Entrevista Coletivo Beture de Cineastas Mẽbengôkre

“Meu querer de saber mais sobre a cultura dos nossos ancestrais foi o meu querer de estar mais dentro dessa ferramenta”.

(Kokokaroti Txukahamãe Metuktire (Coletivo Beture))

MINGUGU [SIMONE GIOVINE]: Aqui estão participando integrantes do coletivo de duas diferentes regiões. O coletivo [Beture] está nessa etapa. Nos últimos dois anos, vem passando por um processo de ampliação. O coletivo nasceu dentro da Terra Indígena Kayapó, no sul do Pará, e, depois, com o Matsi, a Kokokaroti e outros jovens também que participaram da construção da exposição organizada no MAC [Museu de Arte Contemporânea] em Niterói sobre a coleção Beture, eles decidiram se juntar. Só explicando isso, Kokokaroti e Matsi estão falando desde o Mato Grosso, do território Capoto Jarina. Kubekàkre está na Terra Indígena Kayapó, no Pará. 

JÚNIA TORRES [JÚNIA]: Muito felizes por ter vocês aqui! Poderiam nos contar um pouco sobre o surgimento do coletivo e sobre a importância que veem nele, isto é, para cada um de vocês que conseguiu chegar aqui? Por que vocês estão engajados nessa formação, nesse aprendizado com o audiovisual, junto com o Coletivo Beture? 

KUBEKÀKRE KAYAPÓ: Boa noite, eu me chamo Kubekàkre Kayapó, eu sou um dos comunicadores do Coletivo Beture. Então, sobre o surgimento do coletivo, foi durante a formação de audiovisual aqui na TI Kayapó, na aldeia Pykararakre, no ano de 2016. Durante a formação de audiovisual, dentro da Associação Floresta Protegida, a gente começou a pensar, a partir de conversas com outros jovens que estavam participando da oficina. A gente conversou: como a gente pode criar o coletivo? Como serão suas redes de divulgação? Foi então que começamos nosso trabalho. Mas começou assim, não foi bem rápido, não foi que a gente criou já logo, assim fazendo as coisas, não. A gente conversou sobre o coletivo, iniciamos outra formação, e, a partir de então, a gente já começou a criar o perfil de Instagram do coletivo. O Coletivo Beture vem fortalecendo a cultura, a tradição também, levando a nossa cultura, a nossa tradição para fora, e é para trazer as coisas pra nós, conhecimento de fora também, a gente traz para a nossa Terra Indígena Kayapó. Depois disso, acho que, após alguns anos, a gente fez uma outra formação de audiovisual. Conversamos com o pessoal de Mato Grosso e de Novo Progresso, aqui do Pará: “Como a gente vai se ajudando de longe, como a gente vai trabalhar junto, sobre divulgar nossa cultura, sobre a defesa dos territórios, essas coisas?”. Por isso que a gente criou esse coletivo, e a gente conversou também para ter um coletivo, um coletivo só, mas de vários jovens que vão estar, que fazem parte dessa rede, para divulgar o seu trabalho em cada território, que vai divulgar também as coisas dentro dos territórios dessa rede. É isso, gente, beleza! 

MATSIPAYA WAURÁ TXUCARRAMÃE – MATSI: É que nós aqui somos assim, é uma família, todo mundo junto numa casa e todo mundo fala ao mesmo tempo. Então, se vocês ouvirem latir o cachorro... 

Bom, eu me chamo Matsi, sou de dois povos indígenas, o Waurá e o Txukahamãe. Minha mãe é Waurá e meu pai é do Txukahamãe. Ambos pertencentes ao rio Xingu, que percorre aqui do estado do Mato Grosso até o Pará. Então, eu cresci em um contexto de transição, como eu costumo dizer, assim como a minha floresta, o meu bioma, que é de transição entre cerrado e floresta, entre a cidade e a aldeia. Me criei, fui para a cidade muito cedo, por conta do trabalho do meu pai. Então, nesse crescimento entre a cidade e a floresta, me dediquei aos estudos do não indígena, aprendi a falar o português, entendo mais ou menos ainda, porque o Brasil, a língua portuguesa, ela também tem uma diversidade muito grande de línguas. Então, estou aprendendo ainda.

E cresci nesse contexto de luta, como todos os indígenas já nascem no contexto de luta, na resistência. Participei, aos meus 18 anos, dos movimentos de jovens indígenas da região de base aqui do Mato Grosso, da minha base aqui da Terra Capoto Jarina. Iniciamos como coletivo Mẽbengôkre Nyre, isto é, um movimento de jovens indígenas. Esse é um resumo da minha história. Iniciei nesses coletivos de jovens, pertenço hoje a dois coletivos de jovens de base aqui da minha terra, o Engaja Xingu e o Mẽbengôkre Nyre. Após todo esse processo de formação, tenho ocupado a comunicação do Instituto Raoni, que é uma instituição que trabalha com os membros do CRE aqui dessa TI. E comecei a ouvir sobre o Coletivo Beture em 2018, foi quando eu comecei a ouvir.

O Coletivo Beture é um coletivo de cineastas. Nesse período de 2018, eu já estava meio que me envolvendo com a arte. Fazia arte de rua, cantava, ia às ruas tocar violão, então já estava meio que envolvido aí. E dentro dos nossos movimentos, já tive contato com audiovisual. Nesse período, comecei a me envolver e ouvi muito falar do Coletivo Beture. E tive a oportunidade de conhecer o Simone no Acampamento Terra Livre. Vi ele passando assim, naquele local cheio de parentes, de luta, muita coisa ao mesmo tempo, muita cultura. A gente conversou pouco, mas, em 2019, a gente começou a se aproximar desse coletivo. Só que aí, a gente foi ter a oportunidade de conhecer os outros membros do Coletivo Beture. Foi no evento Chamado do Raoni, quando eles vieram até aqui, para a aldeia Piaraçu, em 2023 para fazer a cobertura desse evento de lideranças. Então, tive essa oportunidade de conhecer os membros, alguns membros do Coletivo. E de lá para cá, a gente começou a conversar sobre essa importância de ocupar esse espaço da comunicação, do audiovisual, justamente para contar a história nós mesmos.

Esse foi um dos objetivos também, de eu adentrar nessa área do audiovisual, dentro da arte em si, que é poder me expressar, poder contar a história, poder contar a história do meu povo. E eu vi que o Coletivo Beture tinha esse objetivo, tem essa sede, faz acontecer, tem feito isso. Então, a gente se aproximou em 2022. Conheci, e aí é isso, a gente começou a conversar bastante entre nós. Participei de uma das etapas de formação do coletivo, na Terra Indígena Kayapó, com a juventude de lá, com os Kayapó de lá. E hoje eu me sinto acolhido, sabe, assim, por conta da minha história, de viver em transição entre cidade e floresta. Acredito que o coletivo tem me dado força justamente para poder dar essa continuidade de geração de conhecimento tradicional. 

E ela, será que Kokokaroti vai conseguir voltar? Está tão ruim a conexão dela. O que eu propus como solução é que eles enviem os áudios. Pode ser?

KOKOKAROTI [RESPONDE POR ÁUDIOS ENVIADOS NO WHATSAPP]

MINGUGU: Quais as maiores dificuldades que você encontrou no seu caminho para virar uma cineasta / comunicadora do povo Mẽbengôkre?

KOKOKAROTI TXUKAHAMÃE METUKTIRE: Uma das maiores dificuldades que eu passei foi a de aceitar os objetivos, os meus objetivos. Não apenas dentro dessa ferramenta de audiovisual, mas de outras formas de trabalho que eu faço, de expandir a cultura do meu povo, meu bem concreto. Porque, como mulher, eu escuto várias críticas que baixam a autoestima das mulheres, que acabam com o psicológico delas. E para chegar onde eu cheguei, precisava achar uma maneira de me fortalecer e fortalecer também as outras mulheres que passam por isso ou que já passaram por isso. 

Durante essa formação que eu participei, que foi na aldeia Wani Wani, vi que um parente estava querendo produzir filmes para nós, como se ele não visse a nossa capacidade de poder produzir e ter nossas ideias para poder fazer esse filme. Ele meio que não aceitou, meio que não conversou conosco sobre como construir um filme, porque ele era um cara que já tinha noção, tinha muito conhecimento sobre essa ferramenta.

Então, em vez de ele fazer com que a gente pudesse se interessar ainda mais e ter mais dúvidas sobre essa ferramenta e tirar dúvidas com ele, ele falou que queria produzir um filme, que era o momento de prática, de onde a gente ia testar o que a gente aprendeu com os mentores que estavam passando aula para nós. Ele queria produzir esse filme e colocar apenas o nosso nome, como se nós realizássemos toda a produção do filme. Achei um absurdo ter passado por essa situação que nos deixou constrangida. É como se insinuasse que não temos capacidade de poder segurar uma câmera, de poder ter ideias para produzir um filme. Isso foi uma das maiores dificuldades que eu acho que toda mulher kayapó vem passando ou que já passou. Isso foi uma das minhas maiores dificuldades, que ainda enfrento, porque tem vários parentes que não aceitam ainda a presença das mulheres em várias áreas dentro dessa ferramenta de audiovisual.

MINGUGU: O que te move e o que mais gosta de fazer nesse trabalho de mekarõ opodjoi (cineasta)?

KOKOKAROTI: Quando eu escutei sobre essa ferramenta de audiovisual e a importância que faz dentro de vários povos indígenas, que a usam como uma forma de luta para transmitir as informações dentro de seus territórios, que às vezes sofrem ameaças, dificuldades. Então, antes de estar nessa área do cinema, eu já vinha produzindo conteúdos sobre a diversidade do povo Mẽbengôkre-Kayapó por meio das redes sociais. E isso me trouxe a esse caminho de entender que nós podemos usar essas ferramentas para registrar as histórias dos nossos ancestrais para serem passadas dentro das escolas nas aldeias. Porque, se pararmos para pensar, aprendemos muita coisa sobre a cultura dos kuben [não indígenas], a linguagem dos kuben, sobre as histórias deles. E não paramos para pensar em fortalecer os conhecimentos que os nossos mais velhos têm para contar para as crianças e jovens. 

Então, esses conhecimentos que os nossos mais velhos têm, a gente não tem a oportunidade de poder aprender. Então, é a juventude e são as crianças que vão se ocupar para manter viva a nossa origem ainda. Falando nisso, dos nossos mais velhos, a gente realizou uma exposição em Niterói. Foi uma aventura muito rica que passamos durante a exposição que realizamos. Porque todos estavam com uma sede, uma curiosidade, de saber mais sobre a cultura dos antigos Mẽbengôkre. Acabei encontrando e juntando as histórias, cada pedacinho da história do meu avô, Kremoro Txucahamãe, que construiu a luta dele. Então, nem imaginava que havia várias fotografias e vídeos espalhados pelo mundo e que não chegavam até nós, Mẽbengôkre. Assim, teve momentos em que a gente teve que passar por algumas coisas, que precisava comprar aquela fotografia, entendeu? Foi uma forma de poder tentar resgatar cada imagem e as histórias que os nossos ancestrais deixaram para nós. Então, o meu querer de saber mais sobre a cultura dos nossos ancestrais é que me motiva mais. Principalmente, registrar para que os outros possam ver a riqueza que a cultura mẽbengôkre tem. Isso foi o meu querer de estar mais dentro dessa ferramenta.


MINGUGU: Kokokaroti, como você vê a participação das mulheres dentro do Coletivo Beture? O que vocês, mulheres, têm feito para ganhar o protagonismo que têm agora dentro do Coletivo?

KOKOKAROTI: A união das mulheres kayapó sempre existiu, desde os nossos ancestrais, e, com o mundo cotidiano, com a cultura dos brancos, evoluímos com a nossa identidade, que está dentro da cultura, para nos fortalecer, para promover a equidade e a igualdade dentro da política para a resistência e existência com a força das mulheres, para ocupar os espaços onde as lideranças estão. Vejo muitas mulheres hoje em dia ocupando os espaços e ecoando não apenas a voz delas, e sim ecoando as vozes de todas as mulheres. Por exemplo, a Tuíre é uma mulher kayapó que é um exemplo e uma inspiração para todas as mulheres kayapó, pois ela carrega a força e a construção dela, da história que ela construiu ao lado das lideranças. 

E dentro do Coletivo Beture, somos de territórios diferentes, como território Capoto Jarina, território Mekragnotire e Kayapó, território Kayapó do Pará. Somos de três territórios diferentes, mas somos do mesmo povo, e tem uma coisa bem importante que a gente sempre carrega conosco, que é essa troca de experiência. Por quê? Porque algumas mulheres, como eu, que cresci na cidade, tive essa convivência com os não indígenas, sobre o conhecimento dos não indígenas, e outras, que cresceram na aldeia, têm o conhecimento dentro da cultura. Então, nesse momento em que a gente se reúne para poder trabalhar, para poder produzir um filme, a gente tem sempre essa troca de experiência entre as mulheres que ficam na cidade e que ficam nas aldeias, porque é muito importante, pois nos fortalece ainda mais, para usar essa força, quer dizer, para usar essa ferramenta para transmitir a nossa força.

MINGUGU: Sobre o filme da Chegada dos Mẽbengôkre na Terra, com a narração do Cacique Raoni, como foi o processo de filmagem e realização? Qual a importância deste filme pra você?

KOKOKAROTI: Quando a gente foi criando a cena conforme a narração que o cacique Raoni contou sobre a história da descida dos Kayapó, que desceram do céu para a terra, foi importante para as pessoas que acompanharam a produção desse filme. As cenas que produzimos foram muito importantes, cada ideia, cada construção que a gente estava tendo ao escutar a história que ele estava contando. Foi um processo muito importante, porque somos jovens e tem vários jovens que ainda não sabem sobre essas histórias. Essas histórias de como nossos ancestrais eram... Então, é sempre muito importante a gente saber de onde a gente veio, como iniciou a nossa história. 

Foi uma honra. É sempre uma honra escutar os nossos mais velhos, porque eles que carregam sempre as histórias dos nossos ancestrais, eles que têm sempre esse conhecimento que eles carregam com eles, com eles mesmos. Então, são momentos em que a gente... como se a gente se tornasse criança para poder aprender, para a gente poder aprender com eles. Foi uma experiência muito emocionante e enriquecedora. A gente teve essa oportunidade de poder escutar sobre as histórias dos Kayapó.

 

MINGUGU: Cada um, cada uma, tem uma peculiaridade muito diferente dentro do coletivo. Alguns têm uma pegada mais coletiva, como isso, uma função de preservação de conhecimento tradicional, que é uma coisa muito dos Mẽbengôkre, não é? É realmente esse anseio de mostrar a beleza da sua cultura, a força. Mas depois tem essa coisa justamente da mistura, da contaminação. É tipo o Matsi, que faz videoclipes, escreve, ele cresceu na cidade; tem o Kubekàkre, que é filho de cacique tradicional, ele fica mais na aldeia, mas agora está trabalhando na Associação Floresta Protegida; tem a Kokokaroti, que é uma mulher; tem a Irepry, que não fala a língua, que é uma menina que eu quero levar absolutamente para o festival, que é uma menina incrível, super engajada, que sofre machismo também, por ser cineasta. Todos eles têm uma história muito peculiar, e isso é o que compõe essa diversidade coletiva. Cada um deles tem uma história muito própria, e depois eles se encontram nesse coletivo. Se vier um integrante novo, pode revolucionar, revolucionar também a rigidez de certos pensamentos dos outros meninos, mas por surpresa tu vê que eles recebem e acolhem de forma muito natural. 

Então, o coletivo até agora é um espaço de muito respeito recíproco, tem umas regras que não é que funcionam como regras, mas são uns acordos. E tem algumas pautas que são propostas a partir das oficinas de audiovisual, sobretudo. Por exemplo, o entendimento do que é machismo, do que é exclusão. Muitas vezes esses exercícios, esses conceitos, são trazidos dentro de dinâmicas e práticas de filmagem.

Uma coisa que, por exemplo, nós fazemos é dividir em grupos; cada um anota uma palavra e depois se divide em grupos e pesca essas palavras e junta as palavras, que podem ser ações, sentimentos, objetos, e cria uma narrativa com essas palavras. E com o Matsi, com a Kokokaroti, que eles têm uma formação de ativismo em algumas outras organizações, eles trouxeram: “Vamos problematizar um pouco mais, não vamos só ficar no lugar, na zona de conforto”. 

E aí, por exemplo, na nossa última oficina, fizemos um exercício disso, sobre machismo. Então, primeiro, identificar o que é machismo, na língua, nas reuniões. E depois eles construíram uma narrativa com isso. Matsi voltou. 

MATSI (NA REDE): Vem aqui para mim: essa é a minha filha! Oi, amor! Oi, amor! Eu te amo! Tá bom, então! Bora! Agora foi mal, que a gente estava resolvendo um negócio, e caiu a internet também. Onde eu parei?

ANA CARVALHO [ANA] e MINGUGU: Tu estava falando que cresceu em um contexto urbano, e se encontrou. Estava falando sobre a potência também desse encontro de pessoas, de cada um de vocês, que tem uma história totalmente diferente um do outro. Estava falando também de como é ter um encontro com você, que é um cara crescido na cidade, com seus pensamentos revolucionários, se encontrar com a galera lá com a pegada mais Mẽbengôkre tradicionalista, o Bepunu, o próprio Kubekàkre. Às vezes se pensava que era um encontro que não podia dar certo, mas, ao contrário, se vê muito respeito também, mesmo nas diversidades, e cada um realmente enriquecendo esse encontro. Estava contando sobre as últimas oficinas, que também foram tratadas como uma pauta de machismo, exclusão, sobre essas coisas. Então, como você caiu, eu estava tentando explicar um pouco sobre isso, sobre como foi, como está sendo rico e potente esse encontro entre vocês. 


MATSI: Entendi, muito obrigado, meu irmão. Só eu, é aqui. Então, é isso que eu estava falando. A partir de 2022, nesse primeiro encontro que eu tive com os membros do Beture, de lá para cá, a gente teve mais aproximação, fizemos um trabalho em conjunto. Duas gerações de Mẽbengôkre, os que nascemos dentro do contexto urbano, e uma outra geração dos que permaneceram mais dentro do território do que fora do território. Diferente de mim, da Koko, dos mais jovens; eu ainda me considero jovem. Então, nós somos essa geração que já nasceu dentro da cidade, já ouvindo bastante de perto o português. E a gente teve uns trabalhos em conjunto, fizemos através disso também, onde nós conversamos e decidimos abraçar. Porque, como o Kubekàkre falou, ele foi criado na Terra Kayapó, que é um dos territórios Mẽbengôkre. 

E a partir dessa aproximação, desse primeiro trabalho que a gente fez, que a gente chamou de Mekukradja Abikara (cultura impura), que foi realizado em Niterói, a gente decidiu que precisava se aproximar, se juntar mais, porque o contexto urbano, a colonização, ela vem para dividir, ela vem para exterminar a nossa existência. E, por anos e anos, a gente vem sofrendo esse grande desafio de desunião. Por isso que hoje nós enfrentamos bastante. O povo Kayapó, eu falo, em si, a gente enfrenta bastante a invasão de madeireira, a invasão de garimpeiro, de pescador. E agora, essa nova geração, lidando com essas empresas querendo instalar projetos de governo. Então, a gente vem sofrendo isso. E vendo isso, a gente decidiu se aproximar, falar que a gente é uma só terra, que a gente não precisa pegar esse termo de divisão de terras. Aqui é terra do Capoto Jarina, ali é terra Mekragnotire, lá é Kayapó, não, a gente é uma terra só. Pra contar justamente essa nossa história que a gente, a nossa geração, tem enfrentado hoje, mas também passando e trazendo as coisas do passado.

E aí a gente fez, eu participei das formações realizadas na TI Kayapó. É onde realmente a gente começou a envolver uma nova geração mais jovem também, mais jovem que eu, para poder não se iludir muito com o mundo do não indígena, assim como eu já, por momentos, passei na minha fase na cidade. Então, a gente tem feito junto com todos do coletivo, que é valorizar a cultura, ao mesmo tempo, falando coisas contemporâneas, porque no mundo a gente está se transformando.

A gente tem se relacionado dessa forma, buscando a essência, trazendo a essência dos nossos ancestrais, dos nossos antepassados, mas também, ao mesmo tempo, estruturando uma nova caminhada com o pensamento contemporâneo. Essa é a nossa relação dentro do Coletivo Beture hoje. É isso que a gente está trazendo e tentando trazer para dentro do nosso convívio. E aí a gente expressa isso também dentro das nossas artes hoje, quando a gente vai expressar filmes, fotos, a gente sempre está trazendo esses dois mundos, que não se separam mais, a gente não se separa mais, esses dois mundos estão sempre juntos. E é isso que a gente tem trazido, é isso que eu tenho enxergado e é isso que eu trago também nas coisas que eu tento fazer: o filme, as fotos. E é isso que eu tenho trazido para dentro do coletivo.

E eles têm me abraçado bastante, as minhas loucuras, o Mingugu também. E é isso, pessoal. Eu fico feliz de estar aqui hoje com vocês, mesmo com essa internet não tão boa, fiquei perto de vocês.


JÚNIA: É lindo aquele clipe, Matsi, a gente assistiu. O Mingugu mandou pra gente, o seu trabalho. Você quer falar um pouco disso?

MATSI: A gente tá conseguindo tentar compor, tentar rimar, cantar, se expressar na cultura, no mesmo modelo da cultura não indígena, que não atropelou. Eu abracei essa forma de me expressar também. O Refloreste-se [clipe], ele surgiu de uma maneira mais angustiante da minha vida. Ele surgiu na pandemia, na qual perdemos muitas lideranças indígenas, todo mundo perdeu alguém na pandemia. Então, o Refloreste-se, ele surgiu daí, desse caos que a gente enfrentou em 2021, 2022 também. Ele é, ao mesmo tempo, pra mim, um desespero, um pedido de socorro, mas também é uma orientação até mesmo para a minha versão hoje, porque isso foi criado no passado, no ontem. Então, hoje, quando eu escuto ele, ele me traz uma orientação para o meu próprio ser.

Ele também tem muito isso, ele fala para mim, eu estou falando para mim mesmo de dentro, para eu melhorar dentro, porque na pandemia adquiri doença mental, agravei, na verdade, a minha saúde mental. Então, ele traz isso, essa essência de uma mudança de dentro para fora, que remete ao que a gente vive aqui fora também, no externo, que é essa questão do colapso climático que todo mundo está sofrendo. E tudo isso foi criado em 2022, através desse momento que a gente enfrentou. E o Refloreste-se é isso, para mim, uma coisa é que eu preciso estar sempre me cuidando. E se eu me cuido, eu cuido do que está fora, eu cuido do que está ao meu redor. 


JÚNIA: Mas deixa eu só aproveitar que o Matsi está conseguindo ficar aqui um pouco mais com a gente. Você falou no colapso climático, Matsi. Como você acha que o coletivo pode dialogar com isso? Tem dialogado com essa questão? Se tem dialogado, qual é a importância de vocês se expressarem também por meio do audiovisual frente a esse colapso climático que a gente está vivendo? Você acha que tem uma ligação, que dá para falar da importância do cinema nesse contexto? 


MATSI: Eu acho que, na nossa cultura, quando a gente vê os filmes, a gente já consegue enxergar um pouco do quanto a gente é conectado ao meio ambiente, à natureza. Então, eles mostram já essa relação e que, com os anos, a gente tem mudado, estamos sofrendo junto com o meio ambiente, estamos sofrendo junto com a natureza. E o coletivo recente, com essa nova forma de se expressar, acolhendo uma geração nova, ela tem conversado um pouco sobre a importância de estar gravando essa transformação e esse colapso que a gente está sofrendo. 

Esse ano, aqui na minha terra, estamos ainda no combate contra os incêndios. E o tempo todo que se fala, e o que eu escuto aqui, tanto da geração nova quanto da geração dos anciões, é que o clima está diferente. Então, eu tenho gravado isso, estou em constante gravação junto com o meu povo para a gente contar o quanto a gente está sofrendo com o colapso climático. E como eu faço parte do Coletivo Beture, a gente tem relatado isso. Portanto, a gente está sendo um transmissor de relato. É triste.

Mas é o que a gente pode fazer, porque, igual aqui nesse combate contra os incêndios, a gente compartilhando na rede, tivemos um apoio até político por conta dos caciques, por conta das figuras que a gente tem aqui dentro da Terra Indígena. Então, ele tem dialogado, sim, o coletivo tem dialogado constantemente sobre o colapso climático. Ele tem dialogado o tempo todo porque a gente é da natureza, a gente vive na natureza, então a gente relata isso, desde o filme Menire Djapej, que foi feito, até o videoclipe, que é o Refloreste-se. Como vocês sabem, então, ele se relaciona junto, se a gente tá falando de clima também. Porque é isso, a gente é um povo que é da natureza, a gente precisa de água, a gente precisa de comida que vem da roça, e a gente precisa respirar o que vem da nossa própria floresta. 

Então, o coletivo, ele tem dialogado muito e está sendo muito importante a gente transitar em espaços que falam sobre isso. Recentemente, a gente teve, eu e o Kubekàkre, que apareceu aqui, tivemos um encontro em que construímos uma carta declaratória para as Nações Unidas, para que eles nos respeitassem e que nos ajudassem a criar políticas públicas que atendessem os povos que estão sendo afetados pela crise, pela mudança climática. A gente vai enfrentar o colapso, assim como eu estou hoje enfrentando aqui os incêndios intensos. Queimou quase já 80% do meu território. Até uns dias atrás, a gente estava respirando na fumaça, a gente dormia com gosto de fumaça e acordava com os olhos ardendo. Portanto, nós temos tido esse papel dentro da comunidade, para jogar tudo isso que a gente está enfrentando e vai enfrentar nos próximos anos, porque já está dito que a crise está aí, o colapso está aí. O que a gente precisa fazer agora é se adaptar, criar modos e cobrar os nossos representantes, as autoridades, para que eles possam nos atender. Então, pensar o que ele tem que fazer, como ele tem que fazer para sobreviver daqui a uns dias e ver tudo que a gente tem perdido. Então, eu acho que é isso, sabe? A gente tem dialogado sim, a gente tem relatado sim, toda essa relação que a gente tem visto, tem sentido.

ANA: É isso. Queria só aproveitar um pouquinho dessa pergunta da Júnia e dessa colocação toda que você fez. Se a gente pega até mesmo antes do Beture, se a gente pode falar de talvez uma tradição no cinema Kayapó, de forma geral... não sei se é uma tradição, mas, numa linha do tempo, quando a gente pega já todo o movimento Kayapó, ali no final da década de 80, na luta contra a Eletronorte e Altamira; a gente pega todo esse trabalho já das filmagens, dos primeiros cineastas Kayapó lá atrás, já com essa vocação muito forte das lutas pelo território, pelo meio ambiente, contra a construção dessa loucura que foi Belo Monte, que ainda é, com esses impactos ambientais catastróficos e imensos, gigantescos. 

E a gente percebe isso nessa continuidade dos filmes. E eu acho muito lindo quando você fala dessa transição e pensa nesse cinema de transição também, você falando de transição de biomas e falando da sua própria transição entre mundos, de viver na cidade, aldeia, e esse acolhimento de um coletivo grande como é o Coletivo Beture, com essas múltiplas vocações de um cinema de múltiplas linguagens, de tempos às vezes curtos, de tempos brutos assim no cinema também, de filmagens longas de ritual. E como tudo isso vai sendo acolhido e conformando esse coletivo. 

E era isso, eu queria que vocês falassem um pouquinho sobre isso, ao mesmo tempo que a gente tem vários filmes curtinhos, essa vocação de um cinema curto, que também responde às demandas de luta, de território, e cultura, que estão ali falando das pequenas técnicas materiais, dos costumes cotidianos da aldeia e, por outro lado, trazendo todas essas questões de luta de território, de preservação do meio ambiente e dos colapsos climáticos. Enfim, essa mistura toda que você traz dessas transições, desses trânsitos, e como isso se manifesta nos filmes também, que vocês trazem do coletivo, para perceber isso um pouco na seleção que foi feita para essa mostra-seminário. 


MATSI: É muito isso que você falou. Eu digo que eu, Matsi, posso falar sobre a forma como o Coletivo Beture tem se construído, como ele tem dialogado com o que veio antes, como ele tem se expressado. Desde um dos primeiros trabalhos nossos... Eu acho que ali mostrou já a nossa forma de ser hoje, enquanto Mẽbengôkre, enquanto indígena Kayapó, sabe? E mesmo eu fazendo um videoclipe, o quanto a luta está presente, o quanto esse entender da mudança, de tudo que a gente está falando, ele está presente. 

Ver o Bepunu, ver o restante dos meus colegas de luta, ver os filmes deles mostrando o batizado, mostrando a cultura, mostrando o Hina Hina [ritual que mistura dança tradicional e músicas externas, não indígenas], porque, aqui na minha região, ainda é um tabu, o Hina Hina, ele tem uma outra... o meu pessoal aqui tem uma outra visão. No entanto, o Hina Hina por cá é praticado só entre os jovenzinhos, quase é tipo clandestino até. Eles ficam num cantinho, tocando o Hina Hina. Não é uma coisa que se celebra igual acontece na região dos meus colegas lá do Kayapó, da T.I. Kayapó. 

E eu acho que é isso, sabe? Essa linguagem que a gente está tentando trazer, a gente não vai perder essa essência mesmo de contar a luta, de contar a cultura e de expressar essa nossa relação com o meio ambiente, com a natureza. A gente é isso. Eu até, pela minha vida, pela minha transição de tudo, eu quero contar outras coisas também. Quero contar essa experiência de viver no concreto, sabe? Eu também quero. E um dia eu vou relatar isso, deixar mais para frente. Mas também acho que não deixa de dialogar com o meu contexto ancestral, que é aqui na Terra, pisando na terra, vendo os pássaros. Quando pode. Que agora tá difícil! Com 80% de território queimado. Agora está tenso ver os animais perto... Agora temos que ir mais longe para poder chegar. Mas acho que é isso que tenho para falar em relação ao coletivo e a essa linguagem, o que define e como define hoje nós, povos Mẽbengôkre.


MINGUGU: É um desafio muito grande juntar essa galera, porque moram a distâncias muito grandes. São territórios muito distantes. Por essa razão, também foram se criando associações, muitas vezes com colaboradores não indígenas, kuben, como eles nos chamam, os não indígenas. De alguma forma, essa criação das associações veio um pouco também a dividir eles como um todo, como um povo. E dentro do próprio território, pipocam essas associações, quando aparecem recursos, quando aparecem coisas como dinheiro… Quando tem essa questão, sempre começam a aparecer essas divisões, e o coletivo demonstrou que não, que eles permanecem unidos e resistem a essas divisões. Mesmo com a galera que faz parte de uma aldeia, se se associa a outra associação, começam as tretas. No Beture, eles seguem juntos, com dificuldade, com essas grandes dificuldades, sobretudo, de reuni-los, porque implica uns custos gigantes de combustível. De repente, outra pessoa pode contar também sobre como o papel dos cineastas, como eles chamam, “fazedores de imagens”, mekarõ opodjwyj, são vistos dentro das aldeias, dentro da sociedade. Foi uma luta também para eles conquistarem esse respeito no começo, para que, por exemplo, quando aparece um projeto, seja destinado o recurso para o coletivo. 

No começo, os caciques não queriam nem saber, e aí eles foram defendendo nas assembleias, como costumam fazer os Mẽbengôkre, grandes assembleias, grandes reuniões, grandes falas. E aos poucos ganharam esse respeito e, hoje em dia, não tem ritual que não tenha um menino do coletivo fazendo o registro. Não tem mobilização política de luta sem um menino do coletivo fazendo o registro. Ao mesmo tempo que eles investem nessa responsabilidade deles para fazer esse registro, depois cobram deles também com firmeza. Porque se filma a festa, dois dias, três dias depois, eles querem o filme editado, o pendrive. 

Também, outra coisa interessante, do lado puramente dos filmes, é entender a diferença do formato, isto é, os filmes para os Mẽbengôkre e os filmes para os kuben [não indígenas]. Então, por exemplo, um caso emblemático, eu trabalhando com os Mẽbengôkre, uma vez, passei 40 dias filmando o processo de coleta de castanha numa aldeia, 40 dias, e fiz um filme de 7 minutos, junto com um dos meninos. E quando eu apresentei isso para o cacique, ele quase me deu uma bordunada na cabeça: “Ficou aqui todo esse tempo, tu fez só isso?”. Aparecia um minutinho do canto, da dança, tal, sabe? 

E de alguma forma é difícil também, porque, se eles querem ser vistos, se eles querem que também esse material deles seja acessível, de alguma forma um mínimo de compromisso com certo tipo de formatos e estética, tem que aprender, pelo menos ter a consciência de que existe e depois decidir, não é? Então, tem essa coisa de eles se apropriarem de uma linguagem que seja consumível para os kuben, porque um kuben nunca vai assistir um filme de três horas de festa. Apesar de que para muitos Mẽbengôkre, um filme de 20 minutos, 15 minutos, não é nem filme. 

Um filme de festa, onde falta a parte do encerramento, falta a abertura, falta a caçada, falta o momento da pintura, da preparação das mulheres, que faltam os ensaios... Todas essas partes fundamentais que compõem todos esses grandes rituais que eles fazem tem que ser também como os atos dos filmes. E aí, tu entende que quando eles fazem esses filmes, também na montagem, tu vê isso assim, a importância da abertura. Eles costumam montar uma abertura meio espetacular, gloriosa. Muitas vezes colocam umas músicas épicas, câmera lenta, exaltação, mulheres sorrindo com as carinhas. Mais os créditos, os títulos e, ao mesmo tempo, a apoteose. O clímax grande é o encerramento, a emoção. 

Então, até a presença do cineasta hoje é fundamental para incentivar a galera a fazer essas festas cada vez mais bonitas. Eles investem, fazem questão, porque eles compram, por exemplo, calça igual para todo mundo. Eles são super geométricos, simétricos, coreográficos, e tem muitas pessoas fazendo o mesmo movimento. Diferentemente de outros povos, que são mais caóticos nas danças, nos cantos, os Mẽbengôkre são essa coisa ordenada. Então, todas essas coisas se refletem no jeito de filmar. O drone, pra ver seus movimentos; tem a dança que eles chamam da cobra, que parece que é uma cobra que anda pelo pátio. Tu vê ela só através de um drone. De fato, essa cobra anda se movendo no pátio da aldeia. É mais isso, fiz só um parênteses. Vamos aproveitar o Matsi, o Matsipaya!!

MATSI: Estava legal te ouvir. Suas experiências também são boas. 


RENATA OTTO: Oi, gente, boa noite para vocês todos de novo. Eu sou Renata Otto, Tata. Matsi, boa noite, Simone, boa noite. Tem várias coisas que vocês tocaram que eu também tinha pensado um pouco sobre. Então, por exemplo, essa questão me surpreendeu muito positivamente, de o Beture ser um coletivo supralocal, de várias aldeias, porque também me interessava muito saber como vocês conseguem realizar concretamente os filmes. Tem essa coisa que você falou, Simone, de fazer a imagem do drone alta e outras imagens muito precisas, muito lindas das pinturas. E, uma coisa assim muito sofisticada, em termos de estética e também em termos de tecnologia e tal. Então, eu queria saber, primeiro, um pouco sobre como vocês conseguem produzir os filmes, se vocês têm esses equipamentos, recursos, se vocês se reúnem num lugar ou se cada um vai fazendo e, assim mesmo, vocês se transformam, se formam como um coletivo. 

E outra coisa que o Simone também falou, que tem mais uma intenção assim de “domesticar” os brancos, de formar os brancos para entender a cultura Mẽbengôkre, fazê-los se sensibilizar, não só com a cultura, mas também com os outros povos, outros seres do mundo, o meio ambiente e tal, meio que amansar os brancos, fazê-los entender um pouco, assim como, desde sempre, o Raoni tentou fazer. Então, eu queria que vocês começassem por aí e depois eu falo de mekarõ


MATSI: Eu vou falar um pouco. Realmente, nós temos um desafio muito grande, justamente por a gente ser de várias aldeias, temos muitos desafios enfrentados. Mas eu tive essa oportunidade de trabalhar com alguns outros, através de projetos. A gente sempre abraça muito essa linguagem de projetos. Então, a gente tem a oportunidade de se juntar, para a gente poder conversar, trocar nossas experiências, nossa visão de mundo daqui, dali, de lá... 

Então, eu tive essa oportunidade. Aqui, na minha região, a gente tem um material que são doações que a gente ganha das instituições que dão assistência aos povos indígenas, ao meu povo inclusive. Então, para nós aqui é isso, a gente recebe muitas doações em relação ao material. E as oportunidades que surgem de gravação são esses momentos que a gente ganha editais. 

Inclusive, uns meses atrás, a gente construiu uma série de filmes com o pessoal da TI Kayapó, que está lá onde foi fundado o Coletivo Beture. São duas regiões ainda, são algumas regiões assim, que eu tive a oportunidade de ir. Foi no Xingu e o outro que foi o Riozinho, ele se chama de Riozinho. Ali, a gente construiu bastante filmes legais, em breve a gente solta aí pra todo mundo assistir, engraçados alguns, outros bem profundos. Então, é mais ou menos isso que a gente consegue. Eu passo aí para o meu vovô completar.

MINGUGU: Acho que é isso. Como os Mẽbengôkre moram nesse território gigante, rodeado por pressões e impactos sobre os seus territórios, às vezes recebem recursos de indenização por impacto direto, ou indireto – de Belo Monte, da Vale do Rio Doce –, ou os fundos que incentivam a proteção do território, então aparecem projetos. E o que está sendo movimento do coletivo é tentar convencer a sociedade mẽbengôkre, o povo, a destinar sempre uma parte de algum recurso para seguir alimentando e fortalecendo esse coletivo. 

Aí o Matsi mencionou esse último, do Fundo Amazônia, que foram construídas 17 casas em 17 aldeias, casas de mídia alimentadas com energia fotovoltaica. Então, de fato, chegou a energia; a ideia era de um processo de formação da nova leva de ativistas e cineastas mẽbengôkre, e os antigos do coletivo foram os instrutores, e foi o Matsi, foi a Kokokaroti, e foram construídas 17 casas de mídia, 17 kits de audiovisual.

Então, é isso, a cada oportunidade, se tenta. Como são muitos, é difícil. Eu acho que o passo que eles têm que fazer depois é tentar realmente ter acesso à tecnologia, ter o melhor, o melhor possível, equipamento mais profissional, se profissionalizar mais de fato. Pra entrar também no mercado audiovisual; tem pessoas muito talentosas, muitas vezes é porque falta realmente essa oportunidade de ter um equipamento adequado ou isso, uma formação continuada. Mas eu acho que é isso, um pouco sobre os projetos.

MATSI: Eu queria citar um pouco da nossa fase de querer aprender o audiovisual, de trabalhar com o audiovisual, de trabalhar com as câmeras. Justamente isso, que com o nosso povo, a nossa vida, a gente vive de luta, na verdade. A gente sempre está lutando. O Mẽbengôkre, o meu povo, ele é muito... querendo os brancos ou não, mas é muito politizado. A gente esteve muito presente dentro da política do Brasil. Tanto que a gente conseguiu estar presente na Constituição. E aí, por a gente sempre ser político, as lideranças sempre serem políticas.

Ali foi o início, através do exemplo de um cacique, que foi o primeiro indígena a se tornar deputado [deputado federal Mário Juruna, eleito pelo estado do Rio de Janeiro, teve mandato de 1983 a 1987], se não me engano, porque começou a trabalhar com áudio. Nas reuniões, ele ia e gravava. Então, ali o Raoni pegou, abraçou isso, trouxe para o território o gravadorzinho. Tudo que acontecia, eles gravavam, o Kararaô [nome dado ao projeto da usina que depois veio a se tornar Belo Monte] foi um despertar assim do povo por uma ferramenta de luta, pra gente poder contar essa parte mais política. Foi aí. 

Quando a gente volta pros dias atuais, em que nós hoje já abraçamos, entendemos como funciona um pouco o audiovisual, a gente sofreu esse momento assim: “Mas pra que vocês querem essa ferramenta? O que vocês vão fazer com isso?”, sabe? E o povo Kayapó também era muito sistemático, não é? “Pra quê você vai fazer isso com a minha imagem? O que você vai fazer com a minha imagem?”. Então, a gente sofreu esse período e a gente não teve muito apoio. Só depois que a gente conseguiu falar: “A importância disso é que a gente vai contar a nossa história, sua história e também usar como ferramenta de luta para garantir políticas públicas”. 

Então, depois que a gente começou a mostrar isso é que os mais velhos começaram a entender, e hoje tem isso que o Mingugu falou, eles hoje chamam os comunicadores para gravar a festa, para ir para o movimento de rua, para poder brigar com as empresas, com o movimento social. E isso, acho que eu queria também relatar um pouquinho de quais foram os desafios que a gente enfrentou até chegar onde a gente está hoje, de estar com o coletivo formando em três territórios, abraçando outros territórios e fazendo o que a gente fez em relação aos filmes. No entanto, estamos conversando com vocês aqui. Então, até chegar nesse ponto, a gente teve muitos desses processos comigo e com todos do coletivo. Ainda, de vez em quando, a gente escuta um pouquinho, a gente é puxado pela orelha, a liderança puxa as nossas orelhas para entregar os materiais logo, que a gente precisa fazer isso, fazer aquilo, mas a gente está feliz mesmo assim.

TATA: Vou fazer a pergunta aqui da imagem, já que você falou isso, que os velhos ficavam preocupados com o que vocês fariam com as imagens capturadas. E também o Simone falou que o nome é fazedores de imagem, os cineastas são fazedores de imagem, na língua, mekarõ. Porque, para a gente, também tem vários sentidos nesse termo, imagem. Mas pode ser inclusive uma representação muito abstrata. Pode ser o espelho, o reflexo no espelho, pode ser o vídeo, pode ser um desenho, pode ser várias coisas. Mas talvez para você tenha outros sentidos que para nós estão ocultos. Eu queria que você falasse um pouco mais sobre o conceito mekarõ e como foi esse entendimento de chegar nele para falar sobre o vídeo. 

MATSI: É muito louco. Eu vou dizer enquanto Matsi, sabe? Essa é a minha visão, a visão que eu tenho, e do entendimento que eu tenho. Pra mim, pra nós, o mekarõ tem vários significados. Mekarõ, muitos falam de espíritos. Ele tem ligação a isso também. É essa imagem, espírito. É forte isso, mekarõmekarõ é muito, acho que é muito forte. Eu não sei nem como expressar, porque justamente para contar essas histórias. No entanto, a gente só para de ver as imagens quando a gente perde alguém. Ali, a imagem já não pode ser mais produzida. Segundo os nossos anciões, eles não permitem liberar as imagens captadas de membros da comunidade que faleceram. E isso fica muito difícil, e aí eles não gostam de lembrar muito dessa imagem. Mas, pra mim, é isso: mekarõ, essa palavra mekarõ, ele é um espírito. 

E aí, voltado pro meu trabalho, que eu tenho que trabalhar com isso, hoje, pra mim é transmitir, sabe? Então, mekarõ pra mim é a transmissão do que eu enxergo, do que eu sinto e do que eu posso vivenciar, sabe? Pra mim é isso, pra mim, Matsi. Mas eu queria muito depois que você ouvisse os meus outros companheiros, porque eles... Tenho certeza de que eles vão trazer uma outra percepção mais tradicional.


JÚNIA: Eu acho lindíssimo o sentido que o Matsi deu de transmissão, muito bonito isso. E penso que seria legal também a gente entender quais são os núcleos mais fortes do Beture, onde estão sediados. Eu fiquei impressionada com essa notícia de 17 pontos ativados com sede. Eu acho isso talvez inédito. Não imagino que território, que povo, tenha uma dimensão assim, de núcleos. Mas eu imagino que existam localidades que são polos, onde o coletivo se localiza mais e que se encontra, faz intercâmbio. Talvez o Simone pudesse falar um pouco desses pontos, quais são e onde estão no território, para a gente localizar também para quem não sabe, como nós mesmos, que estamos aprendendo sobre o coletivo e o território Mẽbengôkre. E parece que também são diversos, são diferentes esses lugares. 


MINGUGU: O coletivo, digamos, nasce na Terra Indígena Kayapó, como falou no começo. Foi inclusive uma decisão tomada dentro de uma oficina na qual participou o Vídeo nas Aldeias junto com a Associação Floresta Protegida, como uma incubadora desse projeto. A origem do coletivo talvez venha justamente da primeira geração de cineastas do Mẽbengôkre. Lembra que na primeira oficina fazia parte o Mokuká, que era um dos primeiros cineastas do povo indígena Mẽbengôkre. Nas outras oficinas, estava o Kiabieti, que é outro cineasta Mẽbengôkre. Então, os Mẽbengôkre possuem uma longa tradição no uso da ferramenta audiovisual.

Então, nasce um pouco o projeto coletivo na incubadora da Associação Floresta Protegida, que é no território da Terra Indígena Kayapó, no sul do Pará. Mas depois, ingressaram também representantes da Terra Indígena Capoto Jarina, de onde fala o Matsi, que fica no Mato Grosso, e do território lá da região de Novo Progresso, que é onde atua o Instituto Kabu. Então, o número mais forte, a presença mais forte do coletivo atualmente é seguramente na Terra Indígena Kayapó. É localizado ali pela atuação da Associação Floresta Protegida, também um pouco pela minha, eu atuo, mais naquela região e com aquela associação. 

Eu fiz outras formações também com o Instituto Raoni. Com o Kamikiá, teve vários processos formativos, e toda oportunidade é de juntar a galera. Agora, de fato, vai ter a Assembleia Geral do Coletivo, que acaba de ganhar um fundo para se regularizar, para virar, vamos ver o que vai virar, porque vai ter que ter muita discussão, porque começam os problemas também. Até agora, no coletivo, não tem muito a figura de um cacique, de um chefe. Era uma coisa bem horizontal, está sendo até agora uma coisa bem horizontal. Essas coisas da associação e da burocracia dos kuben, muitas vezes, incentivam isso nas dinâmicas de poder que começam a criar problemas. É um grande desafio como vai ser isso. Todo mundo está ajudando também com o seu próprio olhar, com esse cuidado, de que aprender dos velhos, justamente o que é para não trazer para o coletivo, porque ninguém quer isso, porque termina em tretas, em ciúmes, em mal-humores, em tristezas. 

Acho que essas formações no território também rendeu uma maior presença de mulheres. Por muito tempo, o coletivo tinha uma mulher, que se chamava Nhakmo. E graças à possibilidade de fazer essas formações localmente nas aldeias, e meio também com o discurso de que a gente tem que ter mais presença de mulheres, apareceram muitas mulheres incríveis, com força, que vestem com muito orgulho a camisa do coletivo, são presentes nas redes sociais. 

Elas mesmas reproduzem esteticamente essa imagem: enquanto as avós, as mães, vão à manifestação com o facão na mão, que é como marca registrada das mulheres mẽbengôkre, elas, do coletivo Beture, vão com a câmera. Até elas gostam de posar mesmo, com a câmera na mesma postura do facão. Agora o facão delas é esse.

Então, é um grande desafio, como você falou, o tamanho territorial. E acho que cresceu muito também. No Brasil, todos nós notamos como o aumento de comunicadores indígenas cresceu. Inclusive, cada vez mais não dependem de nós, kuben, para que eles possam fazer seus trabalhos. Hoje, eles até são formadores. Acho que tem uma virada histórica, na qual antes éramos nós chegando nas aldeias e propondo. E agora, hoje em dia, é isso, são eles que nos convidam se quiserem, porque hoje já tem muitas autonomias de eles fazerem o próprio movimento. Até acho que seria interessante, daqui a pouco, ver filme, festival indígena, cinema indígena, onde eles vão retratar, vão inverter finalmente esse ponto de vista da câmera, seria interessante ver, eu queria vê-los filmar os kuben que chegam lá. Não que eles não tenham feito comigo. 

  Para responder a tua pergunta, acho que é isso, o processo maior, territorialmente, é mais na terra indígena Kayapó, mas está nesse processo de expansão. Vai ter uma assembleia muito importante logo antes do forumdoc. Da assembleia, vamos para o forumdoc, direto. Então, vai vir num momento muito certo essa mostra. Esse momento é um momento muito importante pro coletivo. 


ANA: Isso foi uma questão lá no início, não é, Mingugu? O acolhimento das mulheres nas oficinas de formação. A forma como as oficinas eram pensadas, de fato, não cabiam as meninas. Isso sempre foi uma questão; acho que a Sueli [Maxacali] falou muito lindamente sobre isso, no Cine Kurumin: “Eu faço filme como quem faz uma pulseira de miçanga. Nos intervalos, no momento em que eu largo uma função que eu estou aqui e começo a fazer a miçanga. Eu faço filme desse jeito”. 

E a gente percebeu ali muito claramente, nessa primeira oficina Kayapó que a gente participou, que de fato a forma como a gente estava pensando as formações não contemplava as mulheres, porque eram oficinas de muita imersão, de tempos prolongados, e elas tinham todos os afazeres da casa, da roça, dos cuidados das crianças… a oficina não conseguia acolhê-las ali. Fora toda uma questão social e de funções mesmo dentro da comunidade. 

E ver as meninas hoje fazendo filmes de mulheres com as mulheres, com as questões que são muito próprias delas e também tematizando outras questões, é muito legal. Então, eu queria entender como é que isso foi se dando no tempo, como essa entrada foi acontecendo, como esse posicionamento delas foi se dando. A gente deu uma oficina antes, na aldeia A'ukré, com o Pati-i, e isso se colocou também. Eram três meninas e, muito rapidamente, elas tiveram que abandonar a oficina, fosse em função da casa ou pela própria questão de desconforto dos companheiros e outros homens na aldeia. 

E a gente agora vendo elas assim, assumindo direção e o protagonismo nas ações e nas histórias, é bonito demais. A minha questão era bem direcionada nesse sentido, de entender como isso foi se dando nesses diferentes territórios com essas meninas que hoje estão aí fazendo e pensando os filmes, propondo o lugar delas nesse grande coletivo. 

MINGUNGU: No Mato Grosso também, onde Matsi mora, tem essas grandes lideranças: o Raoni, tem o próprio pai do Matsi, Megaron, essas figuras. Talvez, na TI Kayapó, a figura forte fosse a Tuíre, que faleceu esse ano. Tem esse filme, ainda bem que tem esse filme, e na exposição [de Niterói], ela fez questão de ir apresentar o filme e falar na frente da foto, foi um momento que ninguém imaginava. Sabíamos que ela estava doente, mas se revelou uma grande homenagem a ela ainda em vida. Ela fez questão de ir para o Rio de Janeiro, já magra, debilitada. Ela falou, dançou, guiou a mulherada dentro do museu, foi muito bonito e forte. 

E acho que essa coisa... Estava falando que o Matsi me provoca muitas vezes, eu trabalhando como formador, e ele me faz notar como certas coisas, às vezes, têm que ser incentivadas. Essa questão, a pauta sobre machismo, sobre mulheres, também uma forma de aproveitar todo tipo de formação audiovisual, porque essa, de fato, é uma formação política. Muitas vezes, dependendo dos territórios e das formações que eles têm, tu sente um pouco mais de resistência. Às vezes, tem uma galera mais tradicional, quer mais filmar a festa, filmar o tradicional. E depois tu te encontras com o Matsi, com a Kokokaroti, com essa galera que vem de lá e tem uma formação política mais forte, conhecimento também, inclusive, talvez por ter se criado mais com o pé na cidade, por ter tido essas grandes lideranças por perto. E é incrível que essa provocação seja trazida de lá. 

Tem um filme, inclusive, que é produto de um exercício que o Matsi estava acompanhando, que é isso: um jovenzinho gritando pra uma menina-mulher, ele grita pra ela: “Você serve só pra cozinhar, você só pode cuidar dos teus filhos, você não sei o que...”, gritando no ouvido dela, e ela com a câmera na mão falando “não!”. Eu nunca tinha visto isso. Então, esse produto, esse encontro, possivelmente, ela sozinha não faria, mas o Matsi veio do outro território e a Kokokaroti, vieram, se falaram. A Kokokaroti fala muito bem português, então é muito importante essa coisa da língua, porque as mulheres não falam português geralmente. A Kokokaroti fez um papel de tradutora. E, muito paciente, ela tem um caráter super forte, mas super paciente também. E até que a galera faça as coisas, até que a galera aprenda, ela fica ali insistindo.

Então, é muito interessante essa questão das mulheres. Hoje em dia, o coletivo tá forte com as mulheres. De fato, é uma grande pena que a Kokokaroti não possa ir [ao forumdoc.bh.2024], grande, realmente. Ela estará com a gravidez adiantada na época da viagem. Porque ela é super importante e ela sofreu muito, e acho que ela precisa contar isso. E não só ela, todas elas sofrem. Seria ocasião importante para falar sobre se, de fato, ela ser parte desse coletivo, ela ser mekarõ opodjwyj, implica, de alguma forma, ir contra o sistema. Elas sofrem machismo, sofrem deslegitimação, assim como em toda sociedade. Então, como tradicionalmente não tinha cacique também, hoje em dia tem cacica mulher. Então, elas estão virando, elas estão quebrando as barreiras, estão dando volta à história também ali. E a gente vê isso em todos os níveis. 


MATSI: Só quero confirmar tudo o que vocês falaram, que, realmente, a nossa geração, inspirada em algumas figuras, tem ocupado esse espaço muito fortemente em todos os âmbitos, tanto no audiovisual quanto nas universidades. Elas estão vindo com muita força mesmo. Poucos de nós temos apoiado esse espaço delas, realmente. Mas a gente está indo, não é, Mingugu? O coletivo aí em breve vai ser liderado por elas. E a gente vai só ouvir elas e fazer. Não vai ter mais que ficar ouvindo os machos, querer silenciar elas, porque ainda temos isso realmente na nossa cultura, mas como foram colonizados, os militares e depois os jesuítas, então a nossa cultura do machismo aí é muito pesada, mas a Kokokaroti está chegando aí, trazendo a turma dela aí pra gente. 


TATA: Vai ser também marcante dar notícias sobre isso. Pela resposta que vocês deram, já está implícito que vocês consideram que o movimento é crescente, que a importância do envolvimento das mulheres no coletivo de cineastas e ativistas midiáticos é muito grande. Mas é que eu tinha me perguntado sobre isso: será que vocês consideram que está ok, que já está suficiente ou que é uma coisa que vocês precisam trabalhar mais para que ela realmente aconteça, a participação das mulheres no coletivo de cineastas? 


MATSI: Eu acho que sim, temos que trabalhar bastante. Eu vejo que eu, enquanto gênero masculino, temos realmente que trabalhar bastante nesse sentido de ouvir mais esse universo feminino. Eu sempre falo, questiono aqui na minha região, o contato. No contato aqui do meu povo, não foram os homens que decidiram fazer o contato, foram as mulheres. Só que na história que é relatada, foi pelos homens, mas foram as mulheres que decidiram esse contato. Porque se fosse depender dos homens, eles teriam matado os brancos pacificadores daquele período. Só que elas não, elas vieram. Uma anciã veio no ritual de campo e paralisou esse momento violento ali, sabe? Então, foi nesse momento que eles decidiram fazer de fato o contato. 

Então, daí é que eu vejo o quanto elas podem guiar, orientar, muitas vezes, a gente, nós homens. Então, a gente tem o coletivo, eu vejo que ele traz isso, porém ainda precisa dar esse pontapé aí, de baixar a bola desses outros parentes. Vejo comigo assim também, tem muito machismo presente. Então, eu sinto que o coletivo está trabalhando nisso e tem que trabalhar mais para que elas contribuam ainda mais para o nosso futuro. 


JÚNIA: Gente, eu queria aproveitar para falar um pouco também sobre os realizadores que vieram ainda antes. Os primeiros povos a ter contato com a realização de vídeo, historicamente, acho que talvez ainda na década de 80 ou antes, foram os Kayapó, antes do Beture. Vocês se relacionam com esses materiais do passado, até mesmo com esses arquivos? Ouvir um pouco também sobre esse outro cinema Mẽbengôkre que já existia.


MATSI: Ver o material produzido antes por cineastas Mẽbêngôkre que vieram antes, pra mim, Matsi, foi incrível. Foi uma coisa muito mágica, porque eu pude entender como eles conseguiram traçar uma estratégia de resistência naquele período em que estava surgindo essa tecnologia. E foi ali que me deu uma motivação maior de seguir, de não desistir, de não parar, de trabalhar com essa ferramenta que hoje a gente está dominando. 

Então, poder enxergar... Hoje, a gente tenta, porque é isso, a gente está sendo afetado pela cultura não indígena cada vez mais forte, cada vez mais forte. E poder ter tido essa oportunidade de ter visto esses materiais produzidos pelos meus tios daquela época só me traz essa motivação de dar continuidade mesmo. É um conhecimento que hoje faz parte da nossa cultura. É por isso que, daquele período para cá, se tornou isso, esse conhecimento, que vai ser passado de geração para geração. Ele tem esse poder, agora, de transmitir isso através dos primeiros. 

Então, para mim, foi uma motivação. Foi incrível poder ter tido essa oportunidade de enxergar como eles abraçaram, como eles conseguiram criar uma estratégia de resistência naquele período e de como isso se tornou um arquivo também de tradição ancestral, de cultura tradicional. Porque tem muitas coisas que hoje os nossos anciões pedem para ver, igual o meu avô, ele sempre fala: “Quero assistir isso!”, sabe? Aí eles fazem essas comparações também com as festas daquele período que foram gravadas, que estão disponíveis nos pendrives deles. E é isso que eu tenho a relatar, que foi incrível e que é uma motivação pra mim. Hoje tá chovendo aqui e o pessoal quer desligar o wi-fi, eles têm medo da chuva e do raio.


MINGUGU: Você pediu para o Matsi comentar o arquivo, mas você podia falar, descrever um pouco para as pessoas que vão ler a entrevista, de que arquivo você está falando, ele está comentando que foi importante para ele ver. Tem muito material que foi disponibilizado pelo Vídeo nas Aldeias, um monte de VHS que foi digitalizado. Dentro desses VHS, estão muitos materiais feitos pelo Terence Turner, Vincent Carelli, algumas primeiras experiências do Vídeo nas Aldeias, mas acho que na época ainda não era Vídeo nas Aldeias. Depois, tem um material de Mônica Frota, que é um material incrível. Ela disponibilizou um material que era mais da região de Mato Grosso, e quem participou dessa primeira formação foi o Kiabieti, que depois participou desse processo de curadoria, de construção desse material junto com o coletivo. Portanto, foi uma construção conjunta do próprio primeiro cineasta. Tudo dá pra ver nesse filme, Wamã Mekarõ

Então, é isso, Terence Turner, Vídeo nas Aldeias, Mônica Frota e alguns materiais de imprensa, de telejornais e coisas, por exemplo, do acervo de Belo Monte. Tem algumas coisas que foram utilizadas, e tudo isso foi misturado. Tem material que foi perdido também, que o Kiabieti tinha filmado, foi um incêndio, queimou todas as suas fitas. Tem um material de Mokuká, que foi um dos primeiros cineastas, e foi o Vincent Carelli que deu a câmera para ele, pelo que o Mokuká conta, o Vincent foi quem deu a câmera para ele.

Eles contam muita coisa, de fato eles não esquecem. Os processos formativos são muitas vezes caracterizados pela presença de algum kuben que facilita. Para essa nova geração, sobretudo na Terra Kayapó, eu cumpri muito essa função de cuidar. Eu ainda cuido muito, tenho muito cuidado de regar essa planta, como um ativismo, com carinho. Como tem vários que vocês conhecem, pessoas não indígenas que andam por esses territórios, na intenção de ser um ativista pela causa indígena, e principalmente guardar os registros. O que dá para entender também é a possibilidade do impacto sobre esses territórios. Eu tenho um filme sobre o lugar, contra o garimpo, que entrou nessa mostra do forumdoc na sessão Imagens da Luta, o filme mostra todas as lideranças se posicionando, e tem o Pati-i, que é um dos cineastas do coletivo, subindo no avião e fotografando o garimpo. Então, as imagens de garimpo são devastadoras! Até os próprios parentes dele pediram para ele tirá-las do ar, porque demonstram que, muitas vezes, pessoas kayapó facilitam o ingresso dos garimpeiros, assim como demonstram que o garimpeiro também entra sem consentimento.

JÚNIA: Eu queria que você falasse um pouco mais da sua história com eles, como formador e incentivador e participante desse coletivo.

MINGUGU: Eu estava trabalhando com os Krahô, junto com a Renné [Nader], que vocês conhecem, e um amigo antropólogo que trabalhava com os Mẽbengôkre, o Fernando [Niemeyer], me chamou para fazer um filme lá na Terra Indígena Las Casas. Terra Indígena Las Casas é um território que foi retomado no final dos anos 70. E era um filme sobre o PGTA do povo indígena que é a pauta da Terra Indígena Las Casas. E eu fui lá, e quem morava lá era Tuíre. Foi a primeira aldeia que eu fui, que foi a aldeia Kaprankrere, e morava a Tuíre. 

Então, o meu batismo dentro do mundo Mẽbengôkre foi justamente com essa mulher gritando com o dedo preto de jenipapo, dedada na cara, eu sem entender de fato o que é que ela estava me dizendo, mas, na época, eu também não entendia nada, e depois eu entendi que fazia parte também de uma certa retórica. Eu representava a associação, que representava o mundo dos kuben, e a associação ia fazer um projeto, então Tuíre estava me cobrando, mas eu de fato estava ali só para fazer esse filme. E de fato, o primeiro filme começa justamente com ela olhando para a câmera.

Isso também me surpreendeu muito, como eles usavam a câmera, olhando na lente, falando para o espectador de trás. De fato, esse filme que se chama Gwaj na nho pyka, A Nossa Terra, e ela fala olhando na lente, para o kuben, ela fala: “Branco, vocês falam que nós perdemos a nossa terra, vocês estão falando que nós já não temos força, então não, vocês estão mentindo, nós somos fortes ainda”. Assim começou o filme e, para mim, foi logo realmente um entendimento de como funciona também a visão dos Mẽbengôkre, essa postura de luta, de mostrar a força das suas lutas. 

E aí também me encontrei com jovens querendo aprender, inclusive tinha um jovenzinho já que tinha uma câmera prévia de outro projeto, que era uma câmera de vídeo gigante, mas não de boa qualidade, era de grande tamanho. Eles gostavam muito de a câmera ser grande; o cineasta tinha que ser armado com uma coisa grande. E o pessoal da associação me falou que tinha muitos jovens querendo aprender a filmar. Aí falaram: “Você teria tempo, disposição de trabalhar com a gente aqui nessa região?”. Aí, no meu pleno nomadismo, estava com um ano e meio que eu morava no Brasil, tinha me formado em Buenos Aires, estudando cinema, mas eu estava justamente procurando isso, procurando aprender, andar. 

E aí eu aceitei e comecei a trabalhar dentro da Associação Floresta Protegida. A Associação Floresta Protegida trabalha na Terra Indígena Kayapó, com várias aldeias, com mais de 40 aldeias. Eu comecei muito na produção de fotografias e vídeos para a associação. E em todos os processos, fui mapeando e conhecendo jovens interessados. E em cada aldeia, tinha um jovenzinho se aproximando, me solicitando: “Eu quero aprender!”. Até o dia de hoje, é constante.

Me chamam, me cobram, me têm um pouco como referência. Também, para os meninos que estão aí, eu creio que é mais fácil para não ter conflitos internos, delegar. “Mingugu, escolha”, por exemplo, muitas vezes, as pessoas que vão viajar... é mais fácil para eles, não que eles não tenham autoridade ou capacidade de escolher, mas muitas vezes não querem fazer. “Ah, fala com o Mingugu”. É para eles também se liberarem, porque entre parentes não se pode falar que não, não pode excluir o outro, etc. Então, fui mapeando durante todo esse tempo, e aí começou, e a partir da minha presença lá, quando apareciam os projetos, eu ajudava, junto com os meninos, na construção desses projetos focados especificamente na formação audiovisual.

Na época, tinha só o Bepunu, como um cineasta mais experiente, que já tinha tido outras formações, um cineasta criativo, porque depois tinha esses mais antigões, tipo o Mokuká, o Kiabieti, etc. Mas, na época que eu cheguei lá, era o Bepunu, e eu me lembro muito das pessoas que me apresentaram: “Ah, se você vai trabalhar com cinema aqui, com audiovisual, esse é o cara”. E foi de fato aí que eu criei um pouco a minha irmandade com ele. Já andamos muito pelo mundão. É um cara, inclusive, que tem uma energia maravilhosa. É um cara que gosta de experimentar todo tipo de comida, por exemplo. O único mẽbengôkre que eu conheci que come camarão, frutos do mar.

Lá na Bélgica, comia ostra, comia peixe cru, é algo impensável. E com ele também aprendi muito, realmente, ele foi como um professor pra mim, de muita coisa. Sobretudo, a minha forma de lidar, de respeito, que depois nunca termina de aprender, jamais. Acho que a única coisa que aprendemos é que não entendemos absolutamente nada de nada. E outra coisa que muito construiu e fortaleceu a minha relação com os Mẽbengôkre foi a música. E tem essa ideia muito do poder do canto. De fato, a oração eles chamam de mengrere, que é a mesma palavra para cantar. Igreja, Mengrere dja, lugar do canto.

Então, a primeira coisa que fizeram os missionários, mas de forma consciente, foi essa, de traduzir e inventar cantos sobre Jesus, sobre Deus, etc., na língua Mẽbengôkre. E os Mẽbengôkre adoram, porque eles gostam de incorporar tudo o que vem de fora, uma coisa bonita para as crianças, as coreografias, os presentinhos. Mas não é que me inspirei, mas eu, de forma natural, costumo andar com uma sanfona pelas aldeias. E aí, nas brincadeiras, me encontrei com o Mokuká; de fato, meu encontro com ele foi fácil, porque ele era um ancião que fazia forró na língua Kayapó, uns forrós bregas, que ele ia gravar com um tecladista na cidade de São Félix do Xingu, que se chama Zé Lambada. 

Ele me chama de Mingugu porque é esse apelido que ele me deu. Porque Mingugu é esse besouro voador. É um bichinho que gosta de carne podre, que voa perto dos rios. E tem um zumbido que é muito similar ao zumbido do drone. Então, quando eu comecei a voar com o drone nas aldeias, ele falou: “É isso, Mingugu? É isso aí, Mingugu”. E eu levava a caixa do drone nas aldeias, e a criançada já chegava: “Chegou Mingugu, chegou Mingugu”. E aí ficou esse nome, que depois ficou selado a partir dos forrós, de Mokuká gritar: “É, chegou o Mingugu!”. E até o dia de hoje ficou esse nome.

Nos últimos 10 anos, eu andei muito por esses territórios, território dos Mẽbengôkre. Depois, com o Matsi, eu vivi a experiência desse filme do Raoni, contando essa história da chegada dos Mẽbengôkre na Terra; eu e o Matsi estivemos quatro meses com o vovô Raoni, ele se recuperando da pandemia, do Covid que ele pegou e do luto pela morte da sua companheira. Então, é um Raoni de luto, um Raoni em recuperação, recebendo vários pajés que o curavam e, no intermédio, ele contando todas as suas memórias para os netos, para o livro que vai sair agora, no começo de 2025.

Quem fez a tradução e a coordenação foi o antropólogo Fernando Niemeyer. E eu e o Matsi ficamos quatro meses acordando todo dia com o Raoni. Inclusive, esse relato, essa história dele da chegada dos Mẽbengôkre na terra e essa tradução é um trecho relevante da autobiografia de Raoni e das suas memórias. Foi utilizada a tradução que vai sair do livro. Então, eu sou um zelador do Coletivo Beture. Hoje em dia, realmente tem uma incorporação de pessoas como o Matsi, quantas pessoas que realmente eles movem, movimentam. Eles estão cada vez mais autônomos. 

Eu saí da Associação Floresta Protegida, na minha função de contratado, e no meu lugar entrou o Kubekàkre. Então, saiu um kuben e entrou um Mẽbengôkre. Essa é a minha forma de medir também as coisas. Hoje em dia, eles são formadores. Eu sigo atuando como um aliado forte, mas o coletivo realmente está ganhando, por sorte, cada vez mais autonomia também nesse sentido. Eles organizam os processos formativos, eles formam. E então, tem muitas histórias. É um pedaço gigante da minha vida. Dez anos. Em novembro, eu vou fazer dez anos. Tá vendo? Esse forumdoc vem pra comemorar com a gente! Exatamente. Em novembro de 2014, eu comecei a trabalhar com os Mẽbengôkre. Aprendi um pouco a língua. É uma coisa que nunca termina. Tem um momento de desanimar também, porque não é fácil o trabalho.

Os Mẽbengôkre são um povo que não é difícil de lidar. Mas tem muita força, tem muita força e tem essa coisa também. Eu acho que eu fui sempre muito bem acolhido por ser a pessoa que cuidava do trabalho do mekarõ. E o mekarõ é essa coisa muito valiosa. Porque os Mẽbengôkre, por exemplo, na televisão, assistem jogo de futebol, mas o que eles querem consumir é filme mẽbengôkre, festa mẽbengôkre sobretudo. 

Então, quando eu comecei a fazer esse trabalho de coletar as imagens, através do Vídeo nas Aldeias, através de outras pessoas, eu ia numa aldeia, ia numa outra, enchia HDs com todos os filmes que eu achava. Então, cada vez que eu ia numa aldeia, eu chegava a fazer essa projeção, e os caciques se reencontravam com festas antigas. Já teve casos de ter que tirar o filme porque se encontravam com algum parente falecido, etc.

Mas eles adoram ver, se ver. Depois, começamos a fazer exercício de ficção, e eles começaram a adorar essa brincadeira da ficção. Eles riam muito de se ver pirando, de ver um cara que se chama de uma forma e no filme tem um outro nome. Depois, tem a produção de videoclipes, tem o torneio de futebol e a cobertura que parece de Copa do Mundo, hinos nacionais, tem uma menina adolescente toda empenada, pintada, com o troféu na mão, uma explosão de misturas maravilhosas. 

Enfim, é isso. Tudo isso é uma àbikàra, mekukradja àbikàra, que foi o nome dessa exposição que fizemos, que é essa cultura impura, misturada, contaminada. É àbikàra como quando uma coisa se mistura com outra. Por exemplo, café com leite. Café àbikàra com leite. São duas coisas que se misturam mesmo. Então, é o tradicional com a tecnologia, com a incorporação de coisas dos kuben, do jeito mesmo que era. A posse, a posse do cacique, hoje em dia tem uma posse. Agora, eles fazem a faixa... esse filme da posse do cacique Bepunu é isso, é um pouco de contaminação constante. Agora vamos fazer a posse do cacique do nosso jeito.

Então, é interessante mostrar isso porque o Bepunu é um cineasta que agora virou cacique. Ele meio que tem que abandonar um pouco a tarefa do cineasta para cuidar de fato de liderar a aldeia. É... Não sei, tem muita história, gente. É muita história, imagina, dez anos. 

A primeira vez, quando eu comecei a filmagem das memórias do Raoni na aldeia dele, Metyktire, eu e o Matsi estávamos dormindo na rede, e, às cinco da manhã, ouvimos uma batida fortíssima na porta, um pam pam pam, meio que ficamos sonhando e seguimos dormindo. E quando eu fui na cozinha, o Raoni estava ali sentado no chão com o cachimbo na boca, ele só me olhou e me falou: “Você dorme muito, dorme demais!”. Aí, assim, a partir daquele dia, rigorosamente, às cinco da manhã, nós acordávamos e ele já fazendo um colar de conchas, que é uma coisa que só alguns podem fazer. A concha é uma coisa super poderosa e vale para vários povos. Então, ninguém nem podia se aproximar. 

Ele, de luto, então não ia poder se pintar, etc. Ele começava, nós colocávamos no ouvido dele o último trecho que ele tinha contado no dia anterior, ele ficava ouvindo, trá, trá, trá, e aí recomeçava. Retomava daquele ponto. E então foi esse processo no meio da pandemia. Nós gravamos 80 horas de memória. 

E ele nos mandou buscar uns pajés e fui dirigindo um carro com o Bebtuk e a mãe do Matsi, que é uma pajé também daquela região. Foi um grande momento, foi um momento assim, fortíssimo. A relação com o Raoni, isso, foi bonito. E com ele também tem muito disso, o ritual de assistir imagens, mekarõ tum, que chama, que é filme antigo, mekarõ tum. Filme antigo. E eles gostam de ver porque também tem essa comparação. Os mais antigos, tu vê que realmente o Raoni fica comovido, e sobre a festa recente ele fica, ou ele ou outros anciãos ficam putos da vida de ouvir, por exemplo, que erram um canto, que a galera que hoje não sabe, ou que o movimento não é tão suficientemente forte. 

Antigamente, era muito forte. O Mẽbengôkre pisa forte, tem que ser muito forte. Por isso eu te falei também, se tem que convidar os coletivos, não dá para levar dois. É o conceito deles, é isso. A força, nós juntos, muitos, têm muitas pisadas juntas. Antigamente, tem essa coisa, tem o Me ãmpnara com o movimento dos braços, todos juntos, tem a pisada, tem essa coisa da pisada forte, tem um dos filmes que chama Pisada Forte. A pisada que faz tremer a terra. É um ritual muito importante. Ali tem os mais anciãos, tem vários incríveis que se foram, partiram. É a vida assim, mas tem ainda uns anciãos com muito conhecimento. Tem um pajé que usa um bastão para caminhar, ele pendura a caixinha de som no bastão dele e ele fica ouvindo assim. E é isso, é a maior diversão para os meus amigos, porque é só coisa das imagens, de se ver.

Então, tá ligado como fala Matsi, sobre a questão de mostrar, realmente, uma outra experiência de se ver, de ver os parentes mortos, etc. Mas, geralmente, quando veem a festa antiga, como era forte o movimento, tentam replicar, é um incentivo também; inclusive, tem festas que estão se perdendo. Então, dentro desses processos, foi decidido filmar umas festas, como a festa da Anta, que, na Terra de Kayapó, tem só um velho que sabia esses cantos. Então, se ele não fosse participar, queriam mandar um avião buscar o velho, porque não se lembravam do momento do canto. Mas essas festas estão sendo filmadas por meio dos coletivos, que vêm criando um acervo audiovisual, de memória audiovisual.

Um processo também começado com essa exposição: se encontrar com o que os Mẽbengôkre pedem, pois não fui eu que pedi, foram os Mẽbengôkre pedindo material deles dentro dos meios de imprensa, museus, etc. E muitas vezes encontraram pessoas que… negaram ou cobraram dinheiro para liberar isso. Então, em que momento... quando vamos reverter essa dinâmica? Quando foi filmado esse material dos anciões, eles pediram algum termo de autorização para que a galera assinasse ou liberasse as suas imagens?

Essa é a imagem deles, Gwaj ba nhõ mekarõ, é a nossa imagem. E outra coisa que eu esqueci de falar quando vocês falaram de acervo: há um acervo maravilhoso e importantíssimo que foi muito utilizado também na exposição, que é do MUPA, do Museu Paranaense de Curitiba, e há um acervo filmado pelo Vladimir Kozak, que é um antropólogo que viajou até os Kayapó e filmou na época do primeiro contato. Então, são vídeos sem áudio e uma série de fotos incríveis. E eles se encontraram também com esse material, e, durante todo esse tempo, os meninos levam essas fotos e existem os velhos que reconhecem os antigos parentes. Tem muito material nos Mẽbengôkre.


TATA: Tem muito material. Mas vocês conseguem armazenar? 

MINGUGU: Essa exposição, com o recurso para fazer essa exposição, foi uma oportunidade valiosíssima de organizar e começar a guardar esse material. Mas também houve a frustração de ver a dificuldade de acessar esse material. Então, tem uma jurisdição, tem direito autoral das fotografias, mas tem algo que precisa ser mudado aí. Isso não tem dúvida. Então, se eles querem ter acesso à própria memória. A própria memória muitas vezes é construída através do audiovisual. A gente fica com essa coisa da repatriação de obras que estão fora do país, em outros museus, mas tem todo um acervo das imagens que estão aqui e que essa reparação, essa volta, não se dá. Nem a volta, mas nem mesmo o armazenamento. Tinha que ser livre, de acesso livre para eles, para os povos indígenas. Tinha que ser uma guarda e devolução, realmente. É muito difícil fazer isso de armazenar, organizar e manter, que é o marco do Vídeo nas Aldeias. É mais uma falta que precisa ser sanada, uma dinâmica que precisa ser quebrada. Acho que realmente foi muito militante isso, o trabalho dessa exposição [No MAC Niterói].

Mesmo com a carta assinada pelo Raoni, por demais lideranças, pedindo acesso a material, a Globo, a própria Globo, que tem fotos dos Mẽbengôkre, olha que beleza, cobrou dois mil reais. Agora, até parece que a Globo é indigenista, cuida… aí os Mẽbengôkre pediram e tiveram que pagar porque realmente eram fotos essenciais na memória: a guerra da balsa, a puxada de orelha de Raoni naquele Andreazza que era o ministro. “Andreazza, você tem que ouvir os indígenas, você tem que ouvir os índios”. Mas é assim, a galera cobrou. Inacreditável, gente. A Globo fez questão de cobrar dois mil reais dos Kayapó.


JÚNIA: Eu ainda tenho uma pergunta. Por que são poucos filmes longos? Você quase levou uma bordunada porque gravou dias de ritual e fez um filme de 7 minutos. E eu também fico, às vezes, curiosa. Eu sei da relação com a luta, da construção da luta, mas minha pergunta é: vocês não têm vontade de fazer experiências de montar também filmes mais longos? Queria saber um pouco sobre essa espécie de recusa, se existe uma espécie de recusa desse uso das imagens mais parecido com o que a gente chama de cinema, de filme. Enfim, nesse modelo narrativo que é imposto para os filmes circularem, o que a gente percebe? Que os Mẽbengôkre-Kayapó são um dos povos que primeiro tiveram acesso à apropriação do aparato fílmico, lá no Terence Turner, na ida dele com o Vincent, há décadas, e o cinema mẽbengôkre é pouco conhecido porque ele não se dá como filme.


MINGUGU: Acho que eu vejo como, às vezes, uma prioridade de interesse. Para eles, realmente, o que mais eles gostam de fazer, de filmar, são os metoro, são as festas, os rituais, inclusive as relações de parentesco, as relações de compadre com mãe, de manutenção do movimento dos Mẽbengôkre dentro do próprio território. Tudo gira ao redor das festas. Então, é normal que no momento em que eles têm na mão uma ferramenta de construção narrativa, a primeira coisa que eles querem narrar é essa, o que é prioritário para eles. E estas eles filmam para eles próprios!

Fotos: Simone Giovine e Raoni Comunicação