Desde Rovuma até o Maputo - Os 50 anos de libertação de Moçambique

Mas bem no fundo das almas

e dos corpos tatuados de esperança

o clitóris das montanhas nos sexos das nuvens

pátria do nosso desespero mais desesperado

pátria dos pés descalços na brancura do algodão

pátria de beijos e promessas de mais beijos

é o nosso genuíno grito mais gritado

a levantar no cosmos a beleza do nome

não renegável de Moçambique!

(José Craveirinha, Canto do nosso amor sem fronteira)

Para aqueles que partiram cedo demais, 

Luísa Horta, Oswaldo Teixeira, Urik Paiva

kuxa kanema: Moçambique, 50 anos de libertação parte de uma efeméride, a princípio, exterior ao debate cinematográfico: o cinquentenário da libertação de Moçambique, que se completa em 25 de junho de 2025. Poder-se-ia, portanto, depreender que propomos uma programação, antes de mais nada, fincada na superioridade do histórico e do vivido em detrimento da matéria cinematográfica. No entanto, os fios que atam a aventura revolucionária moçambicana e o nascedouro de um novo cinema, fruto do combate ao colonialismo e irmanado a um amplo arco de “amizades socialistas”¹, parecem, em grande medida, pôr à prova essa distinção. O longo esforço contracolonial levado a cabo em torno da FRELIMO² (Frente de Libertação de Moçambique) a partir da década de 60, em grande medida inacabado mesmo décadas depois, sempre implicou na construção de uma linha de frente de disputa cultural estruturada a partir de alianças que em muito ultrapassaram as fronteiras nacionais. São exemplares, nesse sentido, os registros documentais das lutas contra as forças coloniais dirigidos por Robert Van Lierop (A Luta Continua, 1972) e por Margaret Dickinson (Behind the Lines, 1971), realizados ainda antes do Acordo de Lusaka (1974), entre o Estado português e a FRELIMO, que reconheceria formalmente o fim do jugo colonial português sobre Moçambique. É exemplar, ainda, a participação do diretor moçambicano-brasileiro Ruy Guerra tanto na construção do INICC/INAC³ e da televisão pública moçambicana, que legou trabalhos como Um Povo Nunca Morre (1978), Mueda, Memória e Massacre (1979) e Os Comprometidos: actas de um processo de descolonização (1984); ou mesmo os esforços de construção de uma rede volante de cinejornais, documentados em Plantar nas Estrelas⁴ (Geraldo Sarno, 1978) e Kuxa Kanema: O Nascimento do Cinema (Margarida Cardoso, 2003).

Nessa perspectiva, kuxa kanema: Moçambique, 50 anos de libertação está, simultaneamente, aquém e além de qualquer ideia de cinematografia nacional, pois não tem qualquer pretensão de esboçar alguma narrativa possível sobre a história de um cinema nacional moçambicano, mas, antes, parte dos fluxos e das alianças, feitas, desfeitas e refeitas em torno de uma descolonização ainda em curso⁵, assim como suas mazelas e cicatrizes. Nesse sentido, buscamos, muito especialmente (ainda que não exclusivamente), rastrear os traços da “amizade socialista” que uniu os destinos de realizadores entre o Brasil e Moçambique (como no díptico formado por O Parto [1975] e 25 [1975], ambos de José Celso Martinez Corrêa e Celso Luccas, ou, ainda, em A Colheita do Diabo, de Licínio Azevedo [1988]). 

Ressalto que, ao ativar uma memória cinematográfica possível de um processo de libertação para além das fronteiras nacionais, buscamos espelhar a estrutura intrínseca do processo em longa duração da libertação de Moçambique, atravessada pelos conflitos com a RENAMO⁶ (Resistência Nacional Moçambicana), que irá conduzir, a partir de 1976, uma investida contrarrevolucionária a partir da vizinha Rodésia (atual Zimbábue) – documentada em Estas São as Armas (1978), de Murilo Salles –, então governada por uma minoria branca. Quando o Zimbábue alcança sua emancipação, em 1980, a RENAMO passa a ser apoiada pelo regime segregacionista da África do Sul, e o que começara como uma guerra de desestabilização se transforma em uma das mais sangrentas guerras civis do continente africano – cujas memórias e feridas ainda abertas estão figuradas em As Noites Ainda Cheiram a Pólvora (2024), de Inadelso Cossa. 

Entre as “amizades socialistas” e a diáspora de realizadores e realizadoras em meio à guerra civil e ao fechamento do regime socialista moçambicano⁷, kuxa kanema: Moçambique, 50 anos de libertação busca compor não apenas um rascunho possível de uma experiência cinematográfica e revolucionária cujas dimensões ultrapassam as fronteiras nacionais, mas, ainda, compor uma programação que não teme a contradição e busca figurar as fraturas e disputas em torno da memória e da história das últimas décadas, da revolução e seu legado (como em Avós Guerrilheiras, de Ike Bertels [2013] ou Memória em Três Atos, de Inadelso Cossa [2016]). Nem todos os filmes citados neste texto irão compor kuxa kanema: Moçambique, 50 anos de libertação, dado que esta mostra é fruto do desafio de realizar e programar cinema em contextos periféricos, e carrega consigo suas vicissitudes; e várias de suas sessões contarão com cópias aquém da qualidade ideal de exibição, como a nos lembrar que os arquivos audiovisuais são realidades materiais que convocam e exigem nosso apoio e defesa⁸.

Notas

  1. Expressão cunhada por Ros Gray (in MONTEIRO, 2016, p. 36) “Já ouviu falar de Internacionalismo? As Amizades Socialistas do Cinema Moçambicano”: “Este texto explora a noção de ‘amizade socialista’ como um fenômeno transnacional que conecta diversos filmes e culturas cinematográficas, e traz à tona experiências marginalizadas do socialismo do século XX que expandem o conceito de pós-comunismo”.
  2.  Sobre a FRELIMO e a libertação de Moçambique, ver Isaacman (1978, p. 9-25).
  3. INAC foi o Instituto Nacional de Cinema criado por Samora Machel – primeiro presidente de Moçambique – ainda em 1975, cuja estrutura foi em parte absorvida pelo INICC (Instituto Nacional das Indústrias Culturais e Criativas). A criação do INAC transformava o cinema em objeto de uma política de Estado, responsável por colaborar na construção de um “homem novo” moçambicano e de uma sociedade livre tanto da herança colonial quanto do facciosismo étnico. Sobre a política cultural da FRELIMO, ver Macagno (2003, p. 75-89).
  4. Cópia restaurada por Débora Butruce para a Retrospectiva Geraldo Sarno, realizada pelo CCBB com a Anacoluto Produções, com coordenação geral de Marisa Merlo e curadoria de Ewerton Belico e Leonardo Amaral.
  5. São exemplares, nesse sentido, as colaborações entre Moçambique e as instituições cinematográficas de Cuba e da antiga Iugoslávia, que resultaram em trabalhos como Maputo, Meridiano Novo (Santiago Alvarez, 1976) e O Tempo dos Leopardos (Zdravko Velimirović, 1985)
  6. Ver: Conceição (2020, p. 437-447) e Sayaka (2013, p. 203-287).
  7. Penso, neste caso, na trajetória exemplar de Camilo de Sousa, do agitprop revolucionário de Ofensiva (1980) aos retornos do exílio, e o reencontro amargo com os antigos companheiros de armas em Sonhámos Um País (2019), correalizado com Isabel Noronha.
  8. kuxa kanema: Moçambique, 50 anos de libertação agradece especialmente e apoia o CTAv - Centro Técnico Audiovisual e todos seus funcionários e funcionárias.

Referências

CONCEIÇÃO, Juvenal de Carvalho. RENAMO: de agente do apartheid a organização política Moçambicana. Afro-Ásia, n. 62, p. 437-447, 2020.

GRAY, Ros. Já ouviu falar de Internacionalismo? As Amizades Socialistas do Cinema Moçambicano. In: MONTEIRO, Lúcia Ramos (Org. e curadoria). África(s): cinema e revolução. São Paulo: Buena Onda Produções Artísticas de culturais, 2016.

ISAACMAN, Allen. “The background to independence: A tale of two societies”. In: A luta continua - creating a new society in Mozambique. Binghamton: Fernand Braudel Center/SUNY, 1978.

MACAGNO, Lorenzo. Política e cultura no Moçambique pós-socialista. Novos Estudos - Cebrap, v. 67, p. 75-89, 2003.

SAYAKA, Funada-Clasen. World Politics from 1960 and 1975 and Mozambique’s liberation struggle. In: The origins of war in Mozambique. Somerset West: African Minds, 2013.