Urgência documental, “dramática popular”, f(r)icções no real: uma conversa sobre Iracema (1974) e Gitirana (1975), de Jorge Bodanzky e Orlando Senna

No ano em que Iracema, uma Transa Amazônica (Jorge Bodanzky e Orlando Senna, 1974) completa 50 anos, teremos a chance incomparável de assisti-lo em cópia restaurada, acompanhado de Gitirana (Jorge Bodanzky e Orlando Senna, 1975), muito pouco visto no Brasil. Juntos, os dois filmes expõem a potência crítica e as variações criativas de um cinema em direto, que se vale de encenações ficcionais como meio de friccionar e provocar o real a se manifestar. O contexto não poderia ser mais difícil: os anos seguintes ao AI-5, poucos meses após o governo Médici, atravessados pelos drásticos megaempreendimentos da ditadura militar, que destruíram territórios e vulnerabilizaram milhares de vidas. Com sentido de urgência e coragem, Jorge Bodanzky, Orlando e Conceição Senna e seus colaboradores se dispuseram a enfrentar in loco essas contradições, filmando na Transamazônica (PA) e na Barragem de Sobradinho (BA), então em construção.A partir de motes, esquetes ou enredos ficcionais, os filmes resultantes legam imagens na época inéditas (como os travellings da floresta em chamas em Iracema) e perturbam, com suas f(r)icções, a ficção militar do “Brasil Grande”. 

“A primeira semente de Iracema germinou num posto de gasolina, à margem da Rodovia Belém-Brasília, em 1968. Enquanto esperava que o repórter da Revista Realidade apurasse alguma coisa, fiquei dois dias observando a movimentação de caminhoneiros e prostitutas em torno do posto. A estrada ainda era de terra e as “Iracemas” e “Tiões” estavam todos ali (...) A história de Tião e Iracema era um pretexto para mostrar o que estava acontecendo com a Amazônia” (Depoimento de Bodanzky, O homem com a câmera, Coleção Aplauso, 2006: 159-160. Org: Carlos Alberto Mattos). Se a criação ficcional surge da observação de vivências (nos espaços tomados como locações), no momento da filmagem, por sua vez, as encenações com atores recebem tratamento documental: equipe pequena, câmera 16mm na mão, som direto sincrônico. Esse método de filmar – “muito leve, muito ágil (...), sem alertar o momento da filmagem”, sem “corta!” e sem claquete, como afirma Bodanzky em entrevista (2005), buscava não apenas “manter a magia do momento criado”, mas driblar o controle da ditadura. Resulta uma cena porosa, inscrita em cenários e paisagens reais e aberta a presenças e reações imprevistas, em uma sofisticada “dialética de contaminações” entre “cinema-verdade e teatro”, como escreveu Ismail Xavier (2004). 

Nesta conversa, buscamos entender juntos o impacto desses filmes, e as variações na proposta de abordagem criativa e crítica da realidade socioambiental brasileira em transformação, realizadas por Bodanzky e Senna em Iracema e Gitirana.

Cláudia – Tanto Jorge Bodanzky como Orlando Senna já contaram, em diferentes momentos, sobre os riscos envolvidos na realização desses dois filmes. Sobre o processo de pesquisa e filmagem de Iracema, quando entraram 500 km de rodovia em construção adentro, Orlando narra (O homem da montanha, Coleção Aplauso, 2008, Org.: Hermes Leal): “Uma vivência bem visceral, em alguns momentos perigosa, com uma polícia militar onipresente e altamente desconfiada, com malfeitores suspeitando de nossos equipamentos e nossas perguntas.” Sobre Gitirana, Jorge comenta (em entrevista para o livro Cinemas da Terra): “Deparamos com a obra da Barragem de Sobradinho, perto de Juazeiro, na Bahia. Pensei: ‘Puxa, vamos inserir nossas histórias na construção de Sobradinho, assim como foi com a Transamazônica, o pano de fundo aqui será Sobradinho.’ Foi complicado, porque, no meio da ditadura, você não entra numa obra assim sem mais nem menos, não é? A gente filmou no entorno, e tivemos muita sorte de não terem percebido o que a gente estava fazendo, senão nos expulsariam na hora.” Orlando conta ainda que foram informados sobre o assassinato de Vladimir Herzog, de quem eram amigos, durante as filmagens de Gitirana: “Ficamos arrasados e mais agudamente conscientes de que poderíamos ser interrompidos a qualquer momento. A morte de Vlado apressou as filmagens, filmávamos como uns alucinados, dia e noite, para terminar o quanto antes possível e cair fora.”

Essa coragem e urgência documental – estar lá e registrar os cenários da Amazônia e do sertão em transformação brutal, processos emblemáticos do projeto desenvolvimentista da ditadura – é algo sem precedentes no cinema brasileiro... O que você acha dessa característica fundamental de Iracema e Gitirana, a urgência documental aliada à abordagem ficcional?

Ewerton –Primeiro, acho interessante o fato de que são dois filmes atravessados por dois grandes empreendimentos da ditadura militar. Signo político da presença da ditadura, mas talvez, nos filmes, não tão óbvio, tão imediato... É um traço do trabalho de Bodanzky que se prolonga em outros projetos, como Jari(Jorge Bodankzy e Wolf Gauer, 1979), e que o singulariza frente a uma constelação de cinemas de esquerda, que se opõem à ditadura, no Brasil: o fato de que a cinematografia dele desconfia dos projetos modernizadores. 

Cláudia – Não apenas desconfia, mas se desloca até os “confins do tempo presente” (como se lê no letreiro de Terceiro Milênio), registrando in loco os megaempreendimentos da ditadura e suas contradições. Muito corajoso esse afã documentarista, não é? 

Ewerton – Sim, e é curioso pensar de que modos os dois gestos se “colam”. O gesto ficcional e o gesto documentarista de urgência, no calor da hora. Porque é uma combinação muito inusual. O projeto de registrar os acontecimentos in loco é mais familiar ao jornalismo. E Bodanzky sempre insistiu nessa guarita que ele tinha, naquele período, de trabalhar como cinegrafista para televisões estrangeiras. Frequentemente para a TV alemã, mas não exclusivamente. Ele tinha familiaridade com a cobertura jornalística. Isso é muito curioso... Por que a escolha da ficção? 

Cláudia – Imagino que isso se deva, em parte, ao encontro de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, que dirigiram esses dois filmes juntos. São, na filmografia de Bodanzky, os mais emblemáticos da combinação de urgência documental e criação ficcional. Mesmo que Terceiro Milênio possa ser aproximado, já que Evandro Carreira, fazendo seu próprio papel, tem uma capacidade performática imensa; ainda assim, o filme resultante é mais estritamente documental. 

Ewerton – Eu concordo, mas insisto na pergunta: por que a ficção? É muito inusual, e não só na cinematografia brasileira: o gesto de registrar in loco uma realidade urgente e, para fazê-lo, ficcionalizar. 

Cláudia – Em seu depoimento (Coleção Aplauso, 2008, Org.: Hermes Leal), Orlando Senna comenta que, para ele, o uso da “cunha ficcional” (em sua expressão) tem o propósito, em Iracema, de se aproximar dramaticamente do real. Ou seja: para além dos registros documentais, tentar traduzir o drama humano, individualizá-lo, a partir de personagens criadas, mas inspiradas na realidade da estrada, observada e pesquisada por eles antes de ser filmada. E mais: a “cunha ficcional”não apenas dramatiza e provoca a realidade documental da beira de estrada, mas internaliza a história emblemática do encontro desigual e predatório entre Sul e Norte (no trecho de estrada compartilhado entre o caminhoneiro pró-ditadura e a moça de origem indígena que se prostitui). Em Gitirana, diferentemente, a ficção é mais fantasiosa, construída a partir de histórias de cordel, e sua encenação é mais teatral e deliberada – o que tende a engajar de outra maneira as pessoas que são provocadas pelas encenações no percurso do filme. Ora elas se engajam como espectadoras (e não são poucos os momentos, no filme, em que vemos as pessoas se aglomerarem em torno das encenações em espaços públicos, assistindo-as), ora elas são convocadas a “entrar” na brincadeira do filme (em seu jogo explicitamente lúdico). O que você acha dessas variações?

Ewerton – De fato, o resultado é muito diferente, até porque, em Gitirana, o experimento ficcional avança mais, se comparado a Iracema. Acho até que a sofisticação na elaboração do dispositivo é maior. Parece-me que nele há referências mais explícitas ao teatro popular, a Brecht... Bases teóricas que informariam aquela mise-en-scène

Cláudia – Não acho que o dispositivo seja mais sofisticado. Mas, sem dúvida, é muito interessante como Gitirana incorpora folguedos e manifestações populares (a cavalhada, o bumba meu boi), e envolve atrizes e atores de grupos teatrais de Juazeiro (BA), contracenando com Conceição Senna (formidável!), ao fazerem diferentes papéis: o Padre Cícero, Lampião, o Diabo, João Ninguém, além da Morte, vivida por um ator baiano mais experiente (Ary Barata). É muito legal esse jogo teatral de rua, antinaturalista, que a criação de um roteiro conduzido por personagens de cordel acentua. Aliás, o filme deriva de uma peça de teatro dirigida por Orlando Senna a partir da costura de diferentes histórias de cordel (Cordel, 1971/72). No filme, esse imaginário se faz presente não apenas nas encenações, mas nas histórias cantadas por repentistas e narradas, por exemplo, em uma Kombi com carro de som. Diferente de Iracema, em que o roteiro surge da observação da realidade amazônica, e o distanciamento se liga à atuação brechtiana de Paulo César Pereio, em meio a outras escolhas mais realistas. 

Ewerton – Voltando à combinação singular de urgência documental e encenação ficcional, eu te pergunto se ela não teria a ver com dois pontos da trajetória de Jorge Bodanzky, anteriores à realização desses filmes. Por um lado, o trabalho como fotógrafo de Visão de Juazeiro (Eduardo Escorel, 1969), produção da chamada Caravana Farkas, na qual há um grande interesse pela “dramática popular”, para usar uma expressão de Geraldo Sarno. Vários dos filmes produzidos por Farkas no Nordeste se interessam por isso: formas narrativas, dramatúrgicas e musicais do sertão nordestino, formas dos folguedos, das cantorias... Por outro lado, penso em trabalhos que Jorge Bodanzky fez como fotógrafo, que não são documentais, mas empregam o mesmo dispositivo de inserir personagens fictícios em situações vividas. Penso, especialmente, em Gamal, o delírio do sexo (João Batista de Andrade, 1970) e em Hitler IIIº Mundo (José Agrippino de Paula, 1968), que apresentam intervenções dos atores em espaços públicos. 

Cláudia – É verdade. João Batista de Andrade usava, inclusive, a expressão “dramaturgia de intervenção”, retomada por Jean-Claude Bernardet (em Cineastas e Imagens do Povo). Para designar essa proposta de a ficção intervir e de o filme registrar e acolher os modos como as pessoas reagem, respondendo às provocações. Há, inclusive, diferentes modulações e nuances, entre Iracema e Gitirana, nos modos como as encenações friccionam o real e produzem reações. Em Gitirana, como já dito, muitas vezes as pessoas se colocam como espectadoras, como se o filme produzisse uma cena de teatro de rua que pudesse ser assistida, o que o aproxima da teatralidade popular. Em Iracema, segundo Orlando Senna (2008), muitas pessoas com quem os atores interagiram na beira da estrada sequer sabiam que Pereio não era um caminhoneiro e que Edna não era Iracema – ou seja, a despeito da presença da equipe, eles se inseriam nas situações de maneira a se confundirem com outros personagens reais presentes nesses cenários. Nesse sentido, a proposta é mais realista, mesmo que a atuação de Pereio, muitas vezes, ponha em crise essa proposição. Mas parece que a tentativa é de colocar para dentro do filme situações reais que se davam na estrada, e a aposta é de que a mediação dos atores possa auxiliar em sua provocação e registro. Já em Gitirana, a fricção com o real é muito diferente. As encenações convidam os passantes ao jogo, a entrar na brincadeira... 

Ewerton - É o teatro político de rua, uma tradição brechtiana à brasileira... o teatro político popular! Tem familiaridade com os experimentos de rua do Grupo Galpão, não acha? Fico pensando no livro de Iná Camargo Costa, A hora do teatro épico no Brasil (1996), em que ela argumenta que a tradição brechtiana de teatro político brasileiro tem uma espécie de ímpeto documental em relação às formas dramáticas populares. Uma forte relação com a música popular e com as formas cênicas tradicionais, o que dá um caráter muito próprio ao teatro épico feito no Brasil. Isso talvez se faça presente em Gitirana...

Cláudia – O filme é deflagrado, de um lado, pelo convite da ZDF (emissora de TV alemã) para que produzissem outro trabalho, depois da repercussão de Iracema fora do Brasil. Como não tinham nada “na manga”, como conta Bodanzky, eles se inspiram em Cordel, espetáculo de teatro criado e encenado por Orlando Senna a partir de muitos e muitos folhetos e personagens... É como se eles transportassem essa recriação do imaginário sertanejo de volta para o sertão, e, particularmente, para o cenário de construção da Barragem de Sobradinho em Juazeiro (BA). O que resulta é diferente da contundência documental de Iracema

Ewerton - Sim, apesar do senso de urgência, tem muita coisa engraçada em Gitirana. Tem comicidade em várias cenas, o filme é divertido. A farsa, o lúdico, o grotesco, as inversões estão também nas formas populares do sertão brasileiro, que produzem um sentido que é lúdico e é político. E que, obviamente, é diferente da tragédia que ronda Iracema o tempo todo. 

Cláudia – Sim, sem dúvida. Sobre as transformações, elas movem Gitirana, não é? O personagem do garoto sertanejo vira “ela” (Conceição Senna), que vai se metamorfoseando em diferentes papéis, em diferentes esquetes. Mas tenho a impressão de que essa relação entre o imaginário do cordel (através das encenações) e a apresentação do que acontecia no sertão, naquele momento histórico, não se resolve tão bem em Gitirana. De maneira geral, a abordagem crítica e a denúncia dos impactos socioambientais do desenvolvimentismo não aparecem de maneira tão orgânica (como vemos em Iracema). Tem momentos interessantes: por exemplo, quando os operários da Barragem de Sobradinho vaiam espontaneamente a aparição do Diabo, que entra em cena em meio à poeira da obra. Por outro lado, as situações documentais que registram, por exemplo, o discurso de autoridades e figuras políticas sobre a obra, não interagem com as encenações, aparecem justapostas na montagem. Talvez seja injusto esse meu comentário, já que a proposta do filme é deliberadamente fragmentária, por esquetes... O fato de que eles tenham se proposto a fazer um trabalho artístico, de intervenção, naquele cenário, é em si muito interessante. A gente nota aí o interesse, presente também nos filmes da Caravana Farkas, de explorar os contrastes e contaminações entre cultura tradicional sertaneja e modernização brutal e conservadora, imposta pelo Estado (em aliança com corporações), nesses cenários. 

Ewerton - Gitirana é um filme sofisticado, mas não é um filme sutil. Nesse sentido, tem uma rudeza na própria encenação, que remete ao teatro popular. A maneira como o assunto é inserido talvez seja rude também: não é uma alegoria, não se trata de uma relação indireta, mediada conceitualmente, entre encenação e realidade política. É como se fosse um rasgo documental que aparece no meio da encenação: a encenação feita na obra de Sobradinho, alguns operários sendo incorporados pelo filme, o projeto desenvolvimentista aparecendo em um diálogo etc. Você usou um termo que é interessante para abordar o modo construtivo do filme: é uma montagem por justaposições. Já Iracema tem a sua dose de alegoria, não é? Na dupla de personagens... Iracema e Tião Brasil Grande, desde o nome. 

Cláudia - Bem interessantes e transgressoras as personagens de Conceição Senna em Gitirana, não é? Ela surge de uma primeira transformação: o Padre Cícero transforma um garoto sertanejo, a quem atribui a missão de encontrar o Reino de Miramar, em mulher (“muitas vezes é mais fácil ser mulher nesse sertão”). De transformação em transformação, Conceição Senna é Ciça, Marieta Purribão, Maria Bonita, a filha do Coronel que foge com o vaqueiro, uma romeira devota do Padre Cícero e, no final, aparece como um operário sagaz, que embarca num pau de arara (rumo a mais uma obra faraônica da ditadura?). Especialmente nos papéis de Marieta Purribão e filha do Coronel, ela desafia os homens (e a moral, o pecado, o Diabo!), fazendo valer o seu desejo. 

Ewerton - As personagens de Conceição Senna são o lado mais interessante da elaboração ficcional no filme. É o melhor exemplo do jogo transformacional característico das formas narrativas populares. Não apenas a troca de identidade, mas as inversões. Inversão da hierarquia social na figura da mulher que desafia o homem. Está lá no cordel... Dadá assumindo o cangaço com o ferimento de Corisco. É óbvio que eles não estão copiando a tradição popular, mas infletindo. E que não é só a tradição popular que está em jogo ali. Tanto Jorge Bodanzky como Orlando Senna eram muito sensíveis a uma série de questões políticas colocadas pelas novas esquerdas nos anos 1970... É muito original, pioneira e única, no contexto brasileiro, a preocupação ecológica do trabalho de Bodanzky naquele momento, por exemplo. Ecologia, relações de gênero, essas questões infletem nos filmes.

Cláudia – E, no caso das personagens de Conceição, tem o trabalho e o repertório da própria atriz... Como ela, Conceição, se faz presente em todas aquelas personagens que faz no filme. Assim como Pereio se faz presente na atuação como Tião Brasil Grande (nesse caso, zombando e se distanciando ironicamente do personagem do caminhoneiro pró-ditadura). As personagens de Gitirana estão investidas de Conceição Senna: mulheres desafiadoras, provocativas, atiradas, que chamam para o enfrentamento... 

Ewerton - Sim, personagens que são uma espécie de ato de direção em cena. Conceição e Pereio são vicários da direção em cena. Como já comentei, acho que o dispositivo de trabalhar a intervenção de atores em situações documentais não é exclusivo do trabalho de Bodanzky, embora tenha alcançado uma qualidade excepcional na filmografia dele. Ele também se faz presente em outros filmes feitos no Brasil, especialmente durante a ditadura. O dispositivo é o mesmo, mas variam os efeitos disso que poderíamos chamar, citando Haroldo de Campos, de introdução deliberada de uma zona de indeterminação numa forma artística... O dispositivo pode transformar o espaço urbano em palco (como em Hitler, terceiro mundo). Ou explicitar elementos já presentes nas interações cotidianas, mas revelados ou sublinhados pela introdução do elemento fictício (em Gamal, o delírio do sexo, por exemplo). Outro efeito é trazer para a cena um pensamento político sobre a realidade brasileira, compartilhado entre o personagem (espécie de porta-voz) e aqueles que estão atrás da câmera (como os personagens de Antonio Pitanga fizeram algumas vezes). E no caso específico de Pereio, ele atua, de maneira muito singular, como uma espécie de caixa de ressonância ideológica das ideias partilhadas por obreiros da frente pioneira, esses que eram ao mesmo tempo algozes e vítimas do desenvolvimentismo da ditadura militar, perpetradores e alvos da marcha para o oeste... Outra singularidade é o que estou chamando de direção por vicariedade. O filme não apenas observa, mas intervém e interage, e essa interação é mediada por alguém em cena, um “entrevistador” singular, dotado de espessura, de subjetividade. 

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Editada a conversa, percebemos que maior ênfase foi dada a Gitirana, talvez pelo impacto recente do filme, que nunca tínhamos visto. Tivemos acesso a ele graças à descoberta dos negativos nos arquivos do ZDF, canal de TV alemão, coprodutor de Iracema, Gitirana e Terceiro Milênio – a restauração digital em 4K das três obras está em curso (já finalizada, a cópia restaurada de Iracema será exibida pela primeira vez em Belo Horizonte durante o forumdoc.bh 2024). De fundamental importância, o restauro dos filmes tem direção artística de Jorge Bodanzky, produção e coordenação técnica de Alice de Andrade e supervisão de Martin Köerber, na Alemanha, e Débora Butruce, no Brasil. 

 

Nessa conversa, citamos os livros Jorge Bodanzky - O homem com a câmera (São Paulo: Imprensa Oficial/Cultura, Coleção Aplauso, 2006. Org: Carlos Alberto Mattos); Orlando Senna - O homem da montanha  (São Paulo: Imprensa Oficial/Cultura, Coleção Aplauso, 2008, Org.: Hermes Leal); e Cinemas da Terra (BH: Poéticas da Experiência/Selo PPGCOM UFMG, 2024. Org: André Brasil e Cláudia Mesquita). E ainda o artigo "Iracema: o cinema-verdade vai ao teatro", de Ismail Xavier. Devires: Cinema e Humanidades, v.2, n.1, BH: UFMG, 2004; e a entrevista com Jorge Bodanzky presente no documentário Era uma vez Iracema (2005), dirigido por ele.

Currículo

Cláudia Mesquita

é pesquisadora e professora no Departamento de Comunicação Social da UFMG. Coordena o grupo de pesquisa Poéticas da Experiência e integra o coletivo Filmes de Quintal.

Ewerton Belico

é curador, roteirista, diretor e educador. Integra a equipe de programação do forumdoc.bh. Co-dirigiu e co-roteirizou Baixo Centro, A memória sitiada da noite, Vira a volta que faz o nó, dentre outros. Foi curador das mostras Retrospectiva Geraldo Sarno e Léa Garcia - 90 anos, ambas realizadas no CCBB.