Robert Kramer e as Cenas de um processo revolucionário em Portugal

Breve contexto 

No dia 25 de abril de 1974, em Portugal, eclodiu aquela que ficaria conhecida como a Revolução dos Cravos. A particularidade desse evento histórico é o fato de a revolução ter surgido de dentro do próprio exército português, pelo Movimento das Forças Armadas (MFA) contra o regime vigente. Liderado por diversos capitães e demais militares, precisamente pela experiência traumática na Guerra de Independência da Guiné-Bissau (1963-1974), esse grupo dissidente compreendeu que, para pôr fim à guerra¹, era preciso a queda do regime salazarista. Tendo o jovem capitão Salgueiro Maia como uma das principais lideranças, é dado início a uma estratégia bem-sucedida que contou com adesão da sociedade civil, ficando insustentável a situação para o então Presidente do Conselho de Ministros, Marcello Caetano, deposto do cargo. Os dias subsequentes ao 25 de Abril foram marcados pela abertura do país: fim da censura, fim da polícia política (PIDE), libertação de presos políticos, retorno dos exilados e realização da primeira grande manifestação popular após a queda do regime, no 1º de maio. 

Para quem não tinha os olhos voltados para Portugal por conta do seu isolamento geográfico e político na Península Ibérica e censura em todos os níveis nos seus 48 anos de ditadura², a Revolução chegou como surpresa, gerando entusiasmo nas esquerdas pelo mundo. Ainda por entender o que se passava, desembarcaram em Portugal jornalistas, fotógrafos e cineastas estrangeiros. Parte deles enviados pela imprensa internacional³, outros por conta própria para registrar o acontecimento. Um deles foi Glauber Rocha, que relatou a Luís Filipe Costa, naquele mesmo ano, em entrevista para a RTP, sobre a sua satisfação em estar ali, junto aos colegas de profissão: “Como você sabe, o sindicato realizou um filme coletivo e eu cheguei, saltei do avião e fui direto para o sindicato, porque o meu negócio é o cinema. Ali, com a minha classe, militando com a minha classe, e, ali chegando, encontrei 15 equipes saindo para filmar e me colocaram em uma equipe para fazer algumas entrevistas”. Glauber fora o único cineasta estrangeiro a integrar as equipes portuguesas nas filmagens daquele 1º de Maio de 1974. Essa participação está documentada em As Armas e o Povo (1975), filme no qual Glauber Rocha se faz presente no campo e fora de campo da imagem. 

Parte dos profissionais que chegaram a Portugal acompanhou não apenas os dias que se seguiram ao 25 de abril, mas também o PREC (Processo Revolucionário em Curso), que durou até o ano seguinte com muitos reveses. O MFA pôs fim ao regime, porém, não tinha ambições de tomar o poder. No programa apresentado pelo movimento estava prevista a criação da Junta de Salvação Nacional (JSN), órgão de governo provisório que conduziria o processo de transição. A Junta nomeou o General Spínola como Presidente da República, que permaneceu no cargo de 15 de maio a 30 de setembro de 1974. O governo provisório foi composto, ainda, pelo Partido Comunista Português (PCP), Partido Socialista (PS) e o liberal Partido Popular Democrático (PPD). Inúmeras divergências foram geradas ao longo desse período⁴. A JSN foi dissolvida em março de 1975 e substituída pelo Conselho da Revolução. O PREC foi marcado, então, pela formação de vários governos provisórios até que eleições fossem convocadas⁵. Nesse panorama geral, encontramos uma diversidade de filmes que abordam os mais diversos conflitos desde que o 25 de Abril insurgiu. Robert Kramer, como tantos outros⁶, esteve em Portugal para testemunhar os desdobramentos dessa revolução. Dividindo a direção com Philip Spinelli, realizou, entre outros⁷, Cenas da Luta de Classes em Portugal (Scenes from the Class Struggle in Portugal, 1977), filme que integra a programação da 28ª edição do forumdoc.bh, no ano em que se comemora o cinquentenário da Revolução dos Cravos.


Cenas que se chocam e se expandem

A montagem de Cenas da Luta de Classes em Portugal mobiliza diversos materiais: as filmagens em direto que Kramer realizou entre 1975 e 1976; imagens que retratam o 25 de Abril de 1974 e os dias subsequentes extraídas de As Armas e o Povo; narração⁸ e trilha; além de um prólogo e um epílogo inseridos por Kramer na montagem final. Chama atenção, já no início, a janela que emoldura a passividade de um dia qualquer em um bairro californiano que contrasta com as imagens que se seguirão ao prólogo. Aqui, somos preparados por Robert Kramer a adentrar numa história que passou a pertencer à memória do diretor e que passará a integrar a nossa, enquanto espectadores. A própria televisão portuguesa deu condições materiais para a produção do filme cedendo película, num momento em que foram encorajados projetos de filmagens experimentais e radicais em Portugal, como a cartela explicita. É preciso lembrar que essa consciência da necessidade de produzir imagens surge já no 25 de Abril, quando se percebeu a urgência de registrar os acontecimentos e produzir arquivos do presente para o futuro. Daí a quantidade significativa de títulos resultantes desse período⁹. 

Das imagens de 1974 presentes em Cenas, destaco as sequências realizadas por Glauber Rocha e o fotógrafo António Escudeiro junto ao povo na periferia e na grande manifestação do 1º de Maio em Lisboa, que compõem As Armas e o Povo. É de extrema importância essa participação de Glauber Rocha num contexto marcado por uma grande euforia e que representa um passo fundamental na escuta das classes trabalhadoras e empobrecidas em Portugal, uma vez que o silêncio fora rompido com o fim do regime. Ainda que Glauber realize edições “ao vivo” e, num gesto disruptivo, interrompa um dado depoimento, o cineasta terceiro-mundista estava em sintonia com a vibração que aquele contexto exigia. Kramer recupera as sequências de rua com diversos grupos sociais (operários, estudantes, militares, ativistas) e as performadas no bairro de lata, na periferia de Lisboa, incluindo o depoimento de Maria Luísa Gameiro Madruga que tem 5 filhos e relata a realidade à qual estão submetidos. Para quem assistiu As Armas e o Povo¹⁰, percebe-se que esse depoimento representa a urgência de uma reparação para aqueles que foram condenados a viver aglomerados em barracas em condições precárias. Sendo significativo o rompimento do silêncio que Glauber Rocha e Escudeiro registram e Kramer e Spinelli recuperam em Cenas. Fernando Matos Silva, um dos montadores de As Armas e o Povo¹¹, declarou recentemente que as sequências de Glauber Rocha (e António Escudeiro) representam a espinha dorsal do filme¹². 

As Armas e o Povo (1975) 

É nas periferias, portanto, que a voz do povo se faz ouvir com mais contundência. A realidade é descrita com firmeza ao denunciar a situação de penúria deixada pelo fascismo, contradizendo qualquer discurso da propaganda desenvolvimentista do regime. Esse poder discursivo do povo periférico irá escancarar as feridas silenciadas e resultará num poderoso movimento de organização da classe operária e dos camponeses filmados por Kramer no ano seguinte. O PREC é marcado por disputas ideológicas entre os seguimentos da esquerda e deste para com a direita e a sociedade conservadora. Em meio à ameaça de contragolpe e instabilidade econômica, em reação à não resposta aos problemas estruturais, perde-se o medo de se rebelar contra forças conservadoras e o imperialismo, e rebela-se. É o que podemos constatar nas sequências realizadas por Kramer. Nas cidades, as manifestações dos trabalhadores nas ruas. No campo, a luta pela reforma agrária, a certeza de que não se pode retroceder. Chama atenção a forte presença das mulheres: seja nas imagens realizadas na fábrica que fora tomada pelas próprias trabalhadoras, em recusa aos baixos salários e em resposta à ameaça de fechamento pelos patrões; seja pela jovem que lidera um movimento de resistência de dentro do Palácio da Justiça; sejam as sequências de uma senhora cujo brio revela o quanto é preciso ainda lutar, embora relate depois, em tom resignado, que os trabalhadores já não têm mais a liberdade e aquela força de antes. 

Cenas da Luta de Classes em Portugal (1977)

Para Raquel Schefer (2024, p. 33): 

Muito embora inscrevendo-se numa genealogia que remonta aos newsreels vertovianos e atravessa as diferentes declinações do Cinema de Libertação das décadas de 60 e 70, SCENES situa-se, por outro lado, no prolongamento de uma das tensões estruturantes da obra de Kramer: a tensão entre uma vertente ‘colectiva’ e relacional [...] e uma vertente ‘subjectiva’ que afirma uma política da corporeidade, dos afectos, da intimidade e da sensorialidade. 

Podemos pensar nessas duas vertentes de que nos fala Schefer a partir do depoimento de Isabel do Carmo após rever Cenas, 20 anos depois. Isabel do Carmo fora militante e se tornou amiga do cineasta e sua família na época em que aportaram em Portugal. Ela lembra o quanto Robert e Erika Kramer fizeram parte do processo revolucionário; e como cada um que integrou a multitude do movimento passou a fazer parte da memória de ambos, ficando registrados em Cenas da Luta de Classes em Portugal. Por outro lado, Robert e Erika Kramer também passaram a integrar a memória das pessoas filmadas daquele tempo e “do tempo que se seguiu, quando as bandeiras começaram a baixar”. Isabel do Carmo relata que passaram a ser visitados por “turistas políticos”, que antes não haviam se interessado por como viviam “no tempo do isolamento e da repressão”. Lembra, ainda, que muitos foram viver com eles a festa e a alegria, e experimentar na Europa o período de mudança. E continua dizendo que alguns foram ensinar como é que deviam “fazer e pensar”, mas “Robert Kramer e o seu grupo não vieram como turistas, nem vieram ensinar nada a ninguém. Vieram para ver, para compreender, e para viver. Sobretudo vieram para amar” (CARMO, 2024, p. 12). Essa tomada de decisão – ir ver, para compreender, e viver – está impressa, com justeza, nas imagens realizadas por Kramer e nas imagens de As Armas e o Povo que os realizadores acolheram para dar conta dos acontecimentos em Cenas. Ao espectador, basta saber que Kramer e Spinelli estiveram ali, muito próximos a trabalhadoras e trabalhadores que se organizaram em assembleias populares, apoiados por militares à esquerda, e, mais uma vez, tomaram as ruas e o campo na luta por direitos durante o PREC. 

Robert Kramer concedeu, mais tarde, uma entrevista a Sérgio Tréfaut para o documentário Outro País (1999). Entre as suas declarações sobre a experiência na revolução portuguesa, uma delas é frequentemente lembrada pela crítica. Kramer diz que Cenas é o único filme no qual o melhor material foi cortado, censurado por ele mesmo. Uma sequência em uma reunião no Partido Comunista, não sabendo ao certo se no Porto, já muito tarde da noite, quatro ou cinco homens, velhos operários, dançam embriagados ao som de “Bella Ciao”. Uma cena muito longa e lenta que, para ele, era lindíssima. Diz Kramer: “E, de repente, naquela cena está toda a história do movimento operário na Europa: ‘a coragem, o beco sem saída’”. Mas, ao chegar nos EUA, disseram a ele que não poderia mostrar, que a cena soaria anticomunista. Como naquele contexto, nos Estados Unidos, a ideologia da Guerra Fria dava cabo de tudo, não havia abertura para que uma cena dessa natureza atravessasse transversalmente o filme. A autocensura impediu, portanto, que a sequência fosse incorporada, restando a nós imaginá-la. Encerro lembrando da última imagem do epílogo, um plano de um sol desenhado por Keja Kramer, a quem dedico este breve ensaio¹³. Sobre o sol, lemos: “To be continued”. E o gesto revolucionário continua... 

Currículo

Glaura Cardoso Vale

é produtora editorial e ensaísta. Desenvolve atividades de pesquisa, ensino e extensão nas áreas da Comunicação, Cinema, Audiovisual e Estudos da Narrativa. Integrante do Coletivo Filmes de Quintal, dos grupos de pesquisa Poéticas da Experiência (PPGCOM-UFMG) e Mídia e Narrativa (PUC Minas). Colaboradora do forumdoc.bh desde 2003. Compõe, ainda, as equipes do FestCurtasBH (2017-2024), Semana de Cinema Negro de Belo Horizonte (2021-2024), Mostra de Cinema Árabe Feminino (2022-2023). É coeditora da Vai e Vem – revista de cinema, Nº1, do Centro Cultural Unimed-BH Minas, e autora de A mise-en-film da fotografia no documentário brasileiro e um ensaio avulso (1ª Ed. 2016; 2ª Ed. 2020, Relicário Edições/Filmes de Quintal editora).

Notas

  1. Guerra Colonial Portuguesa é o termo amplamente difundido. Para os países africanos e forças libertadoras: Guerra de Libertação ou Guerra de Independência.
  2. A ditadura em Portugal é marcada por dois regimes: Ditadura Nacional (1926-1933) e Estado Novo presidido por António de Oliveira Salazar (1932-1968) e Marcello Caetano (1968-1974).
  3. Zuenir Ventura, correspondente da revista Visão na época, relata que, quando chegou a Lisboa, já não havia praticamente hotéis disponíveis. Cf. Glauber em três tempos. In: Minhas histórias dos outros: Edição revista e ampliada. São Paulo: Objetiva (Edição do Kindle). p. 46-67.
  4. Vale lembrar que o poder acabou ficando nas mãos da elite conservadora do exército e, entre as divergências, o ponto mais sensível foi: de um lado, o PCP, o PS e o MFA defendiam o fim da guerra e independência das colônias; do outro, forças conservadoras defendiam o seu prolongamento.
  5. Conf.: Governos provisórios de 1974-1976: https://www.opj.ics.ulisboa.pt/legislacao-sobre-juventude-em-portugal-1974-2016/governos-provisorios-1974-1976/
  6. Além de Glauber Rocha e Robert Kramer também estiveram no período revolucionário: Zuenir Ventura, Sebastião Salgado, José Celso Martinez Corrêa, Thomas Harlan, Pea Holmquist, Santiago Álvarez, Guy Le Querrec, Dominique Issermann, Jean Gaumy, entre outros.
  7. Outros dois filmes foram realizados no país por Kramer e produzido por Philip Spinelli: República (1975) e On the side of the people (1976), este com produção também da Third World Newsreel. Mais tarde, Kramer retorna ao país e realiza Doc's Kingdom (1987).
  8. Na versão em inglês, Philip Spinelli e Melinda Rorich; na versão em português, Artur Albarran e Lia Gama.
  9. Conf.: SANTOS, Pedro Neves de Carvalho. A intervenção da imagem: encanto e desencanto dos documentaristas da Revolução de Abril (1974-1980). 2006. Dissertação (mestrado em História) - Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto, 2006.
  10. Exibido no encerramento do forumdoc.bh.2007 e na Mostra Glauber - Kynoperzpektyva18, em 2018, coordenada por Bruno Hilário, gerente de cinema do Cine Humberto Mauro na época, a quem agradeço por ter me convidado a comentar a sessão de As Armas o Povo; e ao Mateus Araújo Silva, que esteve presente, pelas generosas observações à minha fala. Aproveito para agradecer, também, a Cláudia Mesquita, Júnia Torres e Rogério Lopes, cujo diálogo frequente me permitiu elaborar sobre as questões aqui expostas. 
  11. O filme foi produzido pelo Coletivo de Trabalhadores da Atividade Cinematográfica de Portugal. Embora a assinatura de As Armas e o Povo seja do Coletivo, sabe-se que Fernando Matos Silva assumiu a montagem por ter sido considerado o mais “neutro” do grupo em meio a divergências ideológicas. Monique Rutler também assume a montagem, indicada por Fernando Lopes, que havia sido seu professor nos primeiros anos da Escola Piloto para a Formação de Profissionais de Cinema, aberta em 1972. Paulo Cunha atribui o crédito também ao montador de som Alexandre Gonçalves no Dossiê (2021) de As Armas e o Povo.
  12. Depoimento de Fernando Matos Silva após a sessão de As Armas e o Povo que abriu a série de comemorações da Cinemateca Portuguesa dedicada aos 50 anos da Revolução, com a temática “Revolução, Liberdade, Comunidade, Futuro”, em 3 de janeiro de 2024. O realizador lembrou, ainda, da famosa reunião na sede do Sindicato que resultou em As Armas e o Povo e outros títulos.
  13. Pela generosidade em autorizar a projeção de Cenas da Luta de Classes em Portugal na 28ª edição do forumdoc.bh e por nos permitir publicar o texto de Robert Kramer sobre o filme neste catálogo.

Referências

CARMO, Isabel do. Robert Kramer e as Cenas de Luta de Classes em Portugal. In: Cenas de Luta de Classes em Portugal. Lisboa: Cinemateca Portuguesa, 2024. p. 9-15 (Encarte de DVD)

COSTA, Jose Manuel. Scenes from the Class Struggle in Portugal. In: Cenas de Luta de Classes em Portugal. Lisboa: Cinemateca Portuguesa, 2024. p. 19-27 (Encarte de DVD).

CUNHA, Paulo. Dossiê Pedagógico As Armas e o Povo. Lisboa: Plano Nacional de Cinema, 2021. (Manual, Coleção 6)

CUNHA, Paulo. O cinema e o povo. In: CUNHA, Paulo (Org.). As Armas e o Povo (1975). Lisboa: Cinemateca Portuguesa, 2020. p. 3-10. (Encarte de DVD)

SHEFER, Raquel. Scenes from the Class Struggle in Portugal, de Robert Kramer e Philip Spinelli. In: Cenas de Luta de Classes em Portugal. Lisboa: Cinemateca Portuguesa, 2024. p. 31-36 (Encarte de DVD)

VARELA, Raquel. “Um, dois, três MFA...”: o Movimento das Forças Armadas na Revolução dos Cravos – do prestígio à crise. São Paulo. Revista Brasileira de História, v. 32, n. 63, 2012.