Notas sobre a produção cinematográfica em Moçambique entre 2010-2019

Uma série de fatores ocorridos em Moçambique no início da segunda década do século XXI contribuiu para o surgimento de novos talentos e para o aumento do número de produções moçambicanas realizadas anualmente a partir de 2010. Novas oportunidades de formação em audiovisual certamente tiveram um papel importante nesse contexto, no qual destacam-se as oficinas formativas promovidas periodicamente pela Amocine¹ e o surgimento do primeiro curso de Licenciatura em Cinema do ISarC (Instituto Superior de Artes e Cultura) em 2015. Há que se destacar também a importância que os festivais Dockanema² e Kugoma³ tiveram na formação de público e na promoção do cinema nacional e internacional em Moçambique, contribuindo para o cenário cultural da cidade de Maputo e possibilitando o acesso a obras audiovisuais do mundo todo. Duas outras iniciativas também impactam a produção moçambicana nessa década: o Concurso DOCTV CPLP, voltado para o fomento à produção e teledifusão de documentários da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), e o Nomadlab, projeto de formação e desenvolvimento na área do cinema e do audiovisual, realizado em Moçambique em 2009 pela produtora portuguesa Terratreme Filmes, com apoio do Dockanema.

Em 2017, a Assembleia da República de Moçambique aprovou a Lei do Áudio Visual e do Cinema (Lei nº 1/2017, de 6 de janeiro de 2017). Iniciativa inédita no país, a Lei foi criada tendo em vista a “necessidade de incentivar, promover, proteger e disciplinar o desenvolvimento das atividades audiovisuais e cinematográficas no País”. Entre os principais pontos, estão: a definição do Instituto Nacional de Audiovisual e Cinema (INAC) como autoridade reguladora, a instituição da responsabilidade do Estado como incentivador da produção e difusão de obras nacionais, a instituição de prêmios e estímulos estatais aos profissionais de destaque, a garantia pelo Estado de mecanismos de distribuição e promoção de obras moçambicanas no mercado nacional e internacional, a obrigatoriedade de ocupação de pelo menos ¼ do tempo de antena das televisões nacionais por obras nacionais, a obrigatoriedade do registro de empresas e profissionais que exploram a atividade audiovisual e cinematográfica, a promoção da exibição não comercial e o consequente estabelecimento de uma rede alternativa para a divulgação de obras com interesse nacional, a promoção de programas de formação e de ensino do audiovisual e cinema nas escolas. Destaca-se também a importância estratégica que a atividade audiovisual e cinematográfica representa para o Estado moçambicano, tanto em termos de representação e afirmação da identidade nacional (conforme alínea a) do Artigo 4º)⁴ quanto em termos de desenvolvimento empresarial do setor (conforme Artigo 10º)⁵. A legislação em vigor reforça o entendimento do cinema ainda hoje como um elemento central na valorização da identidade nacional. Dessa forma, o comprometimento com os ideais da cultura e da identidade moçambicana são um fator decisivo para que as obras tenham acesso aos apoios e financiamentos previstos pela Lei do Audiovisual e do Cinema.

Em 2004, foi promulgada a atual Constituição de Moçambique, a primeira após o Acordo Geral de Paz assinado entre FRELIMO e RENAMO em 1992, que pôs fim a 16 anos de conflito armado que assolou o país. Este é o marco político mais importante após a Independência, uma vez que traz uma reconfiguração do arcabouço institucional que se colocava como desafio político para os novos governos (WANE, 2018, p. 176). Nesse contexto, a política cultural da nova Constituição mostra uma tendência de englobar a perspectiva multicultural da nação moçambicana. Como aponta Marílio Wane (2018, p. 177),

Com os ventos da mudança, ideia de nação em Moçambique não se refere mais a uma comunidade homogénea em termos ideológicos, mas passa a apelar para a ‘homogeneidade política’ dos cidadãos, sem que por isso tenham que rejeitar determinados aspectos de suas identidades particulares.

A política do novo governo moçambicano busca, portanto, o “pluralismo de expressão”, por meio do reconhecimento da diversidade e da tentativa de enquadrar as diferentes manifestações culturais em um novo arcabouço institucional. No entanto, há que se levar em conta o enorme desafio que existe em reestruturar uma política cultural-ideológica que esteve durante tanto tempo no cerne da ideia de construção da unidade nacional moçambicana. “Ocultar ou aniquilar a diversidade implica sempre o retorno da exclusão” (MENESES, 2020, p. 46), e é importante destacar a responsabilidade do Estado moçambicano em trabalhar em prol de um projeto de libertação que recupere memórias e histórias silenciadas.

As mudanças operadas no campo da cultura a partir da reforma constitucional refletem diretamente na produção cinematográfica moçambicana. O texto da Lei do Audiovisual e do Cinema de 2017 traz menções importantes quanto ao respeito e à valorização da diversidade cultural em Moçambique. Ainda assim, há uma tendência clara em concentrar os apoios institucionais às obras que trazem narrativas e perspectivas alinhadas com o projeto nacional da FRELIMO, que ainda se vale fortemente do imaginário coletivo construído desde o período pós-independência. Apesar disso, a produção audiovisual e cinematográfica recente em Moçambique é notavelmente diversa. Há uma multiplicidade de temáticas, formatos, assuntos, abordagens, métodos de produção, gêneros cinematográficos e outros tantos fatores que podem ser visualizados na cinematografia moçambicana da última década. Essa diversidade que é vista nas obras audiovisuais é reflexo da diversidade da sociedade moçambicana. O fortalecimento de múltiplas perspectivas culturais em Moçambique possibilita, portanto, a criação de novas imagens do presente que podem contribuir para novos entendimentos e construções sobre o passado, articulando-se, assim, para novos futuros.

Currículo

Julia Alves

é Mestra em Patrimônio Cultural, Paisagens e Cidadania pela Universidade Federal de Viçosa/MG e pela Universidade Eduardo Mondlane (Moçambique) e graduada em Audiovisual pela ECA-USP. Atua como produtora de cinema em filmes autorais e coproduções internacionais.

Notas

  1. A Amocine - Associação Moçambicana de Cineastas foi criada em 2003, reunindo diretores e produtores moçambicanos da 1ª e da 2ª geração de técnicos formados pelo INC. Atua como articuladora frente às instituições públicas e privadas e promove atividades de formação audiovisual e de promoção do cinema moçambicano.
  2. O Dockanema - Festival do Filme Documentário foi idealizado por Pedro Pimenta e teve sua primeira edição em 2005, encerrando-se na sua 12ª edição em 2017.
  3. O Fórum Kugoma foi idealizado por Diana Manhiça e teve sua primeira edição em 2009. Além da tradicional programação de curtas-metragens, o Fórum Kugoma promove debates, mesas-redondas, workshops e outros espaços de encontro e formação.
  4. “A criação, produção, distribuição e difusão de obras audiovisuais e cinematográficas enquanto instrumentos de afirmação da identidade nacional, de expressão de diversidade cultural e promoção do nome de Moçambique no mundo;”.
  5. “O Estado impulsiona o fomento e o desenvolvimento empresarial, profissional, técnico e do associativismo nacional do sector do audiovisual e cinema”.

Referências

WANE, Marílio. Timbila Tathu: política cultural e construção da identidade em Moçambique. Maputo: Khuzula, 2018.

MENESES, Maria Paula. Xiconhoca, o inimigo: Narrativas de violência sobre a construção da nação em Moçambique. Disponível em: http://rccs.revues.org/5869. Acesso em: 20 ago. 2020