O encantar das folhas

O encantar das folhas (César Guimarães e Pedro Aspahan, Saberes Tradicionais UFMG, 2024, 76')

O filme O encantar das folhas se inicia com a apresentação das plantas que se tornarão personagens centrais do documentário, nomeadas pelas mestras e mestres afro-diaspóricos e indígenas que as encontram em seu caminho: o mulateiro, tão presente no bioma do povo Tikuna, de Darupü’üna; a pitangueira de Oxóssi, apontada por Iyá Ewé Angela Gomes, e a folha de Exu identificada pelo Babalorixá Sidney d’Oxóssi (ambos do candomblé Ketu); a paineira (Azanadô, vodun do Jeje), diante da qual se vê Humbono Misiò Luiz Fernando, surpreso e emocionado, no parque Lagoa do Nado. Só depois nos deparamos com a entrada da mata da Baleia, uma das últimas preservadas da cidade, cobiçada pelas mineradoras e defendida pela comunidade do Quilombo Manzo Ngunzo Kaiango, que hoje luta pela retomada do seu território original. Ao contrário de nós, modernos, desamparados em um mundo cognoscível e conquistado pela razão – mundo este que não nos vê e nem nos fala diretamente (STENGERS, 2023, p. 269) –, o filme nos apresenta espaços em que a vida entrelaça humanos, não-humanos, natureza, entidades e espíritos. 

São muitos os gestos de encantamento que o filme nos apresenta, ao acompanhar os encontros dos mestres e mestras com a natureza e com suas entidades, como aponta Pai Ricardo de Moura, em depoimento publicado no livro Jardins do Sagrado: Cultivando Insabas que Curam: 

Como é que se encanta uma coisa? Como é que se empodera uma coisa? Encantar é empoderar, dar força. [...] Tudo é uma transmissão de poder. A transmissão de saber: ninguém sabe sozinho, assim como a folha não tem força sozinha. Tudo é transmitido: de uma folha para a outra, de um bicho para a folha, da folha para o bicho. A circularidade, as transmissões, as confluências, vão para além do que conseguimos falar. (MOURA, 2023, p. 269)

O encantar das folhas é um gesto de reciprocidade: cantar e encantar a folha, cantar e ser por ela encantado. É preciso entrar nessa relação de confluência entre o corpo humano e as folhas, por meio do canto, para que a experiência de interação com elas produza, de fato, um encantamento que transborde a própria materialidade das plantas e do corpo, atingindo uma sintonia de ordem espiritual, uma energia de cura. Encantar é empoderar, dar força e produzir a percepção de que o corpo não está apartado da natureza, mas faz parte de seus ciclos naturais, vinculado a um processo contínuo de transmissão circular dos saberes ancestrais, pois as plantas são também nossos ancestrais.

De volta ao filme, diante da boca da mata, vemos alguns dos instrumentos do Candomblé Angola. No fora de campo, o Ogan anuncia o início do ritual com o som percutido de um agogô. Mametu Muiandê, matriarca do Quilombo Manzo, entra em quadro, de pés descalços e vestimenta de terreiro. Ela chama a Makota Kidoiale. Aos poucos, outros integrantes da casa se aproximam. O filme oferece o enquadramento e os personagens constroem a cena do ritual. Após fazerem uma primeira saudação e um paó de reverência às entidades do local, Mametu Muiandê anuncia que jogará um makassu, que é um conjunto de frutas africanas divinatórias, para pedir permissão às entidades para a entrada na mata. Eles prosseguem com o ritual, saudando as diferentes entidades e fazendo oferendas: água, vela acesa, acaçá, aguidi, cachaça, fumo. “Vamos dar um agrado a Katendê pra gente entrar na mata, o deus das folhas”, diz Mametu. Não por acaso, Katendê, conhecido também como Ossain no Candomblé Ketu e na Umbanda, acabou se tornando um dos personagens centrais do filme, entidade sempre reverenciada – seja nas saudações ou nos cantos – ao longo dos processos ritualísticos de entrada nas matas para catar as folhas sagradas. 

A história de Katendê reaparece mais adiante, quando Tat’etu Jalabo narra a criação do universo sob o ponto de vista do Candomblé Angola, dizendo que poderia começar essa história desde o Big Bang, ou até mesmo um pouco antes. Ele conta que houve a explosão universal e a Terra surgiu como uma bola de fogo, que precisava esfriar para que a natureza pudesse florescer e para que o ser humano viesse a existir. Então Nzambi criou o primeiro Nkisi: a água, a chuva, chamado de Angorô, com a função de esfriar a terra. Ele conta: “Quando a terra estava fresquinha, Nzambi enviou seu segundo Nkisi, Katendê, que é a árvore. Onde ele passava, nascia uma árvore, porque a terra já estava fresquinha”. E tudo aquilo era remédio. Angorô ficou nervoso com a presença de outro Nkisi na Terra e o ameaçou de morte. “Quanto mais ele corria atrás de Katendê, mais água saía do Angorô, mais esfriava a terra, quanto mais esfriava a terra, mais nascia árvore, quanto mais nascia árvore, mais Katendê fazia também o papel dele”. O filme vai transitar de modo fluido e contínuo entre o elemento da água, de Angorô, e o elemento das plantas de Katendê. O próprio Tat'etu Jalabo é apresentado por meio de sua imagem refletida sobre as águas de uma lagoa no Parque das Águas, na região do Barreiro, como se ele andasse sobre elas. Além de Tat'etu Jalabo, Toá Canynã Pankararu, Iyá Ewé Angela Gomes, Pai Ricardo e Yalorixá Ione Ty Oyá fazem seus cantos e rituais ao lado das águas. Em outro momento, ao escutar o canto dedicado a Katendê, um membro do Quilombo Manzo incorpora o Nkisi por um breve momento. A entidade deixa o fora de campo para habitar o corpo em quadro por um instante. Ao chegarem no interior da mata, em um antigo terreiro de umbanda que funciona há mais de cinquenta anos no meio da floresta, o coletivo do Manzo canta, toca e dança para Katendê. O filme celebra e faz reverberar, em sua forma, a narrativa cosmológica do encontro entre os Nkisis, que acabou por dar origem à terra e ao próprio ser humano.

Continuando com a sequência ritualística de abertura do filme com Mametu Muiandê, após as primeiras oferendas, alguns animais aparecem para recebê-las. Um cachorro surge e o Ogan e mestre de Capoeira Lampião nos diz que o cachorro é de Nkosi, o senhor dos caminhos. Ele sinaliza que somos bem-vindos e que podemos adentrar a mata em segurança. O fumo e a cachaça são levados à boca e cuspidos ao ar, para que as entidades sintam o cheiro agradável da oferenda e percebam que somos uma presença amigável no ambiente. Mametu faz reverência, nesse momento inicial, não só a Katendê, senhor das folhas, mas também a Nzila, Nkosi e Mutakalambo. Só então eles começam a caminhada para o interior da mata, sempre acompanhados pelos cantos, entoados em conjunto: “Apanha folha por folha, Tatamirô. A folha Maracanã, ô Tatamirô. Ele é filho de Jussara, Tatamirô. Katendê é dono das folhas, Tatamirô”. À medida que eles se afastam, a imagem fica desfocada. Quando já estão bem distantes, Mametu Muiandê se vira em nossa direção e faz um gesto com a mão, nos chamando. O foco se ajusta e o filme é convidado a entrar na mata. Todo esse longo ritual de entrada é filmado em um único plano-sequência, lento e paciente, tentando apreender os detalhes e o cuidado necessário para o trabalho. A sequência abre o filme como uma maneira também do cinema pedir licença para entrar nesse território, espaço ao mesmo tempo material – constituído pelas plantas e pela natureza visível – e espiritual, habitado por entidades que se fazem presentes em um fora de campo cosmológico (BRASIL, 2016). 

Ao longo do filme, acompanhamos rituais, cantos e encontros de nove mestras e mestres dos saberes tradicionais, de origem indígena e de religiões de matriz africana, com plantas, folhas e árvores de parques da região metropolitana de Belo Horizonte. Enquanto realizávamos a série de filmes previstos pelo projeto Jardins do Sagrado – uma parceria entre o Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG e a Secretaria de Cultura da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte –, descobrimos, ao longo do processo, que tínhamos material para a realização de um décimo filme, um longa-metragem. A série consistia em realizar um retrato audiovisual para cada um dos nove mestres que foram convidados a andar pelos parques da região metropolitana, discutindo as relações entre plantas e espiritualidade, em atendimento a uma reivindicação dos movimentos ligados às religiões de matriz africana da cidade, para que os povos de terreiro tivessem o direito ao livre acesso aos parques para a realização de seus rituais e para a coleta de folhas sagradas. Desse modo, surgiu uma proposta de construção de uma política pública municipal para assegurar esse direito aos povos de terreiro, e a realização de um jardim etnobotânico de folhas sagradas, a ser constituído, coletivamente, no Parque Lagoa do Nado. O projeto contou ainda com a publicação de um livro pela Editora da UFMG, que traz os relatos orais dos mestres integrantes do projeto e um ensaio fotográfico, a eles dedicado, feito por Dolores Orange (cf. GUIMARÃES; SANTOS; FENATTI, 2023). 

Em 2024, nosso programa completa dez anos de existência, e, desde a sua origem, fizemos do audiovisual um modo peculiar de nos relacionarmos com os mestres e de dar a ver e conhecer os seus múltiplos saberes. Nos últimos anos, sistematizamos nosso método de trabalho documentário, que se baseia na criação coletiva de cenas e performances compartilhadas com os mestres, colocando-nos atenta e ativamente à escuta do que nos dizem, procurando lhes oferecer situações para a construção de auto-mises-en-scène guiadas pelo modo como querem se ver representados, e configuradas pelas cosmologias que os envolvem¹. 

Para a realização da série Jardins do Sagrado, adotamos como princípio buscar sempre, junto aos mestres, o melhor lugar para serem filmados, de acordo com a relação que eles têm com as plantas. Foram as plantas que guiaram nossas escolhas de filmagem. Pedíamos aos mestres que andassem pelos espaços profílmicos, tentando identificar plantas e entidades a elas associadas, e que fossem importantes para eles. A partir daí, começávamos as filmagens com uma saudação ou um canto dedicado a essa planta e à entidade que a rege, ou fazendo pequenos rituais (para entrar na mata, por exemplo). Desse modo, o filme propõe uma construção – aparentemente simples – de uma performance das mestras e mestres em relação com as plantas que os rodeiam, mas cujo efeito é muito complexo, pois não se trata apenas de uma performance para ser filmada. Ao performar diante das plantas e das folhas, que são como que a presença material das entidades no mundo (a partir das cosmopercepções aqui apresentadas), as pessoas filmadas não estão simplesmente encenando, mas entrando em relação com o mundo espiritual, dilatando os limites do plano, para que possamos vislumbrar, por meio do cinema, a vibração da energia compartilhada nesse encontro. 

Ao longo do processo de filmagem da série, fomos nos dando conta da potência desse material ritualístico e percebemos que tínhamos um filme ali. Então, partimos para uma montagem que privilegiou a dimensão da relação sensível entre as plantas e as entidades, reduzindo os depoimentos ao essencial, e valorizando, principalmente, os cantos, os gestos e as atitudes do corpo, o encontro com a natureza e os rituais realizados pelos nove mestres. 

A partir daí, foram surgindo algumas linhas de força que guiaram a montagem, como, por exemplo, a alternância entre os universos retratados. Após o ritual com os integrantes do quilombo Manzo, praticantes do Candomblé Angola, cortamos para a sequência com a mestra indígena Darupü’üna, do povo Tikuna, da Amazônia. Ela entra em quadro, repousa a mão sobre o tronco do mulateiro, e faz ali sua saudação, seu canto e sua oração em língua Tikuna para despertar o espírito da árvore. Como ela nos ensina, cada árvore tem seu espírito, e ele nos escuta, mas temos de ter o merecimento para que a cura aconteça. 

Em seguida, o mestre Humbono Misiò Luiz Fernando caminha no bosque do Parque Lagoa do Nado em direção ao pé da paineira, vodum Azanadô do Candomblé Jeje. Ele se ajoelha, marca a terra, sopra a pemba sobre o tronco da árvore e faz uma longa saudação em língua Fon, reverenciando várias das divindades do culto. Ele começa então um belo diálogo, feito diretamente com a árvore e com a entidade, contando que ela teria vindo nos porões dos navios negreiros da África para o Brasil, e que, pelas mãos de Francisco de Etra, teria fundado terreiros importantes, como o terreiro do Gantois em Salvador, entre outros até os dias de hoje. O que mais impressiona na sequência é o modo como ele se emociona ao encontrar a paineira, materialização da divindade. Trata-se mesmo de um encontro muito forte. O vodun Azanadô está na origem de todas as divindades do Panteão, e é também o vodum de sua mãe de santo. Chegar no Parque e encontrar com a paineira significou, para ele, a transmissão de uma mensagem de continuidade dos saberes, herdados de seus ancestrais africanos e também de sua mãe de santo, reforçando sua missão de continuidade da tradição, algo que o tocou profundamente. 

Em outra cena, a mestra Toá Canynã, do povo indígena Pankararu do Vale do Jequitinhonha, caminha entre as águas e as rochas do Parque das Mangabeiras tocando seu maracá. O instrumento parece novamente vir despertar as entidades das águas e das matas, que estariam por ali adormecidas antes da sua chegada. Ela evoca, com o canto, seu Caboclo Índio e nos ensina que a exploração capitalista da terra, por meio da mineração e de outros empreendimentos, não está destruindo somente a dimensão material, visível da natureza – as montanhas, as pedras, as matas, as águas. Eles estão destruindo as dimensões imateriais e sobrenaturais, que são dela indissociáveis. Destroem também aquilo que não se vê, “a moradia dos Encantados”. Cada elemento da natureza tem a sua função em seu lugar, estabelece contato e relação ali, onde se encontra. Por isso, o impacto dessa destruição é incomensurável. 

O filme vai assim bailando entre os cantos e encantos que cada mestre apresenta diante das plantas e das entidades. Iyá Ewé Angela Gomes, filha de Logunedé, saúda Oxum e Oxóssi, entre o riacho e a pitangueira. A Yalorixá Ione Ty Oyá fala da importância de se escutar o vento, pois a mata fala com você, e indica se podemos adentrá-la ou se é hora de recuar, saudando ainda Oxalá, o Orixá maioral, como ela diz. O Babalorixá Sidney d’Oxóssi caminha pela mata, encontrando as plantas e cantando para as entidades a elas associadas, tomando a bênção de árvores e folhas: a folha de Exu; a jaqueira, Apaoká, da qual Oxóssi se alimentou; Teteregun, folha de Xangô; o Peregun, também chamada de nativo; folha de São Gonçalinho, usada para sacudir terreiro. 

O filme termina de maneira circular, com o entardecer e a comunidade do Manzo se despedindo da mata, e com uma sequência de detalhes das plantas sagradas, que retornam, mais uma vez, para nos lembrar do encantamento das folhas também sob a forma do cinema. 

Currículo

Pedro Aspahan

é músico, realizador e professor da Escola de Belas Artes da UFMG. Doutor em Comunicação pela UFMG, com estágio doutoral na King’s College London e pós-doutorado em Comunicação. 

César Guimarães

é realizador e Professor Titular da UFMG, integrante do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Fafich-UFMG e pesquisador do CNPq. 

Ambos trabalham juntos no Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG, por meio do qual vêm realizando uma série de Retratos, Videoaulas e Documentários com mestras e mestres dos saberes tradicionais: www.saberestradicionais.org.

Notas

  1. Boa parte dessa metodologia foi descrita em um conjunto de artigos que se encontram listados ao final deste texto, nas referências bibliográficas.

Referências

ASPAHAN, Pedro. GUIMARÃES, César. A experiência audiovisual com os Saberes Tradicionais na UFMG. In: SILVA, Rubens Alves da et al (Orgs.). Patrimônio, informação e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2020. Disponível em: https://neppamcs.eci.ufmg.br/wp-content/uploads/2020/11/Livro_Neppamcs_5nov20-1.pdf. Acesso em: 13 nov. 2020.

ASPAHAN, Pedro. GUIMARÃES, César. Estéticas do Cosmos Vivo. Anais do 33º encontro da Compós, julho de 2024. Disponível em: https://proceedings.science/compos/compos-2024/trabalhos/esteticas-do-cosmos-vivo?lang=pt-br. Acesso em: 10 out. 2024.

ASPAHAN, Pedro; BRASIL, André; GUIMARÃES, César. Pedagogias do Vento. REVISTA MUNDAÚ, v. 9, p. 127-145, 2020. Disponível em: http://https://www.seer.ufal.br/index.php/revistamundau/index. Acesso em: 29 jun. 2023.

ASPAHAN, Pedro; BRASIL, André; GUIMARÃES, César. Lá nas matas tem: a experiência de criação compartilhada de cenas fílmicas com mestras e mestres dos Saberes Tradicionais na UFMG. Revista PRAGMATIZES - REVISTA LATINO AMERICANA DE ESTUDOS EM CULTURA, 2023. Disponível em: https://periodicos.uff.br/pragmatizes/article/view/57932. Acesso em: 25 set. 2023.

BRASIL, André. Ver por meio do invisível. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v. 35, n. 3, 2016.

GUIMARÃES, César et al. Por uma universidade pluriepistêmica: a inclusão de disciplinas ministradas por mestres dos saberes tradicionais e populares na UFMG. Tessituras, Pelotas, v. 4, n. 2, 2016. Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/index.php/tessituras/article/view/9762. Acesso em: 14 jul. 2023.

GUIMARÃES, César Geraldo; SANTOS, Flávio Henrique de Oliveira; FENATTI, Maria Carolina (Org.). Jardins do sagrado: cultivando insabas que curam. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2023. Mais informações em: https://www.saberestradicionais.org/livro-jardins-do-sagrado-cultivando-insabas-que-curam/.

STENGERS, Isabelle. Reativar o animismo. Belo Horizonte: Relicário, 2017.

www.saberestradicionais.org