
¹ O movimento desta mostra encontra eco em diferentes iniciativas recentes no Brasil: em publicações, mostras e a própria produção artística a pensar práticas de cura a partir de perspectivas decoloniais, além de debates às voltas com a aproximação entre a curadoria e cura, como nas mesas online promovidas pelo IX CachoeiraDoc sob o tema “Festival impossível curadoria provisória”, em maio de 2020. Dentre os textos, destacamos “A cura pelo cinema”, de Carol Almeida (livro Outros Críticos – O outro é uma queda, 2018), e “Um sopro de cura: fruição estética e afetação em corpos audiovisuais para cuidar de traumas coloniais”, de Milene Migliano e Thiago Rizan (Rebeca, ano 9, n. 2, 2020), entre outros. No campo de mostras e festivais, destacamos ainda a I Mostra Cine Flecha, realizada online em outubro de 2020, que teve como subtítulo "(Re)Existir e Curar" e apresentou recente produção audiovisual de diferentes coletivos e realizadores e realizadoras indígenas do Brasil.
² Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2001.
³ Expressão que abrigaria povos quilombolas, negros e indígenas, conforme elabora Antônio Bispo dos Santos, teórico e liderança do Quilombo Saco-Curtume (Piauí). In: SANTOS, Antônio Bispo. Colonização, quilombos: modos e significações. Brasília: UnB, 2015
⁴ Como Castiel nos ensina em suas falas e trabalhos.
⁵ 11º Encontro da Formação Aberta de Aquilombamento nas Margens. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Sw_z5A2GnKE&ab_channel=MargensCl%C3%ADnicas. Acesso em 25/10/21.
⁶ hooks, bell. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. Editora Elefante, 2021. p. 209.
⁷ Capítulo de Irmã Outsider. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
⁸ Mombaça, Jota. “Rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violência!” Disponível em https://issuu.com/amilcarpacker/docs/rumo_a_uma_redistribuic__a__o_da_vi. Acesso em 25/10/21. p. 14.
⁹ Mombaça. Idem, p. 4.
¹⁰ Expressão proposta por Ronaldo Serruya no contexto do curso “Como eliminar monstros: discursos artísticos sobre HIV/ AIDS”.
¹¹ Indetectável = Intransmissível e ponto final. Em 2018, a partir de estudos realizados pela pesquisa mosaico (entre 2007 e 2016), foi publicada pela UNAIDS nota técnica que afirma: uma pessoa que vive com HIV e está em tratamento há mais de 6 meses não transmite o vírus por via sexual, mesmo em relações sem proteção.
¹² Federici, Silvia. Calibã e a Bruxa, mulheres, corpo e acumulação primitiva. Trad. Coletivo Sycorax. Editora Elefante, 2017.
¹³ Munduruku, Daniel. “Da Gênese de Vexoá”. In: Vexoá, Nós sabemos, curadoria de Naine Terena, Pinacoteca do Estado, 2020. p. 130.
¹⁴ A ideia da colonialidade como um vírus foi apresentada por Guilherme Marcondes em "Anticorpos para o combate ao vírus colonial: algumas ideias a partir da arte". Horizontes ao Sul, 2020. Disponível em: https://www.horizontesaosul.com/single-post/2020/04/29/ANTICORPOS-PARA-O-COMBATE-AO-VIRUS-COLONIAL-ALGUMAS-IDEIAS-ATRAVES-DA-ARTE. Acesso em 01/11/21.