A programação do forumdoc.bh vem, em diversas edições, dedicando-se ao já vasto campo dos cinemas indígenas. Filmes compõem um quadro mais amplo de criações de artistas e coletivos pertencentes a diversos povos originários que vivem hoje em todas as regiões do território brasileiro. Expressões estéticas e políticas que conquistam visibilidade ao longo dos anos, os cinemas indígenas são plurais e diversos como são os coletivos que os realizam e, para além da apropriação da linguagem, ao longo de mais de três décadas de experiências dos povos originários com os aparatos audiovisuais no Brasil, percebemos a criação, ou a invenção, de um novo lugar para o audiovisual. Neste novíssimo cinema – como o define Ailton Krenak (2021)¹ –, um outro pensamento (outros pensamentos) e outras relações têm lugar: “um cinema com a câmera na mão e os pés no chão!”. Obras nas quais a associação aos modos de existência singulares se incorpora à forma dos filmes, implicando na transformação da linguagem do cinema em geral e do documentário em particular.
Junto aos cineastas de diferentes povos aqui tantas vezes convidados, estamos interessados em perceber, discutir e difundir a questão de como o pensamento indígena ocupa a linguagem cinematográfica, deslocando-a a seu modo, e de como a linguagem cinematográfica é desafiada a aproximar-se de elementos culturais nunca antes por ela figurados. Sincronicamente às questões formais a nós apresentadas por tais cinematografias, percebemos como regimes diversos de visibilidade se relacionam a temas fundamentais para o tempo presente, como a permanência resiliente dos modos indígenas e sua ampla crítica à ocupação predatória do mundo e da vida que caracteriza a era do Antropoceno.
Para a Mostra-Seminário deste forumdoc.bh.2024, propusemos o foco em um coletivo vibrante e atuante hoje no país. O Coletivo Beture é um movimento dos Mekarõ opodjwyj – cineastas e comunicadores indígenas Mẽbêngôkre-Kayapó. Como nos ensinaram seus integrantes, tal denominação se inspira em uma formiga, conhecida como beture, encontrada no território Kayapó, que tem como característica uma mordida forte, a cabeça vermelha e o tronco preto, as mesmas cores do urucum e do jenipapo usados pelos Mẽbêngôkre quando se pintam para as festas cerimoniais e lutas políticas. Criado em 2016, numa oficina de formação audiovisual em parceria com a Floresta Protegida e o Vídeo nas Aldeias, em Pykararakre (TI Kayapó, Pará), o coletivo foi aos poucos agregando jovens de outras aldeias Kayapó no Mato Grosso e no Pará, mobilizados pelo desejo de registrar a cultura Mẽbêngôkre, suas lutas territoriais e ambientais e os desafios frente ao contato com o mundo não indígena, por meio do audiovisual. Desde então, os Beture têm se dedicado à produção de seus filmes e aos registros da intensa vida cultural e política Kayapó. Esses materiais audiovisuais circulam nas redes on-line e, nacional e internacionalmente, em mostras, festivais, museus e centros de pesquisa.
A curadoria contou com a estreita colaboração do cineasta, formador e ativista Simone Giovine, parceiro fundamental atuante junto aos Mẽbêngôkre desde 2014. Reunindo 26 títulos, entre diversos curtas, médias e dois filmes de longa-metragem, material de arquivo histórico e filmagens do presente, a mostra se organiza em 5 sessões, divididas por temas: Mokraj, Pyka (Começo, Terra); Mekarõ Tum, Me Ingrykam Karõ (Imagens de Arquivo e Imagens para a Luta); Metoro (Festa); Mekukradja Àbikàra (Cultura Misturada); e Mēkronro (Contato).
Neste conjunto de obras, observamos a prevalência e variedade de filmes de curta duração, característica que atravessa a produção contemporânea de muitos coletivos indígenas atuantes no país e que assume particular relevância entre os jovens cineastas Mẽbêngôkre, filmes marcados pelas urgências de luta, mobilização e constituição da memória e que respondem aos canais de difusão online. No contraponto a esses curtas, temos um corpo significativo de imagens de arquivos e longos registros contínuos dos cerimoniais que celebram a intensa e exuberante vida ritual no território Kayapó, festas fundantes de seu modo de vida e organização social.
Essa aparente contradição confere um desenho próprio e característico do cinema e do uso das ferramentas audiovisuais pelos Mẽbêngôkre, em que durações, narrativas e recursos expressivos diversos se confrontam, se sobrepõem e coexistem, assumindo diferentes funções e perspectivas nos diversos contextos de circulação e fruição dessas imagens e desses filmes.
O movimento iniciado no final da década de 1980 com o Projeto de Vídeo Kayapó, fundado pelo antropólogo Terence Turner, trouxe os primeiros registros que revelam a vida ritual nas aldeias e as grandes manifestações coletivas contra a Eletronorte e a construção da barragem de Belo Monte, em Altamira, no Pará. Com a criação do Coletivo Beture, cerca de 30 anos depois, mantém-se o primeiro gesto das filmagens extensas da vida ritual e das narrativas míticas pelos mais velhos – imagens que criam memória para as futuras gerações e que circulam intensamente entre as aldeias via celulares, pendrives e outros dispositivos eletrônicos. Registram-se, além disso, as expressões culturais apropriadas a partir do contato com outros povos e a sociedade nacional – o Hina Hina², os concursos de beleza, as grandes festas de aniversário e datas comemorativas do calendário cristão.
A produção dos curtas, por sua vez, revela uma profícua atividade deste extenso coletivo de jovens cineastas e comunicadores dispersos no território Kayapó. Com cerca de 30 filmes produzidos por ano, os Beture propõem uma tradução do mundo Mẽbêngôkre para a sociedade não indígena, ao mesmo tempo que provocam e convocam os jovens Mẽbêngôkre a refletirem sobre a cultura tradicional e as transformações de seus modos de vida, perpetradas pelo contato com os brancos e a exploração predatória do garimpo e da madeira em seu território. Instrumentos estratégicos de diálogo e interlocução com a sociedade nacional, esses filmes posicionam os Mẽbêngôkre na linha de frente da luta pela continuidade de sua cultura e pela integridade de suas terras, rios e florestas. Com apurado rigor estético, tais produções se destacam, também, na forma e composição de seus quadros – extensão da precisão de suas pinturas corporais, da simetria da coreografia de suas danças rituais, e da exuberância de sua indumentária cerimonial.
Produzidos, em sua maioria, em contextos de oficinas, esses curtas carregam traços e escolhas que se dão no encontro com colaboradores e parceiros indígenas e não indígenas que atuaram e atuam na formação audiovisual do coletivo ao longo de seus quase dez anos de criação. Essas colaborações imprimem um hibridismo próprio às obras, construídas em estreito diálogo com os cineastas do coletivo. Um cinema de mistura, diverso, potente e vasto, e, sobretudo, um cinema para a luta!
Trata-se, assim, menos de uma tentativa de traçar um panorama do cinema feito pelos Mẽbêngôkre nos últimos 40 anos que destaca seu pioneirismo. Apresenta-se, aqui, um foco na produção do Coletivo Beture, colocando seus trabalhos e sua perspectiva recentes em diálogo com a produção histórica do audiovisual Kayapó, debruçando-se sobre suas rupturas e continuidades. A mostra será acompanhada de um seminário e contará com a presença de cinco realizadoras e realizadores do Coletivo Beture de Cineastas Mẽbêngôkre, vindos das diferentes regiões que compõem o vasto território Kayapó: Irepryngraiti Kayapó, Pat-i Kayapó, Kiabieti Kayapó, Matsipaya Waura Txucarramã, Ngreituk Kokongrek Kayapó, além de Simone Giovine, o Mingugu³.
Estruturado em quatro encontros, o seminário propõe uma reflexão sobre a diversa produção audiovisual Mẽbêngôkre-Kayapó, trazendo questões caras aos seus realizadores, pesquisadores e colaboradores. O primeiro encontro, intitulado Mekarõ Ti, traça um histórico do uso do audiovisual entre os Mẽbêngôkre, o surgimento e atuação do Coletivo Beture. Na sequência, o segundo encontro, Mekarõ Tum, retorna aos arquivos dos anos de 1980 e 1990 e às imagens para a luta, quando os Kayapó despontam como uma das grandes vozes na preservação da floresta e do meio ambiente. O terceiro encontro, Mekukradja Àbikàra, se debruça sobre o gesto que o realizador Matsi chamou de “cultura misturada”, apropriações e atualizações de expressões artísticas, culturais e de linguagem de outros povos e do mundo não indígena a partir da perspectiva Mẽbêngôkre. Por fim, o quarto encontro propõe uma conversa entre realizadores e realizadoras de outros povos indígenas presentes no forumdoc.bh.2024 e cineastas do Coletivo Beture, a fim de debaterem seus projetos, filmes e pensamento sobre a diversidade da produção audiovisual nos seus territórios e no Brasil. Também serão exibidos e comentados os seguintes filmes: Com tecnologia, povo Kayapó-Mẽbêngôkre quer barrar devastação na Amazônia (realização: Coletivo Beture) e Erosões (realização: Oswaldo Teixeira).
Notas
- Cosmologias da imagem: cinemas de realização indígena. Organização: Júnia Torres, Daniel Ribeiro Duarte, Roberto Romero - 1. ed. -- Belo Horizonte, MG: Filmes de Quintal, 2021.
- Festas marcadas por músicas não-indígenas apropriadas pelos Mẽbêngôkre, associadas a coreografias que dialogam com as danças tradicionais e que ganharam grande popularidade entre os jovens em algumas aldeias, principalmente no Pará.
- Confira o significado na Entrevista com integrantes do coletivo Beture publicada na sessão Ensaios deste catálogo.