Numa trajetória ao mesmo tempo sinuosa e coerente, Robert Kramer (1939-1999) construiu uma das obras cinematográficas mais fortes de sua geração, alimentada desde o início por um permanente ímpeto de radicalidade política, da qual foi sempre indissociável. Seus primeiros tateios no cinema foram precedidos de um périplo de quase um ano, em 1963, por vários países da América Latina (aí incluído o Brasil de Jango), em busca de contato com movimentos de guerrilha, e por experiências com movimentos comunitários negros em Newark (Nova Jersey) e com grupos da nova esquerda em Nova York. Filho de uma família judia da pequena burguesia nova-iorquina, Kramer chegou a passar dois meses em Jerusalém em 1967, o que lhe permitiu confirmar seu antissionismo num momento em que sua própria mãe decidira viver em Israel.
Iniciada sob o signo da militância política, nas lutas antirracistas e anti-imperialistas, sua filmografia conjugou sempre uma aventura existencial e uma utopia coletiva. Ainda jovem, embebido de literatura, Kramer participou de coletivos de esquerda e, antes mesmo de fundar em 1967 o Newsreel, que produziu até 1971 cerca de 50 documentários políticos sobre assuntos variados, iniciou sua carreira com filmes políticos de caráter reflexivo (In the Country, 1966) ou marcadamente insurrecional (The Edge, 1967; Ice, 1969). Próximos na fatura e no estilo de uma vertente do melhor cinema europeu de então, estes primeiros longas foram bem recebidos em festivais europeus (como o de Pesaro e o de Cannes em sua Semana da crítica), acolhidos por colegas como Bernardo Bertolucci, Adriano Aprà, Jacques Rivette e discutidos pelas revistas mais afinadas com os cinemas novos na Itália e na França.
Se boa parte do que havia feito respondia no calor da hora à agressão estadunidense ao Vietnã, Kramer chegou então, com seus parceiros John Douglas e Norman Fruchter, a fazer um filme de solidariedade e engajamento no Vietnã do Norte, People’s War (1969). Atividades políticas o ocuparam nos anos seguintes (algumas das quais ligadas ao movimento dos Black Panthers e a grupos de desertores do exército americano), até que surgisse um dos seus filmes mais importantes, Milestones (1975), que esboçava a seu modo um balanço de utopias e impasses da contracultura e da nova esquerda estadunidenses. Os passos seguintes incluíram uma experiência de quase dois anos de Kramer em Portugal no rastro da Revolução dos Cravos, da qual resultou seu filme Scenes of Class Struggle in Portugal, finalizado em 1977, no mesmo ano da publicação de With Freedom In Their Eyes: A photo-essay of Angola, livro de fotos feitas por ele no país africano durante a guerra civil que sucedeu à sua independência, numa viagem em que Kramer participou também do primeiro filme independente angolano, dirigido por Ruy Duarte.
Retornando aos EUA, Kramer chegou a trabalhar como caminhoneiro enquanto dava aulas de cinema em San Francisco, antes de voltar à Europa e realizar, na França, o longa de ficção Guns (1980), exibido no Festival de Veneza junto com A Idade da Terra, de seu amigo Glauber Rocha. Dali por diante, a França se tornaria seu ponto de ancoragem na vida e no trabalho, produzindo a grande maioria de seus filmes, mesmo aqueles rodados em outros países, como por exemplo Notre Nazi (1984), Doc’s Kingdom (1987), Route One/USA (1989) e Point de Départ (1993), rodados respectivamente na RFA, em Portugal, nos EUA e no Vietnã. Este período de 1980 a 1999 foi talvez o de maior constância em seu trabalho de cineasta, que encadeou até sua morte duas dúzias de filmes muito variados no tamanho, no formato, no propósito – e nos resultados também.
Ao fim de um trajeto de 60 anos de vida e quase 40 de trabalho, cheios de viagens, deslocamentos, parcerias e generosidade, Kramer nos deixou uma obra de mais de 30 filmes, um livro de fotos e outro de escritos – Notes de la forteresse (1967-1999), organizado postumamente por Cyril Béghin em 2019 –, além de um conjunto numeroso de textos publicados ou inéditos (romances, peças teatrais, poemas, contos, roteiros). Indissociáveis, sua vida e sua produção intensas atestam o engajamento ao mesmo tempo político e estético de um artista que atuou em eventos históricos decisivos em vários continentes (Américas, Europa, África e Ásia) com um nível sempre alto de exigência moral, na melhor linhagem de um Joris Ivens ou de um Chris Marker.
Currículo
Mateus Araújo
é professor livre-docente de teoria e história do cinema na ECA-USP. Organizou ou coorganizou os livros Glauber Rocha / Nelson Rodrigues (2005), Jean Rouch 2009: Retrospectivas e Colóquios no Brasil (2010), Straub-Huillet (2012), Charles Chaplin (2012), Jacques Rivette (2013), Godard inteiro ou o mundo em pedaços (2015), O cinema interior de Philippe Garrel (2018), Glauber Rocha: crítica esparsa (2019) e Glauber Rocha: O Nascimento dos deuses (2019).