Sobre entrar e sair do deserto

Durante o Festival de Inverno da UFMG em 2003, a Oficina de Ecoturismo/Turismo na natureza, ministrada pelos professores Allaoua Saadi e Bernardo Gontijo, do Instituto de Geociências, nos conduziu aos arredores de Diamantina para conhecermos os territórios da região da Serra do Espinhaço, passando pela nascente do Rio Jequitinhonha e pela Gruta do Salitre. Entre as variadas ambiências e oportunidades de vislumbrar as estonteantes belezas naturais dos gerais, o que ambos sempre traziam para a baila era a conscientização dos que haviam escolhido segui-los naqueles cinco dias de julho, a respeito dos perigos, causas e consequências das erosões e formação de voçorocas.

Como é de conhecimento amplo, os terrenos sem cobertura vegetal ficam disponíveis para o assoreamento da água da chuva, provocando deslizamento de terra e a impossibilidade das existências animal, vegetal e da cultura humana sobre estes espaços: nem agricultura, nem a criação de animais, nem casas, nem bairros, nem estrada. A expropriação desenfreada dos territórios impossibilita as biointerações anteriormente existentes assim como qualquer outra que possa existir. Um terreno erodido é um terreno sem vida. Para que haja vida, é preciso biointeração.

A biointeração, perspectiva conceitual forjada por Mestre Nego Bispo, é um modo de enfrentamento ao biopoder, que expropria as existências e suas subjetividades pessoais, comunitárias e coletivas, assim como uma erosão faz no solo. Se, em um quilombo, a biointeração envolve modos de compartilhamento entre o território, as pessoas, os animais, a vegetação, o cultivo, o clima, os rios, quando há uma situação na qual o biopoder prevalece, temos comunidades e vidas assoladas para gerar lucro para quem detém o poder sobre os territórios.

No início do filme Erosões, Oswaldo nos guia em um caminho fílmico vertiginoso; o caminho é à esquerda. No encontro com o que faz parte da terra, devastada ou em devastação, pela expropriação das mineradoras, o filme nos conduz a encruzilhadas estéticas que nos recordam das potencialidades dos posicionamentos políticos o tempo todo. 

Em 2012, Oswaldo Teixeira realiza o filme Erosões, que registra a ação predatória da mineração em Minas Gerais e dá a ver os sujeitos que ali reexistem. Filmado entre 2011 e 2012, a equipe se instalou durante dois meses e meio no antigo distrito de Souza Noschese (hoje um terminal de cargas), em uma casa alugada em Fecho do Funil, na interseção entre Brumadinho, Bicas e Mário Campos, bem próximo da retomada da terra indígena pataxó Naô Xohãn. Há trechos do filme rodados de forma clandestina na Serra de Igarapé, na BR-381 e em Itatiaiuçu, áreas cujo acesso era proibido pelas empresas mineradoras. O filme registrou o processo de expulsão das famílias em razão da construção do terminal de cargas. (GUIMARÃES; RENA, 2024, p. 86)

A comunidade de Fecho do Funil está (esteve?) localizada às margens do Rio Paraopeba. Antes mesmo de sangrar a espessa camada de lama ali jorrada por um crime premeditado, suas águas já lavavam as lágrimas trazidas pela mineração.¹ Suas casas, erguidas ao redor da parada ferroviária de mesmo nome (o trem, outra sina mineira), foram sendo, no movimento cruel do tempo, devoradas pela máquina de moer gente. 

Em Confluências,² produção de Dácia Ibiapina (2024), realizado em conjunto com Mestre Nego Bispo, também temos, no início do filme, o caminho à esquerda, sendo percorrido com a câmera e com os olhos, os nossos. Realizado na festa de aniversário de sessenta anos do Mestre, com muita música, alegria e reflexão sobre as existências nessa terra, o filme seria o primeiro de uma série que os piauienses nos presenteariam em um futuro sonhado. Sua partida surpreendente, assim como a de Os, nos fazem pensar sobre o sair, partir.

Começo, meio, começo. A lição do Mestre no entendimento diferente do que sempre está interessado em alcançar algo, com a busca de um fim, enfrenta a perspectiva da modernidade com seus objetivos que sempre desejam conquistar, colonizar, usurpar. Ao compreender a gira de um começo sempre possível de ser trilhado, a negociação e os entendimentos que estão em disputa evidenciam a escuta, a partilha do sensível, a mudança de opinião e reconsideração da tomada de posição. 

Para a colonialidade, a transformação dos posicionamentos é nociva, pode desestabilizar os feitos alcançados pelo capitalismo neoliberal; mudar de opinião é perder lucros, desperdiçar capital. 

A lição nos alegra ao pensar também na partida repentina de Oswaldo; o começo de sua nova forma de existência é em nossas memórias, memórias de quintal, filmes de quintal, memórias forumdoquianas. Uma memória comum que compartilhamos, que nos transforma enquanto narrativas das experiências que vivemos com ele, pelo Cine Humberto Mauro, Brasil 41, salinha da Filmes e todas as adjacências imaginárias de sua presença entre nós.

No filme Erosões, o que era comum, isto é, terra, quintais, árvores, frutas, paisagens, animais, rituais, que compunham o usufruto da comunidade, vai se tornando propriedade particular.

Joviano em Entreato, no livro Quatro Cantos do Mestre Nego Bispo, escreve: “O comum envolve, o público desenvolve. (...) O público tem catraca, o comum é abertura. Tudo que tranca, trinca” (p. 48-49). As presenças compartilhadas eram estradas abertas, possibilidades de sonhos ampliadas para além dos horizontes. 

Quando estamos no fragmento “Gente”, enunciado pela segunda cartela de Erosões, encontramos sete pessoas em diferentes planos. As sete pessoas que aparecem nos retratos modelam os destratos da exploração das mineradoras que alcançam idosos, crianças, homens, mulheres e pessoas trabalhadoras. 

Ao adentrar nos olhares dessa gente, recordamos a narrativa do livro O desaparecimento dos peixes, de Júlia Moysés, situada com uma comunidade congadeira que vivia próxima a uma nascente de rio, nas montanhas das gerais, e, com a emergência de um governo distópico, vai sendo impedida de perpetuar sua cultura, hábitos comunitários, familiares, de cultivo da terra e da pesca. Suas existências atravessam toda sorte de cerceamento, mas, ao final, a dimensão comunitária é restaurada e a passagem é feita de forma coletiva, como chegaria mesmo, e assim foi.

No tempo, todos faremos nossas passagens e, desse modo, daremos continuidade ao processo de regeneração que a terra espera que façamos.

uma terra

um caminhão cruza a linha
outra cruza
encruzilhada 

mata
montanha
o desaparecimento dos peixes
o rio sonha a sua morte 

outro caminhão cruza à esquerda
mais um caminhão
todos à esquerda?
todas na vertigem
estrada propriedade particular
entrada proibida

agora vamos
à direita
trens também vão para a direita
vemos e ouvimos
o trem tem 1m e 37s

a árvore é majestosa
ela é o tempo 

os cães latem
crianças ao fundo

a árvore é majestosa em sua florada
com a montanha ao fundo
ela é a passagem do tempo 

a mulher
uma senhora
tosse diante de nossa senhora aparecida
a chuva se arma ao fundo, com um trovão

o operário surge em primeiro plano
uma criança aparece em primeiríssimo plano
seus olhos, ancestrais
um bebê chora ao fundo
luz sobre a cabeça

a montanha está sendo mordida
erosões!
o trator revolve o minério de ferro
as retinas já tão fatigadas
o terminal de cargas recria montanhas de pó

12 de junho de 1923
fecho do funil, 2012
onde se estreita o rio 
o som direto persegue a imagem até o fim

Currículo

Milene Migliano

é jornalista, pesquisadora, professora e produtora. Integra a Associação Filmes de Quintal desde 2003, participando do forumdoc.bh e de diversas ações e projetos. Hoje, vive em Salvador, Bahia.

Rafael Barros

é antropólogo e, atualmente, dirige o Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular CNFCP/Iphan/MINC. Integra a Associação Filmes de Quintal desde 2004.

Notas

  1. No dia 25 de janeiro de 2019, às 12h28, a barragem da Mina Córrego do Feijão, da mineradora Vale, em Brumadinho, se rompeu, causando a morte de 272 pessoas e espalhando resíduos de minério pela bacia do Rio Paraopeba.
  2. O filme integra a Mostra Contemporânea Brasileira desta edição de 2024 do forumdoc.bh.

Referências

GUIMARÃES, César; RENA, Pedro. Entra-se de surpresa no deserto. In: Cinemas da terra. Poéticas da Experiência e Selo PPGCOM. Belo Horizonte: Coleção Devires, 2024. Disponível em: https://www.academia.edu/123491237/Entra_se_de_surpresa_no_deserto.

IBIAPINA, Dácia. Confluências. 2024, 26'. 

Joviano. Entreato. In: SANTOS, Antônio Bispo dos. Quatro Cantos. São Paulo: n-1 edições, 2022.

MOYSÉS, Júlia. O desaparecimento dos peixes. Belo Horizonte: Cas'a, 2024.

TEIXEIRA, Oswaldo. Erosões. 2012, 36'. 

new holland

ainda resta

outro caminhão

new holland!